Segundos mortos: o efeito Lázaro

EdT54 — Não aparenta ter nenhuma utilidade prática, mas o seu funcionamento é fascinante. Os chamados «segundos mortos» antecederam o desenvolvimento do cronógrafo e são hoje uma complicação pouco comum, mas bastante apreciada.

Originalmente publicado na Espiral do Tempo 54.

Para os menos atentos ao mundo da relojoaria mecânica, a observação visual de um relógio de pulso com um ponteiro de segundos que salta, em vez de deslizar, para a posição seguinte é prova quanto baste para o relegar para o grupo da difamada classe de relógios cuja cadência é controlada pela vibração de um cristal de quartzo.

Segundos mortos: Jaeger-LeCoultre Geophysic® True Second
Geophysic® True Second © Jaeger-LeCoultre
| Foto de abertura: Mecanismo da complicação true seconds do Calibre 770 que equipa os novos Geophysic® True Second © Jaeger-LeCoultre

Mas se esse salto for acompanhado pelo secular tiquetaque, tão caraterístico da relojoaria mecânica, então teremos a certeza de que estamos perante um raro exemplar de um relógio mecânico com uma complicação conhecida como «segundos mortos». Uma designação, é certo, um tanto ou quanto mórbida para uma complicação relojoeira, mas que traduz na perfeição o efeito de repouso do ponteiro que resulta do seu funcionamento.

É que a esmagadora maioria dos relógios mecânicos sempre apresentou um ponteiro de segundos com um movimento aparentemente ‘deslizante’, que é nada menos que o resultado de cinco pequenos saltos, no caso de um balanço a oscilar a 18.000 alternâncias/hora (2,5 Hz), ou seis, no caso de oscilar a uma frequência de 21.600 alternâncias/hora (3,0 Hz).

No caso dos segundos mortos, é um mecanismo montado entre o órgão regulador e o ponteiro de segundos que impede a normal progressão deste último. Este mecanismo liberta o ponteiro dos segundos apenas depois de ter decorrido um segundo completo.

Segundos mortos: Tourbillon Souverain
Tourbillon Souverain (esquema) © F.P. Journe Invenit et Fecit Tourbillon Souverain

Desta forma, o ponteiro parece ‘morrer’  após cada segundo, apenas para ressuscitar com o intuito de completar o movimento seguinte, justificando assim a sua peculiar designação traduzida do inglês «dead seconds», mas que outros preferiram designar com nomes distintos em diferentes alturas. No final do século XVIII, Breguet chamou-lhe «secondes d’un coup» (segundos de uma só vez), enquanto alguns relojoeiros britânicos preferiram chamar-lhe «jumping seconds» (segundos saltantes).

A origem histórica dos segundos mortos está intimamente ligada ao desenvolvimento da medição precisa do tempo em relógios de bolso. É que pouco depois do aumento de precisão resultante da aplicação da mola em espiral, em 1675, pelo relojoeiro inglês Thomas Tompion, também os relógios de bolso passaram a contar com um ponteiro de segundos aplicado num contador acima das 6 horas.

Passado pouco mais de um século, a indicação de segundos central, cuja produção era bastante mais exigente, tornou-se moderna, mas carecia de uma indicação precisa suscetível de ser medida com rigor, um aspeto essencial na observação astronómica ou nas experiências científicas cujas descobertas definiram o Século das Luzes.

Segundos mortos: Jaquet Droz Grande Seconde
Grande Seconde © Jaquet Droz

É que enquanto a passagem de cada segundo é fácil de ver e ouvir num relógio de pêndulo real (pêndulo de um segundo ou 1 Hz, onde a vara mede cerca de um metro — 0,994 metros), nos mais diminutos mecanismos de cronómetros de marinha ou relógios de bolso, o facto de a frequência de funcionamento ser superior dificultava esta tarefa, uma vez que o ponteiro de segundos se movimentava a um ritmo mais elevado. Um aspeto que, entre outros problemas, não facilitava a sincronização exata de um relógio ao segundo, tal como era exigido, por exemplo, pela navegação. Como consequência, os relojoeiros começaram à procura de soluções criando uma série de complicações destinadas a satisfazer esta nova necessidade.

A primeira solução passa por fazer parar o próprio movimento, o princípio por trás do relógio com segundos mortos de Romilly, em 1754, e descrito na famosa enciclopédia de Diderot & d’Alembert. Também LeRoy e Lepine viriam a propor soluções semelhantes.

Segundos mortos: Arnold & Son Constant Force Tourbillon
Constant Force Tourbillon © Arnold & Son

Mas neste período que antecedeu o atual escape de âncora, o movimento de recuo do ponteiro dos segundos central provocado pelo funcionamento caraterístico do escape de vírgula era bastante notório e dificultava a medição e a leitura precisa do tempo. Apenas poucos relógios contavam com um escape de cilindro ou bloqueio (detente) que não mostrava este recuo.

A solução deste problema apontava para a inclusão de um segundo trem de engrenagens que permitisse ao ponteiro de segundos ser parado e reiniciado sempre que necessário, independentemente do mecanismo que impulsionava os ponteiros das horas e dos minutos.

Em 1777, a invenção de um movimento com segundos mortos independentes ao centro pela mão do relojoeiro genebrino Jean Moïse Pouzait tem assim de ser encarada como uma façanha de relevo. Com esta invenção, o ponteiro de segundos central passava a poder saltar com exatidão e sem nenhum recuo de um marcador de segundos para o outro, podendo ainda ser parado sem interferir com o normal funcionamento do relógio.

