O mais famoso calibre cronográfico na história da relojoaria de pulso está prestes a cumprir o seu 50º aniversário e é celebrado num estojo em edição limitada com três relógios que representam o passado, o presente e o futuro. A história do El Primero merece ser contada e tem todos os ingredientes de um drama: competição, condenação, redenção. Com um herói improvável pelo meio, cujo amor pela relojoaria tradicional pode ter salvo a histórica manufatura Zenith.
—
Em plena era da corrida do espaço, uma interessante corrida dominou os bastidores da indústria relojoeira no final da década de 60 – com três diferentes entidades envolvidas separadamente na pesquisa e no desenvolvimento do primeiro movimento cronográfico automático. E todas elas apresentaram o seu produto em 1969, no mesmo ano da aterrissagem na Lua, do lançamento do Concorde e do festival Woodstock. Desse triunvirato destaca-se um calibre que ainda hoje faz parte do cenário relojoeiro: o El Primero, da Zenith. A sua história é épica, tendo protagonizado uma fascinante saga de condenação e redenção que celebra este ano o seu 50º aniversário.
A comemoração das bodas de ouro arrancou com o lançamento de um estojo limitado a 50 unidades com três modelos que personificam o passado, o presente e o futuro do lendário movimento com estilizações vintage, clássica e moderna: um El Primero A386 Revival que replica o original de 1969 com 38mm de diâmetro, um Chronomaster 2.0 El Primero com luneta em cerâmica de 42mm e um Defy El Primero 21 de 44mm em titânio com frequência de 360.000 alternâncias/hora para cronometragem até ao centésimo de segundo. Todos eles com submostradores dotados das cores originais: cinzento claro para os pequenos segundos, azul para os minutos e antracite para as horas.
O estojo inclui um ecrã táctil e vários utensílios emblemáticos, para além de uma réplica do famoso movimento… e um convite para visitar a manufatura em Le Locle e deixar o nome do feliz contemplado numa placa do antigo sótão do ‘salvador’ Charles Vermot.
No início do relato de uma saga de meio século, convém desmistificar um detalhe associado à nomenclatura: El Primero não vem do espanhol – vem do Esperanto, essa língua artificial criada em 1887 com a intenção de se tornar num idioma franco internacional para toda a população mundial. Acabou por perder tracção; foi substituída no seu desiderato global pelo inglês, a língua mais usada entre os diversos continentes. No capítulo da relojoaria, continua a fazer parte do léxico da indústria através da Zenith. E, tal como o nome indica, foi o primeiro calibre cronográfico automático de produção regular na história da relojoaria… embora talvez seja mais ajustado dizer que foi um dos primeiros. Mas uma coisa é certa: dos três pretendentes, é o único que se mantém em produção. Apesar de ter tido uma sentença de morte a pairar sobre ele!
A moda automática
O advento, e consequente imposição, dos relógios de corda automática foi um fenómeno relevante no período pós-Segunda Guerra Mundial. Subitamente, toda a gente passou a querer um relógio automático e a encarar os relógios de corda manual como obsoletos (algo que, hoje em dia, não se verifica: movimentos de corda manual e corda automática só têm princípios mecânicos diferentes e a maior parte das obras-primas da relojoaria nas últimas duas décadas até assentam em calibres de carga manual). Já ninguém queria dar ao(s) dedo(s) para fornecer corda manual aos relógios. No entanto, a adesão à nova tecnologia automática começou por ser parcial: a presença do rotor dificultava a arquitetura dos calibres com funções adicionais, afetando diretamente a fiabilidade e a espessura dos movimentos. Tornando inviável a sua utilização em relógios mais complicados. Foi o caso dos cronógrafos, que entraram em declínio.
Então a Federation Horlogère (a associação profissional da relojoaria suíça), alarmada com a drástica baixa na exportação de modelos cronográficos, decidiu financiar uma pequena associação composta pelas várias marcas especializadas no fabrico de cronógrafos, de modo a que fossem não só promovidas campanhas internacionais de publicidade que exaltassem os méritos dos cronógrafos tradicionais mas também fomentado o desenvolvimento de um novo calibre. Esse consórcio foi liderado por Willy Breitling e Jack Heuer e resultou no calibre modular Chronomatic (mais tarde Calibre 11) estreado em duas conferências de imprensa intercontinentais em simultâneo e semanas depois na feira de Basileia de 1969, realizada em abril. Do outro lado do mundo, a Seiko foi mais discreta e nem revelou nada em Basileia: só em maio de 1969 foi apresentada a referência 6139 para o mercado japonês e alguns exemplares têm gravada a menção ao mês de março 1969; no entanto, a distribuição internacional dos cronógrafos automáticos Seiko terá começado a ser feita apenas no último trimestre.
