Patenteado em 1801 por Abraham-Louis Breguet, o turbilhão celebrou 220 anos em 2021. Depois de uma longa história, o dispositivo criado para corrigir os efeitos nocivos da gravidade ou atração terrestre sobre o isocronismo do sistema balanço-espiral acabaria por ser devidamente adaptado aos relógios de pulso, de tal forma que, hoje, tem mais utilidade como espetáculo estético do que como espetáculo cronométrico.
Artigo originalmente publicado no número 77 da Espiral do Tempo (inverno 2021)
A conceção e construção dos primeiros relógios mecânicos ocorre, indubitavelmente, na Europa dos finais do século XIII, sendo a mais indelével das marcas do início da hegemonia científica e tecnológica do Velho Continente em relação ao resto do mundo. É plausível que os maquinismos primitivos fossem apenas os temporizadores e reguladores do movimento dos planetas nos modelos astronómicos, então elevados a suprassumo da materialização do conhecimento humano. A função de medir e marcar os tempos da vida social de maneira percetível, visível ou audível será, eventualmente, uma consequência lógica e quase imediata do aproveitamento prático de tais mecanismos. Já com funções horológicas bem definidas, essas máquinas, embora muito engenhosas para a época, permaneceram algo rudimentares e limitadas na precisão das suas medições durante mais de dois séculos, devido às limitações do regulador de foliot, por não possuir uma força de chamada ao ‘ponto morto’, ou seja, à posição de base ou de equilíbrio de um movimento oscilatório. O aproveitamento da energia fornecida pela elasticidade de uma mola enrolada em forma de espiral, a partir de meados do século XV, veio permitir libertar o relógio da sua posição fixa, devida aos pesos-motores, e torná-lo amovível ou portátil.
Séculos XVII e XVIII — revolução e êxtase da relojoaria mecânica
O Renascimento iniciara o processo de libertação das consciências e de abertura de horizontes à mente humana. Na Europa central e setentrional, a Reforma, ao contestar o obscurantismo eclesiástico que diabolizava as máquinas e a própria ciência, veio exponenciar essa abertura de espírito, propiciando uma revolução científica sem precedentes na história da humanidade. Ora, a medição precisa do tempo é uma exigência básica de qualquer processo científico. A utilização do pêndulo como regulador, idealizada por Galileu e concretizada por Huygens, em 1657, promoveu um salto qualitativo extraordinário na exatidão da medição do tempo.
Estimulado pelo êxito do seu relógio de pêndulo, Christian Huygens (1629-1695), cientista de elevado gabarito nos domínios da Física, Matemática e Astronomia, nunca mais deixou de se ocupar dos problemas da medição do tempo, tendo idealizado, em 1675, uma fina mola em espiral para criar a força de retorno ao ponto morto de que o oscilador dos relógios portáteis carecia. Esta mola, que devido à sua finíssima espessura viria a ser denominada «cabelo», teria tal impacto na melhoria da precisão dos relógios portáteis que ainda hoje é utilizada.
A partir de então e durante todo o século XVIII, a relojoaria evoluiu a um ritmo nunca antes imaginado. Considerada como a sublimação da mais fina mecânica, foi objeto do interesse e dedicação de uma plêiade de geniais artesãos e cientistas, que estudaram afincadamente e resolveram os seus problemas mais intrincados. Não havia dúvida de que as questões mais difíceis de resolver nos aparelhos horários estavam relacionadas com os seus órgãos capitais: o escape e o regulador; determinantes para o objetivo final de medir o tempo com rigor. Por exemplo, o efeito nefasto das variações de temperatura sobre o período do oscilador mereceu a atenção dos grandes cronometristas, sendo o balanço bimetálico uma das soluções mais difundidas. É no aperfeiçoamento destes órgãos que se vão empenhar todos os relojoeiros dignos desse mister, numa Europa em mutação acelerada. Londres tornara-se no centro cosmopolita, onde a atividade económica decorrente da expansão marítima e a instabilidade religiosa vivida em França faziam afluir um grande número de artífices altamente qualificados, que iriam ter enorme importância no incremento de alguns ofícios, nomeadamente dos ligados à relojoaria.
Um século de supremacia da relojoaria britânica
A inegável supremacia que a relojoaria britânica patenteou entre finais do século XVII e o terceiro quartel do século XVIII, deve-se sobretudo a um escol de relojoeiros onde pontificaram Thomas Tompion (1639-1713), Daniel Quare (1649-1724), Georges Graham (1649-1751), John Harrison (1693-1776), que resolveu o problema das longitudes, até então considerado insolúvel, John Ellicott (1702-1772), Thomas Mudge (1715-1794), inventor do escape de âncora com palhetas de rubi, génese da âncora suíça, John Arnold (1736-1799) etc., para citar apenas alguns dos mais proeminentes, sem ser exaustivo nem maçador. No entanto, não se pode menosprezar o valioso contributo dos relojoeiros emigrados do continente. Apenas a título de exemplo, lembremos que grande parte da excelência qualitativa da relojoaria inglesa neste período tinha como grande trunfo a utilização de componentes em rubi. Ora, o primeiro relógio a usar rubis, como chumaceiras dos pivots do eixo do balanço, foi realmente construído em Londres, em 1704, mas por relojoeiros franceses, os irmãos Debaufre, utilizando um processo de furação inventado e patenteado pelo suíço Nicolas Fatio, também aí residente. E os célebres cronómetros de marinha ingleses não seriam tão admiráveis sem o importante contributo de grandes relojoeiros franceses e suíços.
