Fundos transparentes: glasnost!

A transparência na relojoaria é hoje um dado adquirido para um grande número de marcas e modelos. Mas, para se passar a expor o movimento ao escrutínio do público sem complexos de maior, foi necessário percorrer um caminho acidentado onde as primeiras tentativas saíram frustradas.

Imagem acima: Neste relógio de bolso da Girard-Perregaux, graças ao fundo transparente, é possível observar o movimento. A marca de La Chaux-de-Fonds tem uma longa tradição neste domínio. © Girard-Perregaux

De crise em crise ou de recorde em recorde, mesmo com a iminente ameaça dos chamados conectados, a relojoaria mecânica, e até mesmo a de quartzo, continua de boa saúde e recomenda-se. O fenómeno crescente do colecionismo, que se estendeu aos chamados vintage (ou vice-versa…), tem criado uma consciência crescente de que o relógio em geral, e o de pulso em particular, é cada vez mais uma expressão de nós próprios e um veículo de cultura a raiar o incomparável. A história e a ciência por trás de um medidor do tempo não só são temas fascinantes, como estão longe de estar totalmente explorados, permitindo a especial satisfação, ao alcance de todos, de contribuir com a descoberta de uma ou outra peça para completar o puzzle.

No entanto, a manifesta exuberância, em alguns casos, ou o virtuosismo dos designers, noutros, relegaram a expressão maior da Horologia para o lugar de trás do autocarro relojoeiro. O movimento, complexo, labiríntico, intrincado, é hoje mais apreciado pela disposição de componentes à superfície da platina, do que propriamente pelo entendimento cabal do seu funcionamento. Mesmo assim, há que aplaudir a crescente tendência a partir do início deste século da aplicação de tampas de fundo transparentes, capazes de incutir no proprietário de um relógio a vontade de partir à aventura da descoberta da razão de ser por trás de cada componente e de como cada um interage entre si. Hoje, pode generalizar-se que não há quem esconda um movimento por trás de uma tampa opaca se, de alguma forma, achar que o que se oculta não é motivo de embaraço e está preparado para se submeter ao escrutínio por parte de uma comunidade de apreciadores cada vez mais atenta ao que se faz e, principalmente, ao que não se faz.

A história da transparência, muitas vezes associada pelos colecionadores a um certo ‘voyeurismo’ ou ‘erotismo’ relojoeiro, sempre foi a exceção à regra. O movimento mecânico era o patinho feio, e o mostrador, o biombo que ocultava uma aparência embrutecida de ferro forjado. Como castigo, era relegado para o alto de uma torre onde se mantinha longe de olhares indiscretos, recebendo apenas a atenção do relojoeiro que lhe conhecia os hábitos e as vicissitudes e assim o mantinha no bom caminho da cronometria.

O Space Traveller de George Daniels. © Daniels London
O Space Traveller de George Daniels. © Daniels London

Com o relógio de bolso, mais portátil e consequentemente mais chegado a quem o possuía, a vontade e necessidade de o transformar num objeto tão precioso como funcional eleva a expressão artística do relógio para um novo patamar. A caixa e o mostrador são agora um campo criativo que chama a si uma diversidade de métiers d´art que descobrem nestes elementos um espaço privilegiado de inspiração. Em consequência, o acesso facilitado ao interior deste pequeno universo, pelo simples abrir de uma tampa, impele o próprio relojoeiro a criar o movimento, de acordo com o elemento protetor que o envolve. Quem se atreveria a negar ao Marie Antoinette, pensado pela mente de um génio como Abraham-Louis Breguet, a possibilidade de revelar a sua excecional complexidade ao mundo? E, se avançarmos um pouco mais no tempo, a opção do Mestre George Daniels pelo fundo transparente do Space Traveller passa a ser totalmente compreendida assim que nos deixamos mergulhar na sinfonia de elementos deste excecional relógio.

De certa maneira, e a partir do primeiro quartel do século XX, o relógio de pulso acaba por sofrer um percurso semelhante, onde o peso do ferro forjado terá de ser substituído pela incapacidade da produção industrial, agora a laborar numa escala de dimensão bastante inferior, de se associar a caraterísticas estéticas capazes de incutir no fabricante a vontade de revelar o movimento. Com o advento da década de 90 do século XX, o impulsionador desta tendência parece ter sido Gerd-Rüdiger Lang, o fundador da Chronoswiss e um visionário em muitos aspetos que se vieram a tornar norma na relojoaria de pulso. O fundo transparente em vidro de safira, aplicado em séries inteiras da marca de forma a revelar a beleza de calibres como o C122, baseado no 165 da Enicar, acabaram por determinar a adoção desta ideia pela indústria, após algumas tentativas sem êxito surgidas a partir da década de 50.