Este sistema de segundos mortos independente foi produzido apenas durante algumas décadas. A evolução desde sistema durante o século XIX, juntamente com a função de retorno a zero, acabaria por dar origem ao cronógrafo como o conhecemos hoje.

Segundos mortos
Rolex Ref. 6556 Tru-Beat © Antiquorum

Poder-se-ia pensar que a história desta complicação ficaria por aqui, mas o facto é que, durante a segunda metade do século XX, os segundos mortos foram brevemente reintroduzidos por marcas como a Doxa, a Rolex (Ref. 6556 Tru-Beat) ou a Omega (Synchrobeat), provavelmente para fazer face à novidade representada pelo quartzo.

Apenas recentemente, com diversas marcas a quererem destacar-se umas das outras, os segundos mortos ganharam um novo fôlego. O virtuoso François-Paul Journe parece ser o primeiro relojoeiro contemporâneo a incluir esta complicação ao lançar, em 2004, o magnífico Tourbillon Souverain com força constante e segundos mortos.

Segundos mortos: F.P. Journe Tourbillon Souverain
F.P. Journe Invenit et Fecit Tourbillon Souverain © Espiral do Tempo / Susana Gasalho

Em 2007, Maria Kristina e Richard Habring, a dupla austríaca da Habring², são os primeiros a lançar um relógio moderno cuja principal complicação são os segundos mortos. Para tal, utilizaram o antigo calibre 116 da Chézard, produzido originalmente pela Doxa e baseado num A. Schild 1604B.

Segundos mortos: Habring2 Jumping Seconds Pilot
Segundos mortos: Jumping Seconds Pilot © Habring2

No ano seguinte, é a vez da Audemars Piguet propor os segundos mortos no Millenary Ref. 26091 com calibre 2905, seguindo-se, em 2010, o One Hertz dos independentes irmãos Grönefeld. Uma peça que se destaca por dispensar a força constante, optando em alternativa por dois tambores de corda, um dos quais associado a um sistema autónomo encarregue de movimentar apenas o ponteiro dos segundos.

Segundos mortos: Grönefeld One Hertz
One Hertz © Grönefeld

2011 e 2013 vê a DeBethune propor, respetivamente, o DB25T e o DB16. Peças com um design e uma mecânica fora do comum que antecedem, em 2014, aquele que é atualmente o relógio que melhor celebra a complicação dos segundos mortos.

Segundos mortos: DeBethune DB16
DB16 (fundo) © DeBethune

O Arnold & Son DSTB, abreviatura de Dial Side True Beat, revela de forma espetacular, sobre o mostrador, o que é, para esta manufatura, um mecanismo de segundos mortos. O DSTB seria lançado a par de uma outra peça de relevo produzida pela Arnold & Son. O CTB é um cronógrafo que utiliza a complicação dos segundos mortos tanto para os segundos correntes como para a indicação de segundos do cronógrafo, ambas colocadas ao centro.

Segundos mortos: Arnold & Son DSTB
DSTB (Dial Side True Beat) © Arnold & Son

2015 acaba por ser o ano em que mais marcas incluíram a complicação de segundos mortos na suas coleções. A Jaeger-LeCoultre inclui-a no calibre 770 do Geophysic® True Second; a Jaquet Droz, no Grande Seconde; a renascida Angelus, no U10 Tourbillon Lumière; a Leroy, no magnífico protótipo Osier Chronomètre à Tourbillon ; a Dewitt, no Academia Out of Time; e a Arnold & Son voltaria à carga associando os segundos mortos a um turbilhão de força constante.

E a vaticinar mais um ano de relevo para esta complicação, um dos modelos mais badalados apresentado durante o recente Salon International de la Haute Horlogerie (SIHH) foi o A. Lange & Söhne Richard Lange Jumping Seconds. Um relógio no qual o novo calibre L094.1 da manufatura saxónica distribui as suas indicações de forma semissobreposta sobre o mostrador, dando destaque aos segundos mortos cuja escala ocupa uns bons 2/3 do mostrador. O aspeto incrível neste modelo, limitado a apenas 100 exemplares, é a possibilidade de ver o sistema de força constante carregar e impulsionar, a cada segundo, o respetivo ponteiro. E, claro, não podia faltar um sistema de colocação a zero do ponteiro de segundos sempre que se puxa a coroa. Afinal, a melhor forma de acertar ao segundo o Richard Lange Jumping Seconds. Finalmente, para este relógio, a Lange entendeu que não fazia sentido incluir uma reserva de marcha clássica indicada através de uma escala. O pequeno triângulo intersetado pelos três círculos sobre o mostrador executa esta função e passa a vermelho assim que faltarem dez horas para se esgotar a corda.

Segundos mortos: Richard Lange Jumping Seconds
Richard Lange Jumping Seconds © A. Lange & Söhne

Em resumo, os segundos mortos serão provavelmente a complicação relojoeira mecânica mais contraintuitiva da atualidade, mas uma que aparenta ter uma atração irresistível tanto entre relojoeiros como entre colecionadores ou simples apreciadores dos medidores do tempo.

Afinal, este verdadeiro efeito Lázaro, repetido ad aeternum sobre o mostrador, onde, tal como o personagem bíblico, o ponteiro ‘morre’ para ressuscitar ao fim de apenas um único e preciso segundo, revela-se verdadeiramente irresistível a um qualquer observador já devidamente rendido aos encantos da relojoaria mecânica. ET_simb

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