→ Citámos de passagem alguns nomes de relojoeiros que marcaram a história da medição do tempo, o que parece injusto face à importância das respetivas obras. Que dizer então de Abraham-Louis Breguet (1747-1823), a quem chamaram «relojoeiro dos reis e rei dos relojoeiros» e que marcou a relojoaria em todos os planos possíveis: científico/tecnológico, estético/artístico e até económico/comercial.
O génio de Breguet
Citámos de passagem alguns nomes de relojoeiros que marcaram a história da medição do tempo, o que parece injusto em face da importância das respetivas obras. Que dizer, então, de Abraham-Louis Breguet (1747-1823), a quem chamaram «relojoeiro dos reis e rei dos relojoeiros» e que marcou a relojoaria em todos os planos possíveis: científico/tecnológico, estético/artístico e até económico/comercial? Seria ingénuo não referir que Breguet também teve a inteligência de se rodear de colaboradores muito competentes e de amigos do mesmo ofício, como Arnold, Perrelet e outros, que com ele partilharam experiências e ideias, que muito bem aproveitou e desenvolveu. Como era preciso mais do que um livro para descrever toda a vasta obra deste génio, ficamo-nos apenas por uma das suas invenções mais emblemáticas: o turbilhão.
Sublinhámos, anteriormente, que os problemas mais prementes das máquinas de medir o tempo se prendiam com os seus órgãos capitais, o escape e o oscilador ou regulador, e referimos, no caso deste último, os malefícios das variações de temperatura sobre o seu período ou duração das oscilações. O turbilhão destina-se a corrigir os efeitos nocivos da gravidade ou atração terrestre sobre o isocronismo do sistema balanço-espiral. Lembrando que isocronismo é a capacidade de um oscilador realizar as suas oscilações em tempos sempre iguais. Uma condição para alcançar tal desiderato é que o centro de gravidade do conjunto oscilante se situe e mantenha sobre o eixo de rotação do balanço. Basta haver um pequeno erro na distribuição da massa em movimento, a que chamamos desequilíbrio, para o período das oscilações ser afetado nas posições verticais do relógio.
E é preciso ter presente que, nesta época, os relógios de uso pessoal eram todos de bolso, ou seja, mantinham-se normalmente numa posição próxima da vertical. Se a massa não estiver uniformemente distribuída, é como se o balanço tivesse algures uma sobrecarga, que levaria a que o seu centro de gravidade não coincidisse com o respetivo eixo de rotação. O efeito negativo é tanto maior quanto, em repouso, essa sobrecarga mais próxima estiver da vertical, por cima ou por baixo, do eixo do balanço. Na horizontal, o efeito é nulo e, em posicionamentos verticais opostos, os efeitos são contrários. Reduzindo a questão à sua expressão mais simples, podemos dizer que, nas posições verticais do relógio, um defeito de equilíbrio do balanço provoca variações de marcha que dependem da posição da sobrecarga em relação ao seu eixo de rotação e da amplitude do seu movimento oscilatório. Nas pequenas amplitudes, abaixo dos 220⁰ pode provocar avanço ou atraso consoante a posição da sobrecarga, aos 220⁰ exatos esse efeito anula-se, e acima dos 220⁰ o efeito sobre a marcha passa a ser contrário ao das pequenas amplitudes. Daí a ideia de Breguet fazer rodar o sistema oscilante, de modo a passar por todas as posições verticais possíveis, sabendo que os efeitos nas posições extremas, sendo contrários, se anulam.
Para tal (ver esquema em cima), idealizou uma plataforma rotativa (A), normalmente denominada «gaiola», arrastada através do seu carrete (B) pela roda de segundos. A plataforma perfaz uma volta por minuto, transportando consigo todo o conjunto das peças do escape (D, E) e do oscilador de balanço (C) e espiral. Os eixos de rotação da gaiola e do balanço são geometricamente coincidentes. Para a época, este dispositivo era um autêntico prodígio da mais fina mecânica.
Em 1795, Breguet já teria um protótipo funcional que só viria a patentear em 1801, mantendo o monopólio do seu fabrico apenas por dez anos. Está provado que centenas de bons relojoeiros, ao longo de décadas, tentaram reproduzi-lo sem êxito. Reinhard Meis, autor da obra de referência sobre este tema, O Turbilhão, refere que «no espaço de 180 anos, foram fabricados milhões de relógios de bolso e apenas uns 650 turbilhões»!
