Em Londres | Gérald Genta é porventura o mais famoso de todos os designers na história da relojoaria de pulso. O seu legado foi celebrado num dos painéis de discussão do recente Horology Forum em Londres – mas, para além dos seus ícones mais celebrados (Royal Oak, Nautilus, Ingenieur), há também que recordar alguns modelos que estão na galeria dos mais hediondos das últimas décadas…
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Costuma dizer-se que “os gostos não se discutem”. Eu prefiro dizer que os gostos podem e devem educar-se. Vem o aforismo popular à baila na sequência daquele que para mim terá sido o mais interessante fórum de discussão na agenda do Horology Forum recentemente organizado pela Dubai Watch Week nas instalações da leiloeira Christie’s, em Londres.
Denominado ‘Genta and Daniels Punctual Yet Untimely Legacy’, o painel desenrolou-se perante sala cheia e teve por principal tema o legado intemporal do célebre designer Gérald Genta e do lendário relojoeiro George Daniels – sendo moderador John Reardon, da Christie’s, coadjuvado pelos oradores Roger Smith (mestre relojoeiro discípulo de George Daniels), Fabrizio Buonamassa (designer da Bvlgari, onde trabalha diretamente com alguns traçados originais de Gerald Genta), Michael Tay (patrão da cadeia de retalho The Hour Glass na Australásia), Stacy Perman (autora de livros relojoeiros) e Christine Hutter (co-fundadora da manufatura saxónica Moritz Gressmann). A discussão pode ser vista integralmente através deste vídeo proporcionado pela The WatchesTV:
Apesar de todo o interesse a rodear a vertente relacionada com esse ‘monstro sagrado’ da relojoaria que é George Daniels, eu estava particularmente interessado na parte associada a Gérald Genta – endeusado por muitos no universo relojoeiro e muito elogiado pelo painel no arranque da discussão. E estava particularmente interessado porque, sendo possivelmente Gérald Genta o mais famoso designer da história da relojoaria, sempre tive uma opinião muito forte relativamente a dois aspectos marcantes da sua carreira: o recurso excessivo a um design integrado e couraçado surgido inicialmente no Royal Oak e depois ‘aproveitado’ até à exaustão no Nautilus e no Ingenieur, para além de outros modelos emblemáticos; e a criação de alguns dos relógios mais feios de que me recordo na história da relojoaria de pulso ao mais alto nível, surgidos no final da década de 80 e inícios da década de 90, precisamente quando comecei a debruçar-me mais sobre o universo relojoeiro. Talvez esse primeiro contacto me tenha traumatizado na altura, mas – ao cabo de três décadas e com algum recuo sobre a matéria – o que se pode constatar é que muitas vezes a linha entre o brilhantismo e a catástrofe se afigura muito ténue…
O painel fez pender inconscientemente a discussão mais para o lado de Gérald Genta do que para o de George Daniels, tratando-se de um tema mais ‘popular’. Porque Gérald Genta é mesmo um nome incontornável. Numa altura em que os designers eram anónimos e trabalhavam para várias marcas sem nunca o seu nome ser creditado, o genebrino de pais suíços de ascendência italiana começou por se destacar com o Polerouter da Universal Genève, o primeiro relógio automático dotado de um micro-rotor e destinado a homenagear o primeiro voo comercial sobre o Pólo Norte. Também desenhou o Bvlgari Bvlgari, com a emblemática dupla inscrição na luneta. Colaborou com um importante fornecedor (na altura o design eram mais da responsabilidade das empresas que faziam as caixas, as braceletes ou os mostradores) da Omega e teve influência direta no layout do Seamaster e do Constellation. Também colaborou com a Audemars Piguet a partir de 1953.
Gérald Genta catapultou a relojoaria para a era moderna graças à implementação do design integrado que tanto marcou os psicadélicos anos 70, numa altura em que o experimentalismo estético atingia o seu auge; a negação das formas clássicas redondas com asas tradicionais para a correia foi tal que nessa década quase não se fizeram caixas circulares e o design integrado preconizado pelo helvético em modelos geométricos de ruptura para marcas de topo influenciou a indústria até aos dias de hoje. Poucos se lembram, mas já tinha sido ele a desenhar o Rolex Oysterquartz de design integrado em 1969 – mas foi sobretudo através do Royal Oak, da Audemars Piguet, do Nautilus, da Patek Philippe, e também do Ingenieur da IWC (juntamente com o Laureato, da Girard-Perregaux, e com o 222, futuro Overseas, da Vacheron Constantin, ambos de outra autoria) que tudo mudou entre 1972 e 1976… numa altura em que a chamada crise do quartzo se encaminhava para o auge e lançava a indústria relojoeira suíça numa profunda crise, sobretudo no que diz respeito às empresas de segmento médio e baixo. Esses modelos couraçados de tão prestigiadas manufaturas catapultaram a alta relojoaria para a era moderna e, apesar da evidente robustez, iniciaram o conceito ‘sport élegance’ que foi encarado como pedra filosofal por tantas marcas de luxo no último quartel do século XX.
