Engenharia mecânica

EdT52 — Costuma dizer-se que relógios e automóveis são os brinquedos preferidos dos homens. Além disso, são soberbos exemplos de engenharia mecânica — que constitui precisamente a base emocional para um fascínio que se mantém renovado e reforçado ao longo dos tempos. Aqui fica um ensaio sobre a matéria.

Crónica originalmente publicada no número 52 da Espiral do Tempo

Não haverá exercício mais recorrente entre os aficionados de relógios e automóveis do que o da comparação entre as respetivas marcas. É um exercício interessante que pode funcionar como desbloqueador de conversa e até mesmo tornar-se fascinante, mas que considero algo fútil — é a velha história da comparação entre alhos e bugalhos, entre maçãs e laranjas.

O debate advém da nossa permanente urgência em catalogar, em classificar. Mas estabelecer uma hierarquia não é fácil porque os parâmetros são muitos: há o fator do prestígio, o argumento da exclusividade, a razão da produção e todas as outras justificações. Que marca relojoeira equivale à Rolls Royce? Que escuderia automóvel personificaria a Rolex? A Rolls Royce e a Rolex são dois nomes que exalam status quo nas respetivas áreas e frequentemente surgem na mesma frase — como «a Rolex é a Rolls Royce dos relógios». E é uma perceção com a qual sou frequentemente confrontado, mas à qual respondo invariavelmente: «Não, a Rolex não é o Rolls Royce dos relógios; é um táxi Mercedes a diesel capaz de rodar 200.000 km por ano sem qualquer problema». É certo que a Rolex concebe relógios excelentes, mas produz um milhão de exemplares por ano e não parece ajustado estabelecer paralelismos com uma Rolls Royce, que somente constrói escassas centenas de viaturas. E o preço dos modelos Rolex em aço pode ser relativamente acessível, ao passo que qualquer Rolls Royce só está ao alcance de uma minoria muito endinheirada.

Engenharia mecânica: Maurice de Mauriac Chronograph Modern Le Mans
Maurice de Mauriac Chronograph Modern Le Mans © Espiral do Tempo Studio / Miguel Seabra
| Foto de abertura: Cvstos Challenge II Power Reserve ‘Blue’

A comparação direta entre marcas pode ser desajustada, mas as afinidades entre relógios e automóveis são tão evidentes que se tem assistido a uma profusão de pertinentes parcerias ao longo das duas últimas décadas — mas com contornos muito diferentes entre si e produtos finais de originalidade bem distinta. O fascínio pela mecânica constitui precisamente a base emocional para a multiplicação de prestigiadas associações que têm atingido um grande impacto mediático, porque profusamente divulgadas.

Interdisciplinaridade
Descartando naturalmente os relógios promocionais baratos que se inserem na estratégia de marketing e fidelização de muitas escuderias, há dezenas de marcas puramente relojoeiras que têm associado o seu nome a marcas de automóveis ou a um qualquer evento automobilístico. Para algumas, essa associação é encarada como uma espécie de toque de Midas com fins comerciais e de publicidade; para outras, a partilha de assinaturas representa um desafiador exercício de estilo. No entanto, existem casos em que as raízes comuns são bem mais profundas e as afinidades situam-se a um nível cultural ou até mesmo intelectual; é nesses casos que a interdisciplinaridade tem beneficiado sobremaneira a indústria relojoeira.

As origens do automóvel situam-se em finais do século XIX, numa altura em que a arte da relojoaria miniaturizada ganhava maturidade. Tornou-se óbvio o recurso a reconhecidas manufaturas relojoeiras para a conceção de instrumentação de bordo de viaturas da primeira metade do século XX, e essa ligação histórica tem-se mantido latente ou sempre evidente. A Jaeger-LeCoultre reavivou esses laços na parceria com a Aston Martin que se concluiu recentemente, tal como a Audemars Piguet se juntou à Maserati num determinado período. A Ferrari começou por se juntar à Girard‑Perregaux e agora alinha com a Hublot. Na mesma senda, surgiram várias parcerias ao longo dos últimos tempos, como os acordos da Breitling com a Bentley, da IWC com a ‘transformista’ AMG e depois com a equipa de Fórmula 1 da Mercedes, da Parmigiani com a Bugatti ou da Oris com a Williams e a Audi — enquanto a TAG Heuer e a Rolex têm mantido um relacionamento contínuo com o universo automóvel em múltiplas dimensões (pilotos, escuderias, corridas, cronometragem).

Engenharia mecânica: Raidillon Racing Chronograph Spa‑Francorchamps
Raidillon Racing Chronograph Spa‑Francorchamps © Espiral do Tempo Studio / Miguel Seabra

Além disso, a Richard Mille tem uma história de ligação íntima a pilotos com a conceção de relógios que lhes são dedicados, e o do campeoníssimo de ralis Sébastien Loeb até integra um contador de forças G. A Cvstos é outra marca de relojoaria contemporânea cuja filosofia estética assenta muito no visual de carros de corrida vanguardistas. E depois há as marcas e as coleções ligadas a provas/circuitos: a Raidillon nasceu de Spa-Francorchamps; a Mille Miglia tornou-se relevante para a Chopard; a Blancpain e a Tudor patrocinam campeonatos.

O certo é que a grande maioria das associações entre relógios e automóveis tem conhecido um notável sucesso, mesmo que a níveis diferentes de concretização e variando consoante o estatuto das marcas em questão. Claro que quanto mais relevante for a manufatura relojoeira e a escuderia automóvel, mais original e técnico será o produto dessa união. E embora nalguns casos essa interdisciplinaridade seja mais bem conseguida do que noutros, o êxito é bem revelador do fascínio exercido por máquinas do tempo e de velocidade — afinal de contas, não se costuma dizer que relógios e automóveis são os brinquedos preferidos dos homens? Da minha parte, não tenho grandes bólides com os quais possa brincar, mas olhando para os meus relógios constato que muitos deles têm uma conotação íntima com o universo motorizado: o Cvstos Challenge Chrono II Power Reserve é o mais moderno, com uma arquitetura agressiva que faz recordar os protótipos LMP1; além do Raidillon Racing Chronograph evocativo do circuito de Spa-Francorchamps, os outros são sobretudo reinterpretações neo-vintage de modelos ligados às corridas nas décadas de 60/70 (TAG Heuer Monaco, Autavia, Silverstone e Carrera) ou modelos rétro inspirados por esse passado glorioso (Maurice de Mauriac Chronograph Modern Le Mans).

Mas há um aspeto fundamental que deve ser realçado: embora o automóvel seja o exemplo mais óbvio de um produto de engenharia mecânica, o relógio tradicional pode ser considerado a mais perfeita máquina jamais produzida pelo homem: é a única capaz de trabalhar 24 horas por dia durante décadas a fio e com um grau de precisão quase absoluto! ET_simb

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