Gérald Genta e o seu legado

Gérald Genta é porventura o mais famoso de todos os designers na história da relojoaria de pulso, talvez por o seu nome estar associado a um estilo muito vincado e a dois revolucionários modelos de alta relojoaria que têm enorme procura nos tempos que correm: o Royal Oak e o Nautilus. Mas a sua obra é vasta e vai muito para além deles ou do próprio design integrado.

Endeusado por grande parte da crítica e sobretudo pelos aficionados, Gérald Genta é o mais famoso designer da história da relojoaria — devendo muito da sua fama à insistência no design integrado/couraçado apresentado no Royal Oak e no Nautilus.

Gerald Genta
Gérald Genta © DR

Mas o seu campo de ação começou antes da década de 70 e estendeu-se muito para além dela. Numa altura em que os designers eram anónimos e trabalhavam para várias marcas sem nunca o seu nome ser creditado, começou por se destacar em 1954 (tinha então apenas 23 anos) com o Polerouter da Universal Genève, o primeiro relógio automático dotado de um micro-rotor.

Polerouter Date da Universal Geneve © wornandwond.com
Polerouter Date da Universal Genève © wornandwound.com

Também desenhou o Bvlgari Bvlgari, com a emblemática dupla inscrição na luneta. Colaborou com um importante fornecedor (na altura os designs eram mais da responsabilidade de quem fazia as caixas, ou as braceletes, ou os mostradores) da Omega e teve influência direta no layout do Seamaster e do Constellation. Começou a colaborar com a Audemars Piguet a partir de 1953.

Gèrald Genta e o Bulgari Bulgari de 1977 © DR
Gèrald Genta e o Bulgari Bulgari de 1977 © DR

Pode dizer-se que Gérald Genta catapultou a relojoaria para a era moderna graças à sua implementação própria do design integrado que tanto marcou os anos 70, numa altura em que o experimentalismo estético atingia o auge; a negação das formas clássicas redondas foi tal que nessa década quase não se fizeram caixas circulares e a integração caixa/bracelete preconizada pelo suíço em modelos geométricos de ruptura para marcas de topo influenciou a indústria. Poucos se lembram, mas já tinha sido ele que havia desenhado o Rolex Beta 21 de design integrado em 1970 — e foi sobretudo através do Royal Oak, da Audemars Piguet, do Nautilus, da Patek Philippe, e também do Ingenieur, da IWC, que tudo mudou.

Rolex Beta 21 de design integrado © DR
Rolex Beta 21 de design integrado © DR

Esses modelos couraçados (juntamente com outros de outra autoria, como o Laureato da Girard-Perregaux, o 222 da Vacheron Constantin e o Sport Classic da Ebel) lançaram a relojoaria na era moderna e, apesar da evidente robustez, iniciaram o conceito ‘sport élegance’ que foi encarado como pedra filosofal por tantas marcas no último quartel do século XX… e que agora parece regressar em força.

Coleção de Gerald Genta: Royal Oak, Ingenieur e Nautilus.
As três mais icónicas criações de Gérald Genta: o Royal Oak (1972), o Ingenieur (1975) e o Nautilus (1976). © DR

Desportivos de luxo

O toque de pedra foi dado com o Royal Oak. Reza a lenda que Gérald Genta se inspirou nas bocas de canhão octogonais do vaso de guerra da marinha real britânica com o mesmo nome para desenhar o famoso relógio numa noite – aplicando a forma na luneta, por sua vez fixada à caixa monocoque por oito parafusos hexagonais de ouro; o mostrador azul apresentava um padrão picotado Clous de Paris e a bracelete integrada fundia-se na caixa, sendo simultaneamente rígida e flexível. Quando o primeiro Royal Oak foi apresentado em 1972, causou grande alarido na feira de Basileia não só pela sua forma original mas também pelo preço então considerado proibitivo para um relógio de aço em plena crise petrolífera (3.200 francos suíços; o Rolex Submariner custava 280!). Na altura, chegou a ser alvo de chacota e muitos profetas da desgraça vaticinaram mesmo que seria a perdição da histórica manufactura fundada em 1875 por Jules-Louis Audemars e Edward Auguste Piguet. Apesar de um arranque algo titubeante, o resultado prático foi o oposto: com um mecanismo automático de excelente qualidade, sóbrio e de aspecto extremamente robusto com uma estrutura em aço tratado como se fosse ouro, com pouco carbono e crómio, o Royal Oak revolucionou a estética relojoeira e o conceito de relógio desportivo. O modelo ‘Jumbo’ original atinge hoje valores muito elevados nos leilões.