A variante carrossel
Já nos finais do século XIX, o relojoeiro dinamarquês radicado em Londres Bahne Bonniksen (1859-1935) patenteia, em 1892, um dispositivo análogo, que seria designado «turbilhão carrossel», ou, simplesmente, «carrossel», que visava os mesmos objetivos, partindo de uma construção algo diferente. Enquanto no turbilhão original, a plataforma é movida pela roda de segundos e o seu eixo é coincidente com o do balanço, no carrossel, o movimento provém da roda média, o que torna o dispositivo mais robusto e fácil de construir, e o eixo do balanço é descentralizado, passando este a uma posição de satélite.
Um remoinho de vento na atualidade
No ocaso do século XX, a indústria relojoeira foi revolucionada pelas novas e nanotecnologias: desenho assistido por computador, comando numérico das máquinas, eletroerosão assistida etc., que permitiram dar largas à criatividade e ao arrojo técnico. O domínio dos turbilhões, outrora intangível, é um dos melhores exemplos dessa metamorfose técnica que cultiva e até exalta o fascínio quase hipnótico deste dispositivo mecânico único e incomparável. Turbilhão significa também remoinho de vento ou de água. Sempre que encontramos um remoinho, observamo-lo instintivamente, prende-nos o olhar. Quanto maior e mais espetacular forem os remoinhos, mais atenções conquistam. O mesmo acontece com os turbilhões dos relógios. Ora, algo que nos prende o olhar desta forma não pode ficar escondido, foi certamente esta a conclusão dos desenhadores dos relógios mais recentes, ao aumentarem protagonismo e a complexidade dos turbilhões. Surgiram, então, variações relacionadas com a posição do turbilhão e com a sua complexidade. O turbilhão criado por Breguet pre-tendia anular os efeitos da gravidade dos relógios de bolso. No bolso, um relógio fica ao alto, o que não acontece no pulso. Por esta razão, o turbilhão de Breguet movia-se apenas num único eixo. Um relógio de pulso está constantemente a mudar de posição; desta forma, faz sentido que o seu turbilhão se mova em mais do que um eixo.
→ O domínio dos turbilhões, outrora intangível, é um dos melhores exemplos dessa metamorfose técnica que cultiva e até exalta o fascínio quase hipnótico deste dispositivo mecânico único e incomparável
Turbilhões de eixos múltiplos
O primeiro turbilhão de duplo eixo foi, no entanto, criado para um relógio de mesa por Anthony Randall, em 1978. Em 2003, o relojoeiro Thomas Prescher criou, finalmente, um relógio de pulso com um turbilhão de duplo eixo. É um turbilhão de duplo eixo, porque está no interior de dois eixos, que se movem. No caso do relógio de Percher, cada um dos dois eixos move-se uma vez por minuto. Como exemplo da aplicação deste tipo de turbilhão, existe o Spherotourbillon da Jaeger-LeCoultre, com uma espiral cilíndrica, inclinado a 20⁰, com um eixo que dá uma volta completa em 15 e outro em 30 segundos. Em 2004, Percher apresentou um turbilhão de eixo triplo. Várias marcas passaram a incluir turbilhões de eixo triplo nos seus relógios, como o Vianney Halter (Deep Space), Thomas Prescher (MAD Tourbillon), Aaron Becsei (Primus), Girard-Perregaux (Tri-Axial Tourbillon) e a Jaeger-LeCoultre (Gyrotourbillon).
Turbilhões duplos, triplos e quádruplos
Este tipo de designação refere-se, normalmente, ao número de turbilhões num relógio. Porém, a Greubel Forsey faz uma interpretação diferente da designação de turbilhão duplo e quádruplo. O seu duplo é um turbilhão de duplo eixo, com uma rotação de um minuto num eixo e de 4 no outro, com o primeiro eixo inclinado a 30⁰. Mais tarde, criaram um turbilhão quádruplo, que consiste, na verdade, em dois turbilhões duplos independentes. Estes dois turbilhões estão unidos por um diferencial a partir do qual se obtém uma média dos seus movimentos.
A posição dos turbilhões nas caixas
A posição do turbilhão na caixa procura apenas aumentar a espetacularidade do mecanismo. Seguindo este princípio, algumas marcas foram muito criativas na forma de apresentar os seus turbilhões. Com o lançamento do Deep Space, o genial Vianney Halter apresentou ao mundo um novo turbilhão no centro do seu relógio. Esta disposição, uma das mais impressionantes, cria a sensação de que o turbilhão está a flutuar. O efeito consegue-se através de um fundo transparente e da substituição da ponte do turbilhão por uma ligação lateral única.
Turbilhões gigantes
Já que o turbilhão tem mais utilidade como espetáculo estético do que como espetáculo cronométrico, faz sentido que sejam grandes e bem visíveis. Foi certamente assim que a marca Franck Muller pensou ao criar o Giga Tourbillon, em 2011. Tratou-se, na altura, do maior turbilhão jamais feito para um relógio de pulso: tinha uma gaiola de 20mm. Cinco anos mais tarde, a Kerbedanz conseguiu um aumento desta dimensão, no seu Maximus, que conta com uns incríveis 27mm.