À esq: Ebel Videomatic. O verso permitia uma visão clara de um movimento com rotor de corda automática. À dta: F.P.Journe Chronographe Monopoussoir Rattrapante. Movimento em ouro rosa.  © F.P. Journe
À esq: Ebel Videomatic. O verso permitia uma visão clara de um movimento com rotor de corda automática. À dta: F.P.Journe Chronographe Monopoussoir Rattrapante. Movimento em ouro rosa. © F.P. Journe

O primeiro ensaio sério parece ter surgido pela mão da Ebel, logo em 1952, com o modelo Videomatic. Um relógio cuja caixa apresentava uma área periférica transparente onde a marca decidiu aplicar 11 indexes e o número 12, que duplicavam a sua função como elementos de apoio ao movimento e ao mostrador. Num anúncio publicado na época, a Ebel fazia referência que pela frente, o Videomatic se apresentava como um relógio «útil e com um mostrador atraente», e que no verso permitia uma «visão clara de um movimento com rotor de corda automática». Uma vantagem efetiva sobre os movimentos de corda manual e que a marca pretendia sublinhar ao adotar um verso transparente.
Em 1954, é a Wyler que propõe um modelo apelidado Double-View, expressando de forma bastante clara a particularidade de o relógio poder ser apreciado tanto pelo lado do mostrador como pelo fundo, onde revela um elegante calibre de corda manual. Numa era em que a proteção contra choques do sistema Incaflex era bastante valorizada pelo consumidor, o Double-View era corajosamente anunciado como ‘o’ relógio «à prova de água com o fundo com o vidro transparente!»

Passado uma década, por volta de 1964, é a vez do gigante industrial Omega lançar uma proposta dentro da linha Seamaster DeVille especialmente dedicada ao mercado norte-americano. Batizado com a designação Kleerback, o modelo integrava então o calibre 560, um movimento de corda automática produzido especificamente pela Omega para ser associado às resistentes caixas monocoque com vidro de Hesalite produzidas pela Norman Morris Corporation, o distribuidor da marca nos mercados norte-americano e canadiano, entre 1930 e 1980.

Nesta página de um jornal de 1964, podemos ver um anúncio do Omega “Kleerback”, no qual se destaca precisamente o fundo transparente. Retirado de omegaforums.net.
Nesta página de um jornal de 1964, podemos ver um anúncio do Omega “Kleerback”, no qual se destaca precisamente o fundo transparente. Retirado de omegaforums.net.

O modelo era anunciado com pompa pela marca e também por retalhistas: «Retirámos o fundo ao nosso melhor relógio para que possa ver a história da sua precisão ‘interior’. A descrição do modelo continua, afirmando-se que «quando olha para o interior, pode apreciar a incrível superioridade da mão de obra da Omega. O Seamaster Kleerback foi desenhado especialmente para lhe mostrar todas as partes, assim como o rotor acionado por gravidade que carrega o Seamaster enquanto está a usá-lo». O anúncio da época indicava ainda um preço na casa dos $119 e, por segurança, que o modelo estava também disponível com uma caixa toda em metal, à prova de água.

A palavra ‘glasnost’ vem do russo e significa abertura e transparência. A 5 de dezembro de 1965, um ano após o lançamento do Seamaster Kleerback, um grupo de manifestantes pediu expressamente glasnost durante um polémico julgamento de dois dissidentes soviéticos. Tal como com o Omega Kleerback, a iniciativa não vingou, sendo necessário chegar a 1986 e ao regime de Mikahil Gorbachev para a glasnost ser adotada como slogan político, da mesma forma em que nesse mesmo período a iniciativa de Gerd-Rüdiger Lang se transforma no ponto de partida para a criação de uma tendência dentro da indústria. Os fundos transparentes na relojoaria mecânica passam, então, a fazer parte de uma verdadeira ‘perestroika relojoeira’. Afinal, quem iria perdoar a marcas como a Lange & Söhne, a Patek Philippe ou a Jaeger-LeCoultre se ocultassem a visão sublime de movimentos como o Calibre L.951.1. do Datograph, o Calibre CH29-535 PS da Ref. 5170 ou o Calibre 280A do Duomètre Chronograph?

Artigo originalmente publicado no número 65 da Espiral do Tempo (edição inverno 2018).

Outras leituras