O advento da era moderna na relojoaria começou precisamente com o Royal Oak. Reza a lenda que Gérald Genta se inspirou nas bocas de canhão octogonais do vaso de guerra da marinha real britânica com o mesmo nome para desenhar o famoso relógio numa só noite – aplicando a forma octogonal na luneta, por sua vez fixada à caixa monocoque por oito parafusos hexagonais de ouro; o mostrador azul apresentava um padrão picotado Clous de Paris e a bracelete integrada fundia-se na caixa, sendo simultaneamente rígida e flexível. Quando o primeiro Royal Oak foi desvelado em 1972, causou grande alarido na feira de Basileia não só pela sua forma original mas também pelo preço então considerado proibitivo para um relógio de aço em plena crise petrolífera (3.200 francos suíços; o Rolex Submariner custava então apenas 280!). Na altura, chegou a ser alvo de chacota e muitos profetas da desgraça vaticinaram mesmo que seria a perdição da histórica manufactura fundada em 1875 por Jules-Louis Audemars e Edward Auguste Piguet. Apesar de um arranque algo titubeante, o resultado prático foi o oposto: com um mecanismo automático de excelente qualidade, sóbrio e de aspecto extremamente robusto com uma estrutura em aço tratado como se fosse ouro (com pouco carbono e crómio), o Royal Oak revolucionou a estética relojoeira e o conceito de relógio desportivo. Tornou-se no pilar da Audemars Piguet e o modelo ‘Jumbo’ original atinge hoje valores muito elevados nos leilões.
Em 1993, nasceu a variante Royal Oak Offshore a partir de uma adaptação do então jovem designer Emmanuel Gueit – que exacerbou os traços do Royal Oak num formato ainda maior e mais robusto. Entrevistei ‘Manu’ Gueit em 2013 e no painel de discussão do Horology Forum tive a oportunidade de revelar que Gérald Genta invadiu então o stand da Audemars Piguet em Baselworld, gritando que tinham arruinado o ‘seu’ relógio; Max Büsser, que hoje faz relógios ‘inconcebíveis’ na MB&F, disse na altura ao seu amigo que o Royal Oak Offshore era um ‘monstro’ que nunca se iria vender. Foi o que se viu: o Royal Oak Offshore levou o conceito de desportivo de prestígio ainda mais longe, arriscando em cores ousadas e materiais de ponta; é hoje o principal bestseller da manufatura de Le Brassus (curiosamente, o Royal Oak Offshore pessoal oferecido pela Audemars Piguet a Emmanuel Gueit estará em leilão no início de Novembro e poderá atingir valores próximos dos 80 mil euros… senão mesmo mais).
Caraterístico design integrado
Gérald Genta tinha uma visão arquitetural da relojoaria que rapidamente se tornou seguida pelos principais players da indústria relojoeira da altura. E foi convidado a renovar completamente a linha Ingenieur, da IWC, adaptando radicalmente a estética das versões inaugurais de 1954-55 aos seus códigos estéticos integrados. O Ingenieur de 1975 (também designado ‘Jumbo’ ou SL) apresentava-se com um look totalmente novo com caraterísticas de robustez e legibilidade reforçadas. Chegado ao mercado quase em simultâneo com a crise do quartzo, não teve uma produção muito alargada – foram feitos apenas 1.000 exemplares, sendo depois criadas novas versões em 1983, 1989 e 1991. Aquando do 30º aniversário do traçado de Gérald Genta, a IWC relançou completamente o Ingenieur em 2005, respeitando esse desenho do lendário designer… para recentemente se desembaraçar das suas caraterísticas integradas, adotando uma caixa redonda mais ‘comercial’ no ano passado.
Em 1976, também a Patek Philippe zarpou para águas nunca antes navegadas – e a histórica manufatura genebrina não podia ter escolhido melhor nome para batizar um relógio de inspiração marítima que cortou com tudo o que tinha feito anteriormente. Reza a lenda que Gérald Genta terá desenhado o Nautilus num guardanapo de papel durante uma refeição; o que ele fez foi seguir e adaptar a sua doutrina de design, optando por um formato oval para o mostrador… que, na realidade, é mais um octógono com ângulos suavizados acompanhado por duas charneiras laterais (que com o tempo se tornaram ligeiramente curvas para melhor prolongar o perfil da luneta). O visual original mostrava uma inspiração declaradamente náutica e reportava-se às escotilhas dos antigos transatlânticos, com um sistema de charneira e aparafusamento que fechava hermeticamente as juntas para tornar o relógio estanque a uns notáveis 120 metros – algo de raro nos anos 70.