Analisando a corrida e mesmo considerando que seria justo estabelecer um empate entre os três concorrentes, a Zenith tem mesmo todos os motivos para clamar vitória e justificar o lendário nome El Primero. A marca de Le Locle começou a pesquisa para a criação de um cronógrafo automático em 1962, apontando o lançamento para 1965 – ano do seu centenário. Entretanto, uma suspensão no projeto foi adiando a apresentação e só em Dezembro de 1968 a Zenith conseguiu ter os primeiros protótipos de um movimento revolucionário de relativa delgadez (menos de 7mm), construção integrada, roda de colunas e elevada frequência (36.000 alternâncias/hora para cronometragem ao décimo de segundo). Foi então agendada a sua apresentação oficial na feira de Basileia.
Como seria de esperar, com tanta gente e tantas empresas fornecedoras envolvidas nos diversos projetos das várias marcas, os rumores multiplicaram-se. Perante a informação de que o consórcio rival liderado pela Breitling e pela Heuer (que integrava também a Leonidas, Büren e Dubois-Dépraz) iria anunciar o seu cronógrafo automático antes mesmo do certame de Basileia em conferências de imprensa simultâneas em Genebra e Nova Iorque, a Zenith antecipou-se: a 10 de janeiro deu uma conferência de imprensa confinada à imprensa suíça que contou já com um exemplar funcional; o novo relógio foi promovido como sendo o primeiro cronógrafo automático do mundo e batizado com o sugestivo nome a condizer. E com um visual marcante, baseado em três submostradores coloridos: de tom mais claro para os segundos, intermédio para os minutos e mais escuro para as horas. Mas se o El Primero foi o primeiro a dar-se a conhecer ao mundo, acabou eventualmente por ser o terceiro da corrida a ser distribuído aos clientes: só chegou ao mercado em outubro. É atualmente o único dos três a manter-se em produção, mas foi necessário um pequeno milagre para assegurar a sua sobrevivência.
A sentença de morte
Esse milagre foi operado por um relojoeiro quase desconhecido do público em geral mas que se tornou num nome incontornável na história da Zenith e da indústria relojoeira suíça: Charles Vermot. Na sequência da crise do quartzo e da decisão de parar a produção dos relógios mecânicos em 1975 por se considerar que se haviam tornado obsoletos face à maior precisão e menor custo dos sistemas electrónicos vindos do oriente, o grupo americano que entretanto comprara a marca ordenou a destruição de stocks e máquinas. Charles Vermot, então responsável do atelier 4 e tendo passado toda a sua vida profissional a trabalhar na Zenith, escreveu então aos novos donos da marca: “Não sou contra o progresso, mas constato que há sempre recuos. Enganam-se se acham que o cronógrafo mecânico automático vai deixar de existir. Um dia a empresa beneficiará da alternância de modas que o mundo sempre teve”.
Não foi escutado. Insistiu e pediu autorização para manter um pequeno gabinete com a maquinaria de produção do El Primero, mas o seu apelo foi recusado: o El Primeiro tinha sido condenado ao lixo e consequente extinção. Sob pena de despedimento, Charles Vermot guardou tudo o que pôde com a ajuda do irmão. Classificou, inventariou e etiquetou componentes e ferramentas. Desmantelou máquinas, arquivou planos e escondeu tudo de todos, em locais onde ninguém pudesse encontrar esse espólio tão precioso para ele – numa altura em que tanta maquinaria relojoeira de outras marcas e empresas fornecedoras na bancarrota era atirada aos lagos suíços. Graças a Charles Vermot, utensílios vitais e informação fundamental passaram à posteridade. E depois do impacto nefasto da relojoaria de quartzo sobre a indústria relojoeira tradicional durante quase uma década, nos anos 80 começaram a surgir os primeiros sintomas do renascimento da relojoaria mecânica. E o El Primero ressuscitou.
Em 1984, a Ebel começou a usar o El Primeiro nalguns dos seus cronógrafos mecânicos – e a Ebel era uma marca de primeiro plano na altura. A Rolex também escolheu o El Primero quando resolveu dotar o seu Daytona de um movimento automático (porque, imagine-se, os Daytonas de corda manual – sim, incluindo o ‘Paul Newman’ – vendiam-se mal!); no entanto, operava cerca de 200 modificações ao calibre original da Zenith antes de o colocar no Daytona, baixando mesmo a frequência das lendárias 36.000 alternâncias/hora para as 28.800. O facto de a Rolex ter adotado e El Primero contribuiu muito para a reputação do calibre e também para a viabilização económica da Zenith. Também a Panerai, a Daniel Roth, a Boucheron e a Concord se tornaram clientes. Na década de 90, sob a batuta de François Manfredini, a Zenith era uma marca de culto para os aficionados puros e duros. E o Chronomaster El Primero com celendário triplo e fases da lua o seu modelo principal.
