EdT46 — Nos últimos anos, a arte milenar do esmalte tem vindo a ocupar um lugar de destaque entre as artes decorativas na relojoaria. O esmalte Grand Feu, em especial, assume-se hoje, entre os Métiers d´Art, como uma arte na qual o processo é tão fascinante como o resultado.
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Texto originalmente publicado no número 46 da Espiral do Tempo
Basta um olhar mais atento sobre os mostradores em esmalte de relógios com centenas de anos para percebermos que esta é uma das técnicas de arte decorativa mais extraordinárias de sempre. O estado imaculado das superfícies vítreas, aparentando ter acabado de sair das mãos de um artesão, é prova de que esta arte se manteve ao longo de séculos como uma das mais exigentes tanto sob o aspeto técnico como sob o aspeto estético. Um estatuto que se manteve até hoje.
Ainda assim, continua a ser necessário explicar por que razão um relógio com mostrador em esmalte pode custar o dobro, ou mesmo o triplo, de um equivalente com mostrador convencional. Argumentos como o facto de cada mostrador requerer mais de 100 horas de trabalho, poder queimar, criar bolhas, explodir durante uma das cerca de 30 idas ao forno, e de apenas uma mão cheia de artesãos dominar atualmente esta técnica são uma boa forma de explicar a diferença entre estas autênticas obras de arte e um mostrador de produção industrial que, em muitos casos, não necessita de mais de dois minutos a ser concluído.
Com a profusão de exemplos apresentados nos últimos anos, é difícil acreditar que esta arte esteve à beira da extinção. A década de 70 e a histórica ascendência do quartzo afetaram tanto a indústria relojoeira suíça no seu todo como as artes de nicho nas quais se enquadrava o esmalte. A recente ascendência dos Métiers d´Art acabou por resgatar esta arte para um patamar que, hoje, ameaça destronar os séculos XVII e XVIII como a idade de ouro da esmaltagem.
Mas afinal o que é o esmalte? A resposta não é simples nem curta. Trata-se de um material vítreo composto na sua maioria por silício, feldspato, caulinita, chumbo vermelho, carbonato de potássio ou bórax, que se encontram sob a forma de cristais em bruto. São estes diferentes óxidos de metal que atribuem ao esmalte o seu espectro de cores virtualmente infinito e uma profundidade quase mágica. O esmalte é hoje aplicado segundo uma multiplicidade de técnicas das quais as seculares cloisonné e champlevé continuam a estar entre as mais populares. Mas outras técnicas ancestrais começam novamente a ganhar expressão, e exemplos de mostradores em esmalte flinqué, grisaille, paillonné, plique-à-jour, vallonné ou cabochonné têm animado as coleções das manufaturas relojoeiras mais importantes. Neste fascinante catálogo de técnicas, a pintura em miniatura sobre esmalte continua a ocupar um lugar especial como uma das mais exigentes, bem como aquela que tende a apresentar os resultados mais extraordinários. Mas todas estas técnicas, sem exceção, assumem a sua maior expressão quando executadas segundo o difícil processo de esmaltagem conhecido como Grand Feu, nome que reflete o ponto de fusão bastante elevado a que esta técnica é executada. O esmalte ‘duro’ que resulta deste processo de cozedura é capaz de manter a cor e a superfície original do mostrador indefinidamente.
O esmalte Grand Feu
Para compreender tudo o que está por detrás de um mostrador Grand Feu, é fundamental conhecer primeiro o processo laborioso a que cada peça está sujeita. Comecemos pois pela matéria-prima, ou a mistura que é necessário preparar e que dará origem ao esmalte. Para a obter, é preciso uma ferramenta essencial na forma de um cadinho de barro feito à mão, que fica sujeito a um período de secagem de sete meses a 30˚ centígrados. Findo este longo período, o cadinho é aquecido em forno, de forma gradual, durante oito dias consecutivos a uma temperatura de 1400˚.
É neste recipiente que os materiais em bruto são aquecidos até formarem um líquido cristalizado incolor. Para alcançar este ponto, é necessário estar no forno, em média, 14 horas, até que a mistura tenha derretido e possa ser retirada e vazada, para que arrefeça numa base de ferro fundido. O resultado é uma placa similar ao vidro que é então partida e esmagada até formar um pó rudimentar, ainda longe de poder ser usado na alta-relojoaria.
O processo continua através de uma lavagem cuidadosa da matéria-prima, após o que o pó é repetidamente esmagado num almofariz de ágata, novamente lavado com água destilada e posteriormente limpo com ácido nítrico. Esta fase, repetida as vezes que forem necessárias, dissolverá quaisquer partículas metálicas não assimiladas pela mistura, eliminará matéria orgânica e endurecerá o esmalte. O material daí resultante é então conservado em pequenos potes onde se mantem coberto por três partes de água destilada, pronto para a exigente mistura de elementos que irá definirá a cor que decorará cada mostrador.
Misturas
Os esmaltes coloridos permitem um espectro de tonalidades bastante diversificado, mas em grande parte mudam de cor no forno à medida que os óxidos metálicos reagem à temperatura. Os esmaltes podem, assim, ser misturados, mas as cores que daí resultam podem não corresponder necessariamente ao resultado que seria expectável. Se a mistura contiver óxido de cobre, cobalto e manganésio, a tonalidade obtida aproximar-se-á do negro. Já o crómio dará origem a uma cor esverdeada, o iodo a um vermelho intenso e o cobre devolverá tons intensos de verde e turquesa. É por esta razão que, antes de se definir a mistura a usar, é essencial saber como esta irá reagir quando estiver no forno.
A base
A mistura destinada a dar origem a um novo mostrador é agora aplicada sobre uma base metálica, optando-se habitualmente pelo ouro, pela prata ou pelo cobre puro. O esmalte reage de forma diferente a cada um. Mas, antes, a base é ainda sujeita a uma ida prévia ao forno, a uma temperatura entre 900˚ e 1000˚, de maneira a suportar as diversas cozeduras que se seguirão. Só agora a aplicação do esmalte pode ter início.
Forno e fusão
Depois de as diferentes cores previamente definidas serem aplicadas com uma pena de ganso, com um pincel ou com uma agulha extremamente fina, e habitualmente com recurso a um microscópio, chegamos à fase do cozimento. Trata-se de um momento bastante delicado, já que é deste último processo que depende o resultado de um longo e minucioso trabalho. O forno é aquecido a 800˚, 840˚, 860˚ ou 900˚ de temperatura, conforme a cor a cozer. Cada camada é aplicada lentamente, uma após a outra, num processo que tem de ser repetido diversas vezes de forma a que as cores possam exprimir toda a sua intensidade, a qual se manifesta gradualmente após cada ciclo. Ao fim de cerca de 20 a 30 idas ao forno, as cores estão vitrificadas pelo calor, revelando agora toda a sua intensidade.
Uma vez terminado, o mostrador conservará todo o seu brilho e toda a sua beleza ao longo de séculos, resistindo indefinidamente ao desgaste do tempo. A recompensa de todo este longo e laborioso processo, cuja taxa de rejeição é extremamente elevada, traduz-se em autênticas obras de arte. O trabalho alcançado recorda-nos de que, nos primórdios da história da relojoaria, o mecanismo e a decoração de um relógio se apresentavam como um só elemento. Hoje, é ponto assente que um movimento mecânico, por mais sofisticado que seja, que não contemple esta vertente artística, terá efetivamente mais dificuldade em estimular a imaginação do verdadeiro conhecedor.
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