EdT50 – Sabia que os relógios de mesa estiveram em destaque no Salon International de la Haute Horlogerie 2015, como peças contemporâneas de especial pendor artístico, mas evocativas de um certo espírito do passado?
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Se é verdade que a história mostra que a democratização dos relógios de pulso acabou por se manifestar numa gradual redução da produção de relógios de mesa, também é verdade que, quando estas peças são retomadas no mundo contemporâneo, tendem a surgir como objetos muito especiais. Neste sentido, é curioso notar que os relógios de mesa vão aos poucos começando a fazer novamente parte do portefólio de algumas reconhecidas marcas de alta-relojoaria. Na 25.ª edição do Salon International de la Haute Horlogerie (SIHH), em janeiro de 2015, onde foram apresentadas as primeiras novidades do ano, esta realidade tornou-se flagrante com a Vacheron Constantin, a Parmigiani e a Jaeger-LeCoultre a apresentaram, ao lado dos seus lançamentos de relojoaria de pulso, relógios de mesa espetaculares.
Claro está que a Jaeger-LeCoultre é um nome um pouco à parte neste domínio. Afinal, uma das principais estrelas da sua coleção é, desde há muito, um relógio de mesa: o Atmos, conhecido por ser um relógio que vive literalmente do ar, graças ao seu mecanismo dotado de uma cápsula que guarda um gás que reage às mínimas mudanças de temperatura. Ao longo dos tempos, foram diversos os relógios Atmos criados, alguns mesmo em parceria com designers renomados. E como relógio de mesa, esta peça tem também surgido como o objeto certo para outros exercícios de estilo e até aplicação das mais diversas técnicas artesanais, tal como aconteceu este ano. No SIHH, a Grande Maison centrou a sua coleção na temática da astronomia, e o relógio de mesa apresentado foi o Atmos Marqueterie Céleste. Este relógio distingue-se pelo gabinete cuja marchetaria de palha evoca o azul do espaço. Ao abrir, o gabinete revela então a caixa do relógio de onde salta a vista um mostrador rico em detalhes, como o disco concebido em lápis-lazúli.
Neste relógio, a transparência da caixa tem feito sempre parte, mas o mesmo se pode dizer dos relógios de mesa que a Vacheron Constantin apresentou este ano. No âmbito do seu 260.º aniversário, a marca lançou a coleção Arca, composta por 12 relógios de mesa inspirados num modelo que remonta a 1933. Cada um deles está equipado com um movimento de manufatura em pirâmide que possui um mecanismo de força constante e uma reserva de corda de 30 dias. Destas peças, oito surgem em cristal translúcido evocando diversos movimentos arquitetónicos: orientalismo, art noveau, art déco, op art, pós-modernismo, desconstrutivismo, arquitetura ecológica e utopismo. Os temas decorativos adornam os cinco lados da construção de tipo arco, bem como o bloco de cristal que dá suporte ao movimento do relógio. As outras quatro peças são uma homenagem à beleza natural do cristal e evocam uma arquitetura mineral através da utilização de pedras de caraterísticas excecionais que ilustram diferentes variedades minerais. Para já, apenas um relógio Arca em cristal de rocha foi apresentado. Os restantes serão gradualmente apresentados ao longo do ano.
Também a Parmigiani esteve este ano em destaque com a apresentação de relógios de mesa especialmente belos, graças ao trabalho decorativo desenvolvido em colaboração com os famosos ateliers de cristal Lalique. O Toric Lépine Special Edition Lalique apresenta uma caixa concebida em cristal Lalique que guarda no centro um relógio de bolso da Parmigiani, que, como o termo ‘lépine’ indica, não tem nenhuma tampa a cobrir o mostrador. O curioso é que um sistema móvel permite que este relógio de bolso possa ser transformado em relógio de mesa, sem nenhum esforço. Esta dupla identidade surge, segundo a marca, como homenagem aos objetos de joalharia e relojoaria transformáveis que se podem encontrar entre as criações de René Lalique. A fonte de inspiração para a caixa desta peça de exceção reside no mundo aquático; o relógio em si apresenta um repetição de minutos.
Já o projeto Le Jour Et La Nuit traduziu-se em dois relógios de mesa que resultaram também de uma parceria com a mestria Lalique. Em causa estão o relógio Soleil de Gaïa e o relógio Serpent que se centram nas temáticas do dia e da noite. Ambas as peças dispõem de um relógio Parmigiani que é emoldurado por uma caixa de cristal Lalique. O mostrador do relógio é diferente em cada uma das peças. No entanto, a moldura surge decorada com dois figurinos alegóricos – um homem e uma mulher – que simbolizam o dia e a noite. A inspiração para tais peças reside na paixão pelos opostos que acompanhou durante muito tempo o trabalho de René Lalique. A propósito das edições Lalique da Parmigiani, não poderíamos deixar de relembrar a coleção de peças Lalique que pode ser apreciada na exposição permanente da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Uma forma de conhecer melhor o mundo encantado do criador francês.
Sendo assim, estes primeiros lançamentos são exemplos de extrema beleza do modo como os relógios de mesa se destacaram no início deste ano. Longe de ser isto considerado tendência, não deixa de ser, no entanto, bem revelador do facto de, em alta-relojoaria, o passado continuar a servir como fonte de inspiração para peças de cariz contemporâneo que vão além dos relógios de pulso. Ao mesmo tempo, a associação a ofícios artesanais só contribui para tornar as peças criadas ainda mais especiais e com mais significado. Uma forma de reinvenção, ancorada no património de outros tempos, que se concretiza em verdadeiras obras de arte.
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