Uma história belga (de corrida)

O equivalente francês às nossas anedotas de alentejanos é designado por ‘histoires belges’. O lendário circuito belga de Spa-Francorchamps foi palco de um episódio anedótico associado ao primeiro grande triunfo internacional do automobilismo português — e inspirou uma bela história relojoeira belga: a da marca Raidillon.

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© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo

Já se sabe que a engenharia mecânica permite facilmente estabelecer uma ponte entre o desporto automóvel e a relojoaria tradicional, com muitas escuderias a associarem-se a manufaturas para o estabelecimento de parcerias. O caso da Raidillon é diferente: nasceu do imaginário de Spa-Francorchamps e foi batizada com o nome da mais famosa curva do lendário circuito das Ardenas; face às grandes marcas relojoeiras, assume um posicionamento de nicho com uma produção limitada — e, mesmo que os seus relógios sejam fabricados na Suíça, exibe orgulhosamente a personalidade belga.

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© Raidillon

Há semelhanças entre a Bélgica e a Suíça; são países pequenos com duas línguas dominantes bem distintas, que granjearam fama pela qualidade do seu chocolate e dos seus jogadores de ténis. Mas, no que diz respeito à relojoaria, a confederação helvética não tem equivalente em quantidade e qualidade — ao passo que o reino belga apresenta somente um par de marcas dignas de registo. Uma é a Ressence, baseada num revolucionário conceito de funcionamento e de disposição do tempo; a outra é a Raidillon, inspirada no universo automobilístico e na lenda de Spa-Francorchamps. O nome é imediatamente reconhecível no mundo do desporto motorizado: trata-se da mais famosa curva de um circuito que tem fama de ser um dos mais bonitos do planeta.

© Raidillon
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É também um circuito que entrou para a história do automobilismo português porque foi lá que pela primeira vez uma equipa lusa registou um triunfo internacional de relevo — o triunfo de Carlos Santos e António Santos Mendonça na classe 2L dos 1000 km de Spa em 1973, terminando no sexto posto da classificação global. O jornalista especializado João Carlos Costa recorda que, quando subiram ao pódio, não havia a bandeira nacional para erguer nem A Portuguesa para reproduzir: ninguém imaginou que portugueses pudessem ganhar qualquer classe! Uma ‘histoire belge’ que fica para o anedotário automobilístico luso…

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© Raidillon

Curiosamente, a fotografia do Lola T292 nº 66 de Carlos Santos e António Santos Mendonça faz parte do catálogo da Raidillon e do portfólio de imagens históricas que a marca utiliza para ilustrar a sua ligação a Spa-Francorchamps. A inspiração automobilística está transversalmente patente na sua coleção — sobretudo através da utilização de cores e de detalhes evocativos tanto na arquitetura da caixa dos relógios como nas próprias correias de pele, mas também com o recurso a listas (as denominadas ‘Racing Stripes’) nalguns modelos e pormenores especiais de corrida noutros. Sempre com o 55 em destaque: só são feitos 55 exemplares de cada relógio, número que tem a ver com a quantidade máxima de viaturas antigamente permitida nas grandes provas oficiais… sendo que a numeração começa no 0 e não inclui o 13 do azar.


Swiss Powered, Race Minded
Tanto a conceção das caixas e dos mecanismos como a montagem são feitas em solo helvético, daí a parte inicial do mote ‘Swiss Powered, Race Minded’. Porque o resto é mesmo belga, a começar pelo seu fundador Bernard Julémont, um grande adepto de automobilismo que dirigia uma empresa de importação e distribuição de marcas suíças de prestígio na Bélgica. Fundou a Raidillon em 2001 para fazer relógios que fossem mais ao encontro do seu gosto, declaradamente desportivos e que evocassem os tempos lendários das corridas — desde a década de 50 até aos anos 70. Nos últimos anos, Fabien de Schaetzen assumiu o papel de CEO e alargou a coleção de modo a albergar também uma linha de design resolutamente moderno; as duas versões da principal novidade desvelada recentemente em Baselworld têm precisamente uma forte componente de design reforçada pela alusão ao circuito: o perímetro do mostrador do cronógrafo evoca os vibradores que delimitam a pista:

© Raidillon
© Raidillon

A Raidillon é mais do que uma marca de nicho; é literalmente uma ‘boutique brand’ de produção limitada comercializada primeiramente numa loja própria na Galerie de la Reine, no centro histórico de Bruxelas, e depois em todo o mundo (embora ainda não em Portugal) através de uma distribuição criteriosa ou compras avulso por parte de aficionados do desporto motorizado que se identificam com o espírito racing dos relógios e o imaginário criado à sua volta. Os preços andam maioritariamente entre os 1.500 e os 3.500 euros — muito razoáveis tendo em conta a qualidade de design, de construção e da mecânica assente em calibres automáticos ETA de reconhecida fiabilidade: o 2824 e o Valjoux 7750, o que imediatamente permite perceber que a coleção anda sobretudo à volta de relógios de três ponteiros e de cronógrafos.

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© Raidillon

O catálogo da Raidillon sofreu uma depuração a partir de 2015: das oito diferentes linhas anteriormente existentes (Casual Friday, Design, Timeless, Racing, Night Panel, Cruise, Havana e Phil Hill), passou a apresentar somente as quatro primeiras. É uma coleção consistente e despretensiosa, que joga muito com cores vivas e prateados. A arquitetura das caixas é exclusivamente redonda (a maior parte dos modelos têm um diâmetro de 42 mm) e os mostradores também apresentam uma conotação automobilística em pequenos detalhes — desde pormenores que replicam fatos de corrida ou os assentos até submostradores de reserva de corda que parecem o indicador de gasolina, passando pela referência às curvas e zonas DRS de Spa-Francorchamps.

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O modelo Circuit de Spa-Francorchamps, estreado em 2014, é mesmo um deleite para os aficionados e um verdadeiro smartwatch — não devido a qualquer conetividade moderna, mas por ser um relógio que recorre à boa velha inteligência: faz referência às abreviaturas das curvas nas 12 horas do mostrador (ST, Stavelot; LS, la Source; ER, Eau Rouge; LC, Les Combes, etc) e respetivas velocidades aconselhadas, sendo também referenciadas as zonas DRS (onde os pilotos podem abrir o aileron traseiro para ultrapassagem) do célebre circuito das Ardenas! Está declinado em duas versões: o relógio de três ponteiros com data e o cronógrafo, ambas dotadas de um mostrador parcialmente em carbono.

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Depois há os modelos listados com as tais listas tão em voga nas corridas de resistência e nas combinações dos pilotos na década de 70, havendo igualmente versões inspiradas nos Muscle Cars americanos. Na última edição da Espiral do Tempo, que tem por fio de narrativa a vincada tendência neo-vintage na relojoaria atual e que recentemente chegou às bancas, abordo essa temática das Racing Stripes na minha crónica.

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© Raidillon

Os códigos estéticos e o estilo casual desportivo da marca belga estende-se igualmente a toda uma gama complementar de acessórios em pele: sacos com o 55 emblemático da Raidillon em evidência, luvas de condução e botas vintage.

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E, last but not the least, não nos podemos esquecer de salientar a alargada seleção de correias de calfe ou pele de búfalo cuidadosamente preparadas e manufaturadas na Bélgica pela empresa familiar Lic, com pespontos em evidência e versões ‘sport’ perfuradas. Para além de ‘vestir’ bem as marcas compatriotas Raidillon e Ressence, a Lic também é fornecedora de várias companhias suíças de alta-relojoaria — como a F.P. Journe. ET_simb

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