Royal Oak 1972
O Royal Oak ‘Jumbo’ original de 1972, que lançou Gérald Genta para a fama. © Audemars Piguet

Gérald Genta tinha uma visão arquitetural da relojoaria que rapidamente se tornou seguida pelos principais players da indústria relojoeira da altura. E foi convidado a renovar completamente a linha Ingenieur, da IWC, adaptando radicalmente a estética das versões inaugurais de 1954-55 aos seus códigos estéticos integrados. O Ingenieur de 1975 (também designado ‘Jumbo’ ou SL) apresentava-se com um look totalmente novo com caraterísticas de robustez e legibilidade reforçadas. Chegado ao mercado quase em simultâneo com a crise do quartzo, não teve uma produção muito alargada.

IWC Ingenieur 1976
IWC Ingenieur SL de 1975. © IWC

Em 1976, foi a vez da Patek Philippe arriscar. Gerald Genta terá desenhado o Nautilus num guardanapo de papel durante uma refeição; o que fez foi seguir a sua doutrina de design, optando por um formato oval para o mostrador – que, na realidade, é mais um octógono com ângulos suavizados acompanhado por duas charneiras laterais (que com o tempo se tornaram ligeiramente curvas para melhor prolongar o perfil da luneta). O visual original mostrava uma inspiração declaradamente náutica e reportava-se às escotilhas dos antigos transatlânticos, com um sistema de charneira e aparafusamento que fechava hermeticamente as juntas para tornar o relógio estanque a 120 metros – algo de raro nos anos 70.

Gérald Genta © DR
Gérald Genta © DR

Mais uma vez, a construção integrava a caixa e a bracelete; os vários mostradores dégradé eram também caraterísticos da época. Quando a venerável Patek Philippe desvelou o primeiro Nautilus, também baptizado ‘Jumbo’ e muito valioso nos leilões, ficava definitivamente certificado o nascimento do relógio moderno devido ao seu enorme peso histórico: tratava-se de um modelo iconoclasta de grandes dimensões para a altura e arquitetura vanguardista que rompia com o passado clássico da marca.

Patek Philippe Nautilus Jumbo
Patek Philippe Nautilus ‘Jumbo’ de 1976. © Patek Philippe

Fama e marca própria

Gérald Genta também recriou o Pasha da Cartier em 1985, um design marcante de um relógio que granjeou grande popularidade mas que se mantém muito discutível no plano estético.

Cartier Pasha © DR
Cartier Pasha © DR

Entretanto o seu nome tornou-se mundialmente famoso a partir de uma reportagem feita pelos japoneses, que quiseram saber mais sobre o Royal Oak e foram à procura do autor do design — a partir daí, vieram à baila os outros relógios da autoria do suíço e a sua popularidade atingiu patamares bem elevados. A própria indústria começou a lançar para a ribalta os designers das marcas ou freelancers, quando até há não muito tempo o anonimato era a norma e os contratos de sigilo frequentes.

Bulgari Gérald Genta 50th anniversary © Bulgari
Bulgari Gérald Genta 50th Anniversary © Bulgari

Com a reputação em alta, Gérald Genta lançou a sua própria marca. Estabeleceu um acordo com a Walt Disney para usar os seus personagens em modelos cujos ponteiros retrógrados eram os braços deles. Lançou o primeiro relógio em bronze, o GeFiCa (em honra de três grandes caçadores: Geoffrey, Fissore e Canali). E investiu em grandes complicações nunca antes vistas – algumas delas em relógios mirabolantes, cuja estética duvidosa tem de ser colocada em perspetiva: eram frequentemente exercícios de design únicos destinados a clientes muito especiais — como o Sultão do Brunei, na altura o homem mais rico do mundo, e o seu irmão.

Os modelos 'Disney' e um relógio de inspiração mais barroca com a marca Gerald Genta © DR
Os modelos ‘Disney’ e um relógio de inspiração mais barroca com a marca Gerald Genta © DR

Gérald Genta não foi apenas um designer. Foi também o primeiro a colocar o seu nome no mostrador de um relógio de alta relojoaria numa altura em que essa gama de preço e exclusividade estava confinada às seculares manufaturas tradicionais. Considerado um gentleman e um artista, o suíço de ascendência italiana deixou a relojoaria mais pobre aquando da sua morte aos 80 anos de idade, em 2011. A sua mulher Evelyne estabeleceu formalmente a Gérald Genta Heritage Association em fevereiro deste ano para perpetuar o seu legado artístico — na relojoaria e não só.

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