O tempo está morto. Viva o tempo.

De Einstein a Rovelli, passando por Aristóteles e Newton, uma viagem pelos meandros do tempo que culmina na proposta de um relógio conceptual que nos dá a volta à cabeça.

Albert Einstein usava um Longines de pulso que lhe foi, provavelmente, oferecido em 1931 e que acabaria por ser vendido, em 2008, por 74.000 francos suíços. Talvez tenha sido com este Longines no pulso que concluiu que o tempo não passa uniformemente, passando, por exemplo, mais lentamente no vale do que na montanha. Uma diferença mínima, porém, nada que o Cesium 133, um relógio atómico de pulso, não consiga medir, visto perder apenas um segundo em mil anos.

A ideia de que o tempo não é o mesmo para todos os humanos pode ser chocante, tal como o foram as ideias de que o mundo não é plano, ou de que o Sol não gira em torno da Terra. A estranheza vem apenas de erros de percepção. Ainda não conseguimos ler bem o Universo, não conhecemos a sua gramática mais básica. Einstein pode ter tido a percepção facilitada, visto que em jovem trabalhou no Instituto Federal Suíço de Propriedade Intelectual, em Berna, onde tratou de patentes acerca da sincronização de relógios entre estações ferroviárias.

Albert Einstein, Longines
Albert Einstein (© Museu Histórico de Berna) e o seu relógio Longines. © Longines

Noções de tempo

Setenta e sete anos após o nascimento de Albert Einstein, e a 421 km de Berna, nasceu, em Verona, Carlo Rovelli que, no seu livro A Ordem do Tempo, viria a apresentar, da forma mais clara possível, a ideia de que o tempo como o conhecemos morreu. Camada a camada, o físico italiano vai destruindo as noções pré-concebidas sobre o mecanismo do tempo: o tempo não é único, o tempo não tem orientação, o presente não faz sentido no Universo, e o tempo não pode ser visto como independente. Esta desconstrução começa pela ideia de que o tempo não é único — no vale, onde o efeito da gravidade é mais forte do que na montanha, o tempo é mais lento. Na planície alentejana, portanto, envelhece-se mais lentamente do que no topo do vulcão do Pico. Seguindo depois para a ideia de que o tempo não tem orientação, Rovelli explica que o passado, o presente e o futuro não seguem necessariamente esta ordem: se eu olho para o Cesium 133 e vejo as 12h00, é a luz que viaja dos ponteiros até aos meus olhos que eu vejo. Vejo as 12h há um nanosegundo atrás; o meu presente nunca coincide com o momento em que as coisas acontecem. O meu presente é o passado dos outros. O que é então o tempo? O passado já não existe, o futuro ainda não existiu… e o presente? Existe? O que é o presente? Este preciso segundo? Este milésimo de segundo? Carlo Rovelli explica tendo como exemplo Max Plank, que define o tempo como sendo mensurável até 10–43 segundos. Para frações inferiores, é necessária uma teoria de mecânica quântica. Por fim, é abordada a ideia de que o tempo não é independente, variando em função da gravidade e da velocidade.

Efetivamente, no seu livro A Ordem do Tempo, Rovelli conta várias histórias ligadas a defensores da inexistência do tempo: Leibniz retirou o ‘t’ do seu nome (antes Leibnitz), como forma de acentuar que o tempo não existe; para Aristóteles, o tempo era a medida da mudança das coisas, estando intimamente ligado às coisas, aos acontecimentos; já Isaac Newton sugeriu, pela primeira vez, a existência de um tempo teórico e independente que flui por si só. Esta é ainda a nossa ideia de tempo.

A mecânica quântica

Como vimos, Aristóteles dizia que o tempo é o da medida das coisas; Newton dizia que o tempo flui por si só; e Einstein, que o tempo não é único, nem independente. O tempo foi retirado às coisas, teorizado e depois destruído como conceito. O tempo não é um bom mecanismo para medir acontecimentos ou mudanças. Neste sentido, o tempo está morto. Então como funciona o Universo sem tempo? O que medem os relógios? A mecânica quântica parece ser a única solução. Vamos, então, debruçar-nos sobre as partículas muito pequenas. Todos sabemos que existem átomos constituídos por electrões, protões e neutrões, e todos aprendemos que os electrões são partículas com carga negativa. Se quisermos observar um electrão, conseguimos fazê-lo, o que nos leva a crer que se comporta como uma partícula que se pode encontrar no tempo e no espaço. Mas aqui também há um problema de percepção. Recentemente, foi sugerida a teoria de que os electrões funcionam como ondas e que, quando são observados, a função de onda colapsa; ou seja, quando não são observados, não podem ser definidos com exactidão no espaço e no tempo. Nós somos assim o resultado de um aglomerado de partículas muito pequenas onde o tempo não tem lugar.

Arceau Le Temps Suspendu, Swiss Alp Watch Minute Repeater Concept Black
Arceau Le Temps Suspendu (à esq) © Hermès; Swiss Alp Watch Minute Repeater Concept Black (à dta) © H. Moser & cie

Desta forma, podemos dizer que Einstein matou o tempo que Newton nos deixou e que os nossos pais e professores nos ensinaram. Agora, resta-nos um tempo inexistente. Precisamos, por isso, de uma alternativa à ideia de tempo, urgentemente. Precisamos de pensar de outra forma sobre o tempo e, neste contexto, os relógios têm de redescobrir a sua função. Para já, existem propostas interessantes, os que secundariam a função de medir como o Arceau Le Temps Suspendu da Hermès ou o Swiss Alp Watch Minute Repeater Concept Black da H. Moser; ou os que criam novos acontecimentos como os RM 69 Erotic Tourbillon da Richard Mille, ou o Blackjack da Christophe Claret.

RM 69 Erotic Tourbillon, Blackjack Christophe Claret
RM 69 Erotic Tourbillon (© Richard Mille) e Blackjack. © Christophe Claret

Os relógios ajudam-nos a perceber o mundo, não devem por essa razão lutar contra o caos que nos rodeia, devem aceitá-lo. Proponho por esta razão um relógio conceptual que evidencia o contraste entre a precisão linear do tempo e o caos que nos rodeia.

Zero: o ponto de partida

O mostrador do relógio conceptual que imagino teria de ser preto para simbolizar a morte do tempo como nós o conhecemos e deveria ser encarado como uma janela para o universo verdadeiro tal como é: caótico e imprevisível. Entre o mostrador e o vidro iria pairar apenas uma nuvem. A nuvem é uma organização caótica composta por fractais. Está sempre em mudança, permite-nos reconhecer formas familiares, permite-nos projectar nessas formas os nossos pensamentos, à semelhança do que acontece no teste das manchas de tinta de Rorschach. Com este relógio, o leitor iria finalmente poder colocar os seus pensamentos na cloud. Se acha o turbilhão hipnótico, imagine uma nuvem em alteração constante. O calor do nosso corpo seria o responsável pela criação e pela alteração das formas da nuvem. E o tempo? O tempo seria anunciado por uma vibração resultante da ligação entre um módulo de repetição de minutos a um despertador mecânico — uma vibração por cada hora, duas por cada quarto de hora e novamente uma por cada minuto. Teria de ser automático, sem coroa, como o Futurematic da Jaeger-LeCoultre, e ter apenas um único botão deslizante responsável por indicar as horas. Com este relógio ficaria reposta a verdade acerca do universo e seria assinalado o esforço da humanidade por encontrar uma constante num universo caótico. Poderia chamar-se Zero — um ponto de partida para a verdade.

[Crónica originalmente publicada no número 70 da Espiral do Tempo]

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