Uma história absurda

O meu avô sempre teve um ar completamente perdido. Deixou-me um relógio de bolso. Nunca funcionou. Ou melhor, funcionou sempre, mas nunca mexeu os ponteiros. É um relógio de bolso normal, três ponteiros e caixa de prata. O relojoeiro a quem o levei, a primeira e última vez, chama-se Sísifo. É um estrangeiro que tem uma relojoaria na ilha do Pico. A relojoaria fica numa zona alta da montanha. Embora não haja casas nas redondezas, tem o n.º 42 na porta. A vista daquele sítio é incrível. Da sua bancada de relojoeiro, por vezes, conseguem ver-se os golfinhos e as baleias a passarem no canal. Aceitou consertar-me o relógio, que, afinal, não tinha conserto. Esta é das histórias mais absurdas que já vivi.

– Bom dia. O senhor é que é o conhecido Sísifo do Pico?
– Sim, é assim que me conhecem por aqui. O que o traz por cá?
– O relógio do meu avô, que teima em não mover os ponteiros.
– Mas trabalha?
– Sim, dou-lhe corda de vez em quando. Trabalha, mas não
dá horas.
– Realmente, um relógio que não dá horas não faz sentido.
– Não faz grande sentido não, mas recorda-me o meu avô. Era inglês. Este relógio também deve ser.
– E como se chamava o seu avô?
– Arthur Philip Dent.
– Há muitos ingleses aqui na ilha. Nenhum com esse nome.
– Ele era de outra ilha.
– Vamos ver então essa máquina.
Já conheci muitos relojoeiros, e, de todos, este foi o que se mostrou mais entusiasmado. Olhava para os relógios como se olhasse para a próxima aventura intergaláctica. Tinha um ar intrépido, o cabelo penteado pela ventania da montanha e os olhos esbugalhados. À medida que observava o mecanismo, os ‘hum’ passaram a ‘hummm’.
– Então, consegue pô-lo a dar horas?
– Não faço a mais pálida ideia. A última manutenção foi recente? Parece muito limpo.
– Não, nunca teve uma manutenção, e olhe que deve ter mais de 100 anos.
– Vou ficar cá com ele, esta noite vejo o que se passa.

Saí bastante desapontado. Normalmente, há um diagnóstico. Voltei no dia seguinte, estava lá às 7 h, antes de a oficina abrir. O senhor Sísifo apareceu pouco depois, carregado com um saco muito pesado às costas, um ar esbaforido e um cão muito lento.
– Bom dia.
– Bom dia.
– Isso está pesado, quer ajuda?
– Não, obrigado, são só umas pedras, é a minha forma de ir ao ginásio.
Dito isto, pousou o saco, virou-o e despejou umas pedras pesadas que rolaram lá para baixo. Ficou a olhar para elas até ao último movimento e, depois, em tom de desabafo, suspirou:
– Qualquer dia, ainda aleijo alguém com esta brincadeira. Mas vamos ao que interessa: estive a tentar perceber o que se passa com esta máquina infernal a noite toda. Mal preguei olho!
– Eh pá, é assim tão complicado? Só tem três ponteiros.
Olhou-me nos olhos, aliás, olhou-me para dentro dos olhos, e disse-me com uma voz de sofrimento:
– Este relógio não tem conserto.
– Todos os relógios têm conserto! – disse-lhe eu, a repetir o que um relojoeiro me tinha dito uma vez numa loja de fornituras, na Baixa de Lisboa.
– Nem todos têm conserto. Apenas os que estão avariados têm conserto. E este não está avariado. Simplesmente, não mexe os ponteiros.
Tinha acabado de me oferecer esta pérola de sabedoria, claramente de quem atura clientes há muitos anos, quando, nesse preciso momento, aparece o cão mais bizarro que vi na minha vida e desata a ladrar. Era um animal enorme, marreco e com uma pata mais curta que a outra.
– Kierkegaard, sossega!
Não é um nome comum para um cão. Mas talvez seja apropriado para este, pensei.
– Peço imensa desculpa. Este cão, por vezes, passa-se. Ficou assim desde que passou uma noite preso na igreja. Assusta-se por tudo e por nada. Passa o dia deitado de olhos abertos, é um cão muito pensativo. Mas como lhe estava a dizer, os ponteiros não se movem porque foram feitos, precisamente, para não se moverem. O mecanismo trabalha, é possível acertar os ponteiros, mas este relógio não foi feito para dar horas. Existe um disco metálico entre a cadeia cinemática e o restante mecanismo. Não há ligação entre os ponteiros e o mecanismo.
– Passou a noite toda com o relógio para descobrir isso?
– Não. Ainda o senhor não devia ter chegado lá abaixo e já eu tinha percebido o que se passava. Passei a noite toda a pensar que sentido tem inventar um relógio que não dá horas. É que, ainda por cima, está muito bem feito! O mecanismo está todo gravado. E se nunca teve manutenção, ainda mais incrível é! Parece que acabou de sair da fábrica. Não tem desgaste nenhum.
– Ok. É estranho, sim. O meu avô também era um tipo estranho.
– Sabe onde é que ele comprou o relógio?
– Na Dinamarca, em Copenhaga, pelo que me disseram. Esteve lá muitos anos.
– Não sei nada sobre a Dinamarca. Olhe, mas não consigo deixar de pensar nisto. Tem de haver uma resposta.

Sentámo-nos os dois virados para o mar. Passámos a manhã toda a conversar sobre as possíveis razões para se inventar um relógio que não dá horas. Ao fim da manhã, com o Kierkegaard aninhado aos meus pés, com a sua marreca e a sua pata curta, muito atento, ainda assim, a qualquer movimentação religiosa nas proximidades, chegámos a várias conclusões.
Primeiro, esta máquina não é necessariamente um relógio, nasceu sem propósito definido. Este será definido em função da necessidade ou vontade do seu utilizador. Segundo, não devemos perder tempo a procurar um sentido para a sua invenção, a não ser aquele que encontrarmos dentro de nós. Terceiro, possivelmente, entre mim, o relojoeiro e o cão, o cão deve ser o que mais sabe sobre este assunto. Quarto, tudo isto é absurdo. Nunca vamos chegar a conclusão nenhuma e devemos estar em paz com esta ideia. Quinto, pensar sobre este assunto é perder tempo; porém, como esta máquina não
dá as horas, não se perde nada.

A verdade é que, desde esse dia, uso o relógio diariamente. Sempre que sinto que a vida perde o sentido, tiro-o do bolso, olho para ele, e, apesar de nunca encontrar sentido algum par o absurdo da vida, sinto-me muito melhor.
– Foi uma bela manhã! Aqui tem o seu relógio. Não me disse o seu nome.
– Camus, Albert Camus.

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