Projeção mundial
Em 1999, numa louca era de aquisições e fusões na relojoaria com a eclosão de grandes aglomerados de luxo, o grupo LVMH compra a Zenith e passa a dar maior projeção mediática a uma marca considerada então quase de nicho – ou, pelo menos, de fama e rendimento abaixo da sua real valia industrial. O novo presidente, o espalhafatoso Thierry Nataf, deu à manufatura de Le Locle essa maior projeção (na altura, os aficionados até acharam que a Zenith tinha passado de uma marca puramente relojoeira para uma marca de moda!) e optou por uma coleção mais revolucionária baseada em modelos grandes com mostradores recortados, denominados ‘Open’, que colocassem à vista partes do El Primero. Dando-lhe ao lendário calibre o devido protagonismo. Totalmente merecido porque, ao longo das décadas e com mínimas alterações, o El Primero manteve-se sempre na vanguarda dos movimentos cronográficos graças à sua roda de colunas, embraiagem lateral e alta frequência – provando ser robusto, preciso e fiável. E relativamente fino: a sua menor espessura (sobretudo em comparação com o mais comum calibre cronográfico automático da indústria, o Valjoux 7750) facilitou a sua combinação com outras complicações.
No presente milénio, o El Primero foi associado a turbilhões, datas grandes, rattrapantes, repetidores de minutos, alarmes, datas retrógradas e segundos saltantes. Chegou mesmo a ser despojado das suas funções intrínsecas, aproveitando-se apenas o seu sistema oscilador de elevada frequência para modelos não cronográficos. No total, o El Primero já teve mais de 600 variações ao longo destes seus 50 anos. Mas manteve-se sempre como a estrela da companhia e até ganhou uma nova vida com o Defy El Primero 21 que marca verdadeiramente a passagem do lendário movimento para o século XXI – juntando o escape tradicional para o relógio com a frequência de 36.000 alternâncias/hora a um escape exclusivamente para as funções cronográficas a 360.000 alternâncias/hora, possibilitando assim cronometragens até ao centésimo de segundo.
Nas bodas de ouro do lendário calibre e numa perspetiva histórica, é fácil constatar que Charles Vermot não só tinha razão nos motivos alegados na tal carta como também salvou o El Primero e uma vertente relevante da indústria relojoeira suíça. Também é irónico ver que a Zenith e a TAG Heuer, concorrentes diretos há meio século, são agora sister companies no seio da LVMH e que até há vários modelos TAG Heuer equipados precisamente com o El Primero. Entretanto, a Zenith apresentou agora em janeiro os primeiros modelos comemorativos do 50º aniversário no mencionado estojo comemorativo em forma de troika – e irá seguramente apresentar mais ao longo de 2019. Afinal de contas, não há amor como o primeiro.
Características Técnicas
Zenith
Chronomaster 2 El Primero
Referência/ 03.3001.3600/69.C816
Movimento/ Mecânico de corda automática, calibre El Primero 3600, 36.000 alt/h., 60 horas de reserva de corda.
Funções/ Horas, minutos, pequenos segundos, data e cronógrafo.
Caixa Ø 42 mm / Aço, vidro e fundo em cristal de safira com tratamento antirreflexos, estanque até 100 metros.
Bracelete/ Cauchu com pesponto vermelho e fecho de báscula.
Zenith
El Primero A386 Revival
Referência/ 03.A386. 400/69.C815
Movimento/ Mecânico de corda automática, calibre El Primero 400, 36.000 alt/h., 50 horas de reserva de corda.
Funções/ Horas, minutos, pequenos segundos, data, escala taquimétrica e cronógrafo.
Caixa Ø 38 mm / Aço, vidro e fundo em cristal de safira com tratamento antirreflexos, estanque até 100 metros.
Bracelete/ Pele preta de aligátor com revestimento em cauchu e fivela em aço.
Zenith
Defy El Primero 21
Referência/ 95.9012.9004/69.R582
Movimento/ Mecânico de corda automática, calibre El Primero 9004, 36.000 alt/h., 60 horas de reserva de corda.
Funções/ Horas, minutos, pequenos segundos, indicação de reserva de corda, cronógrafo certificado.
Caixa Ø 44 mm / Titânio, vidro e fundo em cristal de safira com tratamento antirreflexos, estanque até 100 metros.
Bracelete/ Cauchu com revestimento em pele preta de aligátor e fecho de báscula em titânio.
—