Pot-pourri relojoeiro!

Sempre o mesmo desafio, sempre o mesmo problema! Não porque falte tema para as crónicas da Espiral do Tempo, mas porque felizmente a boa relojoaria dá sempre pano para mangas, onde a verdadeira dificuldade é escolher qual o tema mais relevante a abordar. Pois desta vez decidi recorrer ao clássico pot-pourri. Não só porque é um estrangeirismo que sempre me fascinou, mas também porque tem um significado que assenta que nem uma luva ao atual status-quo do setor da relojoaria mecânica.

E, claramente, quando puxamos o ‘fio da meada’ (há que tirar o chapéu à riqueza da língua portuguesa e da língua francesa) vem logo à baila o tema do recente SIHH, o Salão de Alta- Relojoaria de Genebra, que decorreu no passado mês de janeiro! Mas não se enganem, porque não me vou focar na clássica análise do best of show. Passo antes diretamente a outras questões que podem ser consideradas assim como que…paralelas.

Neste caso, vem-me à memória o anúncio da Audemars Piguet que, além de ter participado a duplicação da faturação em pouco mais de seis anos, aproximando-se agora dos 10 dígitos, decidiu também atirar-se de cabeça no mundo do e-commerce. Um passo que está a ser dado por cada vez mais marcas, que se baseiam no argumento de que a localização das suas boutiques não deve de forma alguma limitar o acesso dos consumidores, onde quer que eles estejam, aos seus relógios. Afinal, um argumento similar ao apresentado pelo retalho clássico ao longo de anos, e a quem sempre foi negada esta oportunidade.

O facto é que, depois da notável coragem e espírito de iniciativa do site norte americano Hodinkee, ao literalmente inaugurar uma nova era no campo da venda dos chamados ‘relógios de luxo’ na Internet, parece terem-se aberto as comportas com dezenas de marcas a anunciar páginas de e-commerce globais ou, num ritmo mais lento, mercado a mercado.

Mas voltando à Audemars Piguet, que prepara uma nova linha clássica destinada a substituir a saudosa Louis Audemars, houve um outro anúncio que merece ser mencionado. É que a marca de Le Brassus decidiu acrescentar ao seu portefólio de modelos vendidos nas suas boutiques, modelos em segunda mão, devidamente recondicionados e garantidos para o que der e vier. Um piscar de olho aos cerca de 8 biliões de dólares que se estima ser hoje o valor do mercado de relógios usados e vintage. Uma área apetecível, já reconhecida por François Paul-Journe, que, durante os últimos leilões de Genebra, observei na aquisição de alguns modelos históricos da sua própria casa destinados a serem restaurados e disponibilizados nas suas boutiques de Genebra, Paris, Tóquio, Nova Iorque, Los Angeles, Miami, Hong Kong, Beirut e Kiev.

Mas se do lado do Maitre, a escassez de modelos não constitui qualquer motivo de preocupação para a estrutura da manufatura da rue de L´arquebuse, no caso da Audemars Piguet, assim como de outras marcas prestes a entrar neste campo, fica a pergunta de como será possível justificar o tempo e atenção necessários por parte dos relojoeiros para o devido mise-au-point destes relógios? E isto, quando do lado dos famosos SAV (vulgo assistência técnica), são amplamente conhecidas as dificuldades em lidar com as manutenções recomendadas e os ocasionais problemas que surgem nos modelos mais complicados com apenas dias de uso. Serviços que, mais vezes do que menos, necessitam entre seis a 12 meses (ou mesmo mais) para restituir o relógio ao seu legítimo dono.

O facto é que o SIHH deste ano foi fértil em novas abordagens em que ter os pés bem assentes na terra era definitivamente a palavra de ordem. Assim, não foi com grande surpresa que se viu uma política quase transversal a todas as marcas em propor modelos mais simples (o que em alguns casos quis dizer mais desprovidos de alma) por valores mais sensatos e que o consumidor reclamava há já alguns anos. O caso da coleção Polaris da Jaeger-LeCoultre foi um excelente exemplo disso. Apenas se lamenta que a Grande Maison tenha sentido a necessidade de recorrer a temas paralelos ao da relojoaria mecânica para compor o stand que apresentou ao público. Carros e sapateiros, por mais extraordinário que seja o trabalho e a arte da familia Fagliano, são habitualmente o recurso de casas para quem a legitimidade relojoeira é ainda uma ambição…. Acho sinceramente que a Maison tem substância suficiente para não necessitar de recorrer a estes métodos de comunicação. Afinal, alguma vez alguém viu um relógio a decorar o espaço central de um stand de uma marca automóvel?

E este tema leva-me inevitavelmente até ao stand da A.Lange & Söhne, onde, como já começa a ser tradição, a manufatura saxónica decidiu erigir aos olhos de todos uma extraordinária versão macro do incrível Triple Split que este ano coroou a oferta da casa de Glashütte. O vídeo de produção desta verdadeira réplica será provavelmente a única forma de verdadeiramente compreender o trabalho, atenção e dedicação que se esconde por detrás do conceito. Na Lange, não parecem sofrer de falta de inspiração relojoeira no que toca a comunicar aquilo que faz de um Lange… um Lange.

Finalmente uma menção honrosa à excelente estreia e participação da La Montre Hermès neste SIHH. Uma marca que tenho acompanhado desde o início e cuja arte e mensagem nunca desiludem, como comprova o lançamento do belíssimo Carré H.

Já agora, a propósito de pot-pourri… embora o termo signifique literalmente “vaso podre” em francês, pode também fazer referência a um jarro com uma mistura de pétalas de flores secas e especiarias utilizada para perfumar o ar.

Vão ter de concordar, o mundo da bela relojoaria é realmente um verdadeiro pot-pourri!

Outras leituras