Porque é que gostamos de relógios?

Esta não é uma pergunta tão simples quanto o que aparenta. Sentimos mesmo alguma inquietação se nos dedicarmos a pensar no assunto. Entre a inquietação da pergunta e o apaziguamento da resposta vamos conhecer um Cadillac chuvoso, um hipopótamo cortador de charutos e a origem do bacalhau à Brás.

Imagem de abertura: © Magda Pedrosa / Espiral do Tempo


Crónica originalmente publicada no número 75 da Espiral do Tempo (edição de verão 2021)


O Sr. Braz viveu no Bairro Alto no Séc. XIX. Provavelmente foi um grande inventor. Ou talvez não, não sabemos. Sabemos que ficou conhecido pela sua óptima receita de bacalhau. Os espanhóis chamam-lhe revuelto de bacalao a la portuguesa. Se pensarmos bem, na culinária, o processo de criação é muito semelhante ao de outras áreas: primeiro surge a ideia, depois executa-se, escreve-se e, por fim, repete-se. Algo semelhante acontece também na criação de um relógio: surge uma ideia, desenha-se, executa-se e repete-se. Já na criação de uma pessoa, o procedimento é mais complicado, especialmente a parte da repetição. As pessoas não se repetem. São demasiado complicadas.

Bizarria artística

Educações semelhantes podem produzir traços de personalidade semelhantes. Porém, felizmente, o caos que nos envolve impede-nos de alcançar uma repetição exacta. Vamos ver o exemplo de duas pessoas com uma expressão artística mais bizarra do que o normal. 

O primeiro é o dinamarquês Robert Storm Petersen. Ao pai de Robert, surgiu a ideia de criar Robert. Ou então não surgiu e criou-o igualmente, não sabemos. Robert nasceu, sabemos isso. Após o seu nascimento, o seu pai manteve a profissão de talhante, na Dinamarca. Era proprietário de duas lojas e de um terreno com gado vacum e suíno. Robert gostava muito dos seus pais, mas viveu no mundo do talho tempo suficiente para perceber que nunca iria ser um bom talhante. Dedicava-se preferencialmente a desenhar invenções. Invenções de máquinas extremamente complicadas que realizavam tarefas extremamente simples. Conta-se que foi expulso da escola por organizar uma manifestação a favor de um estudante injustiçado. Quando cresceu, tornou-se um famoso desenhador, actor e inventor. É autor dos primeiros desenhos animados dinamarqueses. Editou vários livros com desenhos das suas invenções. Há um livro que as reúne todas: alle opfindelser (o inventor). Ficou conhecido mundialmente como Storm P. A receita para criar uma personalidade com bizarria artística poderá, portanto, consistir na educação de uma criança num talho. É de salientar que esta não é a mais científica das conclusões. 

Outro exemplo conhecido é o de Salvador, um artista que nasceu em Figueres, uma linda aldeia próxima de Barcelona, uns 20 ou 30 anos mais tarde do que Storm P. O seu pai não era talhante, sabemos que era advogado. Sabemos também que estas são profissões diferentes. Porém, à semelhança de Storm P., surgiu em Salvador uma personalidade recheada de extravagância. O seu nome completo era Salvador Felip Jacint Dalí i Domènech e ficou conhecido como Salvador Dalí. 

Se analisarmos cuidadosamente o desenvolvimento infantil de Salvador e de Robert, vamos perceber que, aparentemente, não há semelhança nos seus processos de educação, havendo claramente uma forma de expressão comum: a deliciosa bizarria 1

Richard Lange Tourbillon Pour Le Mérite
Richard Lange Tourbillon Pour Le Mérite | © A. Lange & Söhne

O cortador de charutos e o táxi chuvoso

Uma das invenções de Storm P. consiste num aparelho de cortar a ponta dos charutos. Muito útil para quem fuma charutos. Este engenho é composto por uma fábrica de carvão que produz um sistema de vapor, que faz rodar umas rodas dentadas sobre as quais passa uma correia de ferro que sustem um peso de 500 toneladas. Quando activado, este peso desce delicadamente sobre a cabeça de um hipopótamo, o que leva a que o animal cerre os dentes. O charuto deve ser introduzido entre os dentes do hipopótamo para que a ponta seja eficazmente cortada. Não se trata de um sistema simples.

Salvador Dalí criou também vários engenhos, porém, com menos aplicação prática. São de salientar especialmente os táxis chuvosos. Conta a história que Gala, a sua esposa, lhe ofereceu um Cadillac. Só havia seis no mundo, entre eles um que era propriedade do presidente dos EUA da altura e outro de Al Capone. O Cadillac de Dalí acabou transformado numa instalação artística, em Figueres, no Museu Dalí. Quando se visita o museu, pode ver-se dentro do Cadillac um motorista e dois passageiros. Chove lá dentro, a água cai do tejadilho do carro. Por trás do carro está uma coluna feita de pneus com um barco no topo, a uns sete metros de altura, virado de cabeça para baixo, ao qual estão presas umas gotas de água estáticas. É uma criação bizarra. 

A complicada tarefa de mover três ponteiros

Os relógios mecânicos não são actualmente menos bizarros do que as criações destes dois artistas. Não se cortam charutos com hipopótamos, não se transformam Cadillacs raros em táxis chuvosos, e as horas podem ser vistas nos telemóveis. Existem vantagens na simplificação dos processos, mas também existem vantagens na sua complicação. Talvez o estabelecimento de uma ordem ajude a compreender melhor quando simplificamos e quando complicamos. O termo ‘necessidade básica’ define uma necessidade que não é complicada, que vem primeiro do que tudo o resto. Um astronauta, por exemplo, não cozinha bacalhau à Brás, deve apenas suprir uma necessidade básica, sem a complicar. Já no Bairro Alto, no século passado, Braz pôde complicar a necessidade básica da alimentação, e todos lhe ficámos gratos. A segurança vem normalmente antes do prazer. Simplificamos para nos sentirmos seguros, complicamos para sentirmos prazer. 

Com os aparelhos electrónicos temos a segurança de que sabemos a hora exacta. Os relógios mecânicos já não são os principais responsáveis por indicar a hora mais precisa, e é isso que, na actualidade, lhes permite ser uma excelente fonte de prazer. A quantidade de peças que constituem um relógio pode ir até 1700. O que fazem 1700 peças minúsculas em interação constante entre si? Movem três ponteiros. Actualmente a criação de relógios mecânicos, especialmente os complicados, convenhamos, é uma ideia absolutamente bizarra. Como o Sr. Braz descobriu, não se trata de segurança, trata-se de prazer. É esta a razão pela qual gostamos cada vez mais de relógios. 


1. A origem do bizarro – A palavra ‘bizarro’ pode ter surgido de bizza, do italiano, que significa colérico ou de bizar, original do basco que significa barba cerrada, um termo mais usado pelos franceses que achavam este tipo barbas extravagantes. O que é bizarro é o que foge à norma e a fuga à norma é a melhor arma no combate contra o aborrecimento. A bizarria prende-nos o olhar, especialmente quando o nosso olhar está sedento de novidade. O excesso de bizarria, porém, causa um grande desconforto. Uma bizarria muito crua também causa desconforto. O segredo está na quantidade certa e na forma. A forma é muito importante. Também podemos ser bizarros apenas na arte, a arte permite uma digestão mais fácil da bizarria.

Outras leituras