Mais uma vez, a construção integrava a caixa e a bracelete; os vários mostradores degradé, atualmente disponíveis nas cores preto/azul e castanho/antracite fumadas, são também uma herança típica da época (embora tivessem igualmente passado a receber a companhia de mostradores brancos). Quando a venerável Patek Philippe desvelou o primeiro Nautilus, também baptizado ‘Jumbo’ e muito valioso nos leilões, ficava então definitivamente certificado o nascimento do relógio moderno já preconizado pelo Royal Oak da Audemars Piguet devido ao seu enorme peso histórico: tratava-se de um modelo iconoclasta de grandes dimensões para a altura e dotado de uma arquitetura vanguardista que rompia com o passado clássico da manufatura genebrina.
Pessoalmente, considero que Gérald Genta vendeu e revendeu o mesmo conceito integrado demasiadas vezes… se bem que com nuances geométricas fundamentais nos modelos mais famosos: octogonal no Royal Oak, redonda no Ingenieur e oval no Nautilus. Depois recriou o Pasha da Cartier em 1985, um design marcante de um relógio que granjeou grande popularidade mas que se mantém muito discutível no plano estético. E entretanto o seu nome tornou-se mundialmente famoso a partir de uma reportagem feita pelos japoneses, que quiseram saber mais sobre o Royal Oak e foram à procura do autor do design – a partir daí, vieram à baila os outros desenhos da autoria do suíço e a sua popularidade atingiu patamares que hoje em dia se mantêm mais elevados do que relativamente a qualquer outro designer do setor. Ficaram para trás os tempos em que vendia desenhos de relógios a 15 francos e foi a partir dele que a própria indústria começou a lançar para a ribalta os designers das marcas ou freelancers, quando até há não muito tempo o anonimato era a norma e os contratos de sigilo frequentes.
Com o ego e a fama em alta, Gérald Genta lançou a sua própria marca. Estabeleceu um acordo com a Walt Disney para usar os seus personagens em modelos cujos ponteiros retrógrados eram os braços deles. Lançou o primeiro relógio em bronze, o GeFiCa (em honra de três grandes caçadores: Geoffrey, Fissore e Canali). E investiu em grandes complicações nunca antes vistas – algumas delas tão mirabolantes quanto… hediondas. Quando, algo cansado do fácil elogio aos óbvios Royal Oak e Nautilus no debate do Horology Forum e fazendo o necessário papel de advogado do Diabo, referi que na minha opinião Gérald Genta tinha sido autor de alguns dos relógios mais feios que já vi, a discussão foi finalmente alargada a uma nova perspetiva e ganhou vida.
Curiosamente, na véspera tinha estado a ver esses designs muito peculiares com outros jornalistas participantes no Horology Forum, beneficiando dos arquivos do meu amigo Carlos Torres – que foi buscar vários exemplos desses relógios de gosto duvidoso (ou datado) que temos a oportunidade de partilhar aqui. No dia seguinte, quando trouxe esses modelos à baila no referido painel de discussão do Horology Forum, Michael Tay esteve muito bem ao responder-me que é preciso colocar em perspetiva esses bizarros relógios com a assinatura de Gérald Genta, entre os quais alguns que mais se pareciam com pirâmides Maia: “eram frequentemente exercícios de design únicos destinados a clientes muito especiais com um gosto muito particular”, disse. Como o Sultão do Brunei, na altura o homem mais rico do mundo, e o seu irmão. “Foi o período barroco de Gérald Genta”, chamou-lhe o nosso colega Jack Forster.
Para concluir, convém recordar que Gérald Genta não foi apenas um designer ou um grande criativo. Foi também o primeiro a ousar colocar o seu nome no mostrador de um relógio de alta relojoaria numa altura em que essa gama de preço e exclusividade estava confinada às seculares manufaturas tradicionais. Juntou-se ao genial mestre Pierre-Michel Golay e idealizou a primeira grande sonnerie de pulso (com carrilhão Westminster de quatro martelos que evoca as notas do Big Ben) para a vendar a um milhão de dólares por alturas de 1994, fez das horas saltantes e dos ponteiros retrógrados um exercício de estilo relojoeiro ainda hoje muito utilizado. Ou seja, contribuíu muito para o renascimento da grande relojoaria mecânica. E também no aspeto de fundar uma marca epónima foi um visionário, sendo seguido no início da década de 90 por Daniel Roth (posteriormente, os dois fundadores venderam as marcas com o seu nome ao grupo The Hour Glass de Michael Tay, antes de serem compradas e absorvidas – tanto no plano estético como técnico – pela Bvlgari) e logo depois por Franck Muller e todos os outros. Considerado um gentleman e um artista, o designer suíço de ascendência italiana deixou a relojoaria mais pobre aquando da sua morte aos 80 anos de idade, em 2011.
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