A tipografia tem um papel fulcral na relojoaria. Não só permite a identificação, pelo estilo, da filosofia de um determinado fabricante enquanto marca, como a sua inerente criatividade, uma vez aplicada aos números de um mostrador, pode também representar uma verdadeira assinatura.
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[Foto de abertura: Os numerais do novo Égérie. © Vacheron Constantin]
Vivemos rodeados por uma quantidade assombrosa de fontes tipográficas diferentes. Cada letreiro, cada anúncio, cada capa de revista manifesta-se e interage connosco de uma forma singular. O efeito desta diversidade é absorvido de forma quase inconsciente sem que nos consigamos aperceber da mensagem emocional, quase subliminar, que a sua forma e aparência nos transmitem. Sem nos apercebermos, somos o alvo de uma forma de comunicação permanente que nos bombardeia com mensagens distintas. Um efeito e, ao mesmo tempo, um propósito que nos prepara para o contacto direto com uma marca ou com um produto. Mas, a partir do momento em que «abrimos os olhos» para um universo de detalhes quase ocultos e nos tornamos conscientes de toda a arte e criatividade que cada letra e cada número encerram, então entramos num mundo que nos permite, de um momento para o outro, relacionar estes elementos com a sua envolvência. Este ato de consciência liberta-nos, ao mesmo tempo, para a crítica, positiva ou negativa, do efeito que eles provocam no conjunto de que fazem parte.
(…) a partir do momento em que «abrimos os olhos» para um universo de detalhes quase ocultos e nos tornamos conscientes de toda a arte e criatividade que cada letra e cada número encerram, então entramos num mundo que nos permite, de um momento para o outro, relacionar estes elementos com a sua envolvência.
Fontes variadas
A bela relojoaria representou sempre um campo prolífico para a experimentação, já que são poucos os objetos capazes de atrair com frequência o olhar e a atenção das pessoas como o mostrador de um medidor do tempo. Neste espaço, destinado a traduzir a função e a complexidade do mecanismo que oculta, a influência das fontes tipográficas manifesta-se, por um lado, na numeração distribuída sobre a periferia do mostrador e, por outro, na forma como o nome da marca em questão se expressa no espaço nobre localizado entre o «12» e o epicentro marcado pelo eixo central dos ponteiros.
Efetivamente, a expressão assumida pela fonte utilizada por cada marca para escrever o seu nome — o designado logótipo tipográfico — pode mesmo refletir as caraterísticas dos próprios relógios que essa marca produz. Assim, a sobriedade, elegância e altivez da fonte não serifada usada pela Patek Philippe traduz bem a antiguidade da marca, bem como a seriedade com que encara a arte da relojoaria. O mesmo se pode dizer dos numerais utilizados pela casa genebrina que variam de coleção para coleção, com a tendência para assumir um perfil itálico de numerais em relógios mais complicados e um perfil marcado e retílineo nos modelos mais desportivos. Por outro lado, os relógios que se distinguem estilisticamente no seio da coleção acabam por apresentar fontes mais ousadas. Exemplo disto é recente Ref. 5212A com calendário semanal cujo mostrador apresenta letras e numerais exclusivos que reproduzem verdadeiramente caracteres escritos à mão; já as Refs. 5524 conhecidas como o Calatrava Pilot Travel Time apresentam numerais com uma fonte caraterística de relógios vintage de piloto.
No caso da Cartier, a marca assume como opção para o seu logótipo tipográfico institucional uma fonte manuscrita que, apesar de não haver conhecimento sobre as suas verdadeiras origens, reflete as elegância, intemporalidade, tradição e luxo tão associados à casa francesa, assim como uma orientação criativa marcadamente feminina — ou não estivesse a joalharia na origem desta empresa criada em 1847. Porém, não deixa de ser curioso que, para os mostradores dos seus relógios, a marca tende a adotar um tipo de fonte serifada mais austera que acaba por resultar em especial com os numerais romanos que são maioritariamente utilizados nos relógios da marca. Aliás, há sempre um segredo bem guardado no mostrador de cada Cartier: a referência à marca num dos numerais.
Interessante é também a Montblanc. A marca fundada em 1906 adotou como fonte institucional — a mesma que também usa no seu logótipo tanto em instrumentos de escrita, como numa vasta seleção de relógios — uma fonte criada por uma equipa que integrou um designer tipográfico português. A viver em Lisboa, Rui Abreu formou-se, em 2003, na Faculdade de Belas Artes do Porto, onde estudou Design de Comunicação e também onde se apaixonou pela arte da tipografia. A fonte produzida para a Montblanc foi um trabalho notável que mereceu amplo reconhecimento, como atestam os galardões da Red Dot Awards, Corporate Design Preis ou iF Design Award atribuídos a este trabalho. Mas no que diz respeito a relógios Montblanc, há que referir também a coleção 1858 em que os relógios apresentam um logótipo tipográfico evocativo da Montblanc de outros tempos. Uma forma de oferecer aos relógios um toque vintage que traduz a longevidade e tradição da marca, bem como a relação com instrumentos do tempo antigos que inspiraram alguns dos modelos desta coleção.
Os numerais como identidade
Como já se percebeu dos exemplos que apresentámos até ao momento, quase sempre, por inerência da sua própria função, os numerais sobre um mostrador são provavelmente o elemento gráfico que mais atenção recebe por parte de um apreciador de relógios. Este é, maioritariamente, o elemento responsável pelo primeiro impacto quando somos confrontados com a sua estética. É precisamente neste território criativo, capaz de acompanhar ou contrariar a forma da caixa de um relógio, que os apreciadores são cada vez mais atraídos pela componente gráfica que destila. Na verdade, trata-se até de um aspeto crucial que tem a capacidade de alterar radicalmente a aparência de qualquer mostrador, assim como permite identificar um estilo e até mesmo um fabricante. Casos como os da Breguet, Franck Muller e Hermès são exemplos incontornáveis.
De facto, apesar de sobejamente copiada no passado, a numeração Breguet foi concebida e desenhada pela mão do próprio mestre Abraham-Louis Breguet, em pleno século XVIII, representando hoje o estilo mais reconhecido tanto por apreciadores como por colecionadores. O privilégio da sua utilização cabe à casa fundada pelo famoso relojoeiro e que raramente a troca pela clássica alternativa da austera numeração romana. Levemente inclinados e fluidos quanto baste, cedendo aqui e ali algum espaço à fantasia, o design da numeração Breguet é facilmente legível, sem exigir nenhum esforço por parte do observador. Não havendo até agora nenhuma descrição técnica ou estética que lhe faça realmente justiça, o estilo é universalmente conhecido como Breguet.
Não deixa, no entanto, de ser curioso, que esta mesma numeração Breguet tenha sido recriada pela Franck Muller de uma forma mais lúdica de modo a preencher quase a totalidade dos mostradores das linhas que adotam as famosas caixas Cintrée Curvex. Aqui, a tradicional forma tonneau, associada as estas caixas, joga, de forma magistral, com um centro redondo, de onde os algarismos aplicados ou transferidos se estendem de tal forma que ocupam toda a superfície remanescente do mostrador. Esta simbiose de formas onde a numeração árabe curvilínea escolhida pela Franck Muller é obrigada a adaptar-se continuamente à forma da superfície disponível resulta numa imagem que, ainda hoje, décadas após o seu lançamento pela marca, se mantém como um elemento extremamente reconhecível do mestre relojoeiro.
Inconfundível é, também, a fonte tipográfica que Philippe Apeloig criou especificamente para o relógio Slim D’Hermès. Nascido em Paris em 1962, Apeloig é um mestre do design sobejamente premiado ao longo da sua carreira e a sua extensa obra gráfica passou, em 2013, a contar com a execução de um poster, para a Hermès, a anunciar o torneio de equitação realizado nesse ano, no Grand Palais de Paris. Um trabalho que levou a marca a confiar ao artista a tarefa de produzir, em 2015, o carrée para o centenário do nascimento do filósofo francês Roland Barthès. A este projeto, seguiu-se aquele que é, provavelmente, o melhor trabalho gráfico desenvolvido para a relojoaria contemporânea em torno de uma fonte gráfica destinada a um mostrador de um relógio. De facto, o lançamento do Slim D´Hermès fez-se acompanhar, nesse mesmo ano de 2015, de uma fonte totalmente nova e dedicada, cujo elegante efeito de profundidade, que faz com que cada número pareça flutuar sobre o mostrador, representa um género de fonte totalmente nova que complementa um modelo, em pleno acordo com os exigentes códigos estéticos da Hermès.
Artigo originalmente publicado no número 70 da Espiral do Tempo.
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