EdT53 — No dia Mundial do Compositor, 15 de janeiro, não poderíamos deixar de publicar um artigo muito especial dedicado a Vasco Mendonça — o compositor português que tem vindo a colecionar ovações um pouco por todo o mundo e que foi o rosto selecionado por Kaija Saariaho, reconhecida compositora, como discípulo na edição de 2015 do programa Rolex Mentors & Protégés. Um texto assinado por Ana Rocha e que foi originalmente publicado no número 53 da Espiral do Tempo.
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No arranque do Festival Internacional de Arte Lírica de Aix-en-Provence, a música de Vasco Mendonça causou impacto no público que compareceu no Auditório Darius Milhaud.
Texto originalmente publicado na Espiral do Tempo 53, redigido ao abrigo das normas anteriores ao novo Acordo Ortográfico.
Por Ana Rocha
A canícula sufocante com os termómetros a assinalar 35 graus à sombra, uma onda de calor ‘torrou’ o sul de França nos primeiros dias de Julho, não impediu arrebatados aplausos dos 500 espectadores que esgotaram o auditório, instalado no edifício do conservatório desenhado pelo arquitecto japonês Kengo Kuma. Tanto pela acústica excepcional como pela depurada beleza da concepção, tratou-se na realidade do local ideal para a estreia de What the Night Brings, a novíssima peça de teatro-ópera de Vasco Mendonça (Porto, 1977). A assistência reagiu com entusiasmo à novidade assinada pelo compositor português, uma peça escrita de propósito para responder a uma encomenda da ENOA, Rede Europeia de Academias de Ópera. O triunfo foi do autor desta obra estreada a 7 de Julho, uma composição de 80 minutos, tendo sido partilhado com o músico holandês Daan Janssen que também subiu ao palco para agradecer a ovação. A actuação de cinco jovens cantores, a concepção e a dramaturgia de Julien Fisera, a direcção musical de Manoj Kamps (nascido no Sri Lanka, este maestro, pianista e compositor já dirigiu estreias de obras de Karlheinz Stockhausen, Rodion Shchedrin e Louis Andriessen) e também a inspirada ‘performance‘ de um quarteto de instrumentistas constituíram-se como ingredientes-chave para o triunfo da peça de Vasco Mendonça, compositor-residente da Casa da Música no Porto e o recipiente, em 2004, do Prémio Lopes Graça de Composição.
Com esta partitura, qualquer coisa de luminoso, de ondeante, como um tecido multifacetado de radiações solares, salta do palco para a plateia. Será necessário referir que os campos de malmequeres em Arles pintados por Van Gogh estão a pouco mais de 70 km de distância de Aix? Há aqui, nesta música, uma maravilhosa habilidade de ofício, uma presteza e uma técnica que já se encontravam em peças como The Boys of Summer (de 2012) e sobretudo em The House Taken Over (de 2013). Em Fevereiro de 2014 e com o patrocínio da Fundação Gulbenkian, esta última obra foi apresentada em Lisboa, no Teatro Maria Matos, tendo sido levada ainda aos palcos belgas e luxemburgueses. Vem a talhe de foice referir que What the Night Brings foi entretanto viajando ao encontro dos públicos de Amesterdão, Lisboa, Munique, Varsóvia, Aldeburgh, Paris e Bruxelas. O mês de Julho foi providencial para Vasco Mendonça, época em que também estreou a peça Three Night Larkin no Festival Internacional de Música Póvoa de Varzim.
É necessário dizer-se que há um mar de talento neste compositor português de 38 anos de idade que, pela segunda vez, visitou os palcos do celebrado festival provençal, o Festival Internacional de Arte Lírica de Aix-en-Provence, fundado em 1948 pelo mecenas Gabriel Dussurget com a intenção de, através do mundo operático de Mozart, encorajar o meio musical na região de Marselha. Ao longo de décadas, Dussurget foi um permanente descobridor de jovens talentos musicais. Em 1998, o francês Stéphane Lissner, à época o director do Festival de Aix-en-Provence, estabeleceu a Academia Europeia de Música, uma organização concebida como uma extensão do Festival e focada em iniciativas pedagógicas e na promoção de jovens artistas talentosos (compositores, instrumentistas, cantores, encenadores, maestros), de forma a facilitar a sua apresentação a uma faixa de público cada vez mais larga através de numerosos concertos, conferências e masterclasses. É um dado a ter em conta, o facto de a cidade de Aix-en-Provence surgir como um importantíssimo pólo universitário, fervilhando de estudantes vindos de toda a Europa, o potencial público muito jovem e muito curioso de novidades, o tal ‘sangue fresco’ que se apresenta como uma aposta capaz de rejuvenescer a assistência do festival musical mais famoso de França. Os frutos plantados por Stéphane Lissner começaram a surgir aos poucos e Vasco Mendonça foi um dos músicos que beneficiou desta política de Lissner, a de «olhar para o futuro» com muita atenção. A música é como a vegetação: só cresce, só tem coloridos e sombras dadas certas circunstâncias de vitalidade. Mas, dadas essas condições, ela nasce espontaneamente e vem cheia da alma de uma época, da sua inteligência, das suas tristezas e desesperanças.
«É preciso ser-se do seu tempo», escreveu Cézanne, o pintor que nasceu, viveu e morreu em Aix-en-Provence. Em terras gaulesas, Vasco Mendonça seguiu o dictum de Cézanne, de Manet e de Daumier, segundo o qual «um artista deve pertencer à sua época». Ser do seu tempo é ser-se moderno e contemporâneo, não é apenas saber falar sobre a crise europeia através da arte. É também reflectir sobre o amor. Na realidade, ‘o que trouxe a noite’ (a peça intitula-se What the Night Brings) ao público submerso nesta peça de teatro-ópera, reunido num local consagrado para qualquer músico, numa sala no mítico festival de Aix-en-Provence? Meses de Primavera e Verão com a Europa em tumulto, com a imprensa e com a população obcecadas por temas sobre credores, juros, dívidas, FMI, Troika, milhões de refugiados, guerras, terrorismo e crises de todos os tipos, com o ‘Não’ apurado no referendo grego e com a demissão de Varoufakis… e a ENOA o que decide encomendar aos artistas? Ela incumbiu os compositores Vasco Mendonça e Daan Janssens de concretizarem uma reflexão musical sobre o amor, a viagem e a passagem do tempo, temas que captaram as atenções da imprensa presente, provavelmente porque a arte constitui um refúgio de algumas horas para a crise política, financeira e social. A encomenda e a sua concretização comemoraram o quinto ano de existência de Be with me now — a quest for love in european opera.
Há dois anos, o compositor português apresentou em Aix a sua ópera de câmara intitulada The House Taken Over, uma peça inspirada no conto Casa Tomada do escritor argentino Julio Cortázar. E, em 2015, apresentou-se com What the Night Brings. Inspiração e muito trabalho estão nesta partitura com uma ópera-teatro que surge como uma inquietante e misteriosa fábula sobre o amor, a viagem e a imersão no tempo. Como experienciar poemas, lugares, pessoas, acontecimentos de forma tão concentrada? «There is simply too much to think about it» poderia ter escrito Saul Bellow, colocado perante esta obra com uma cenografia e uma encenação interessantíssimas em que surgiam microcenas teatrais com umas marionetes em palco a ilustrar uma complexa teia. A música é a maneira de pensar de Vasco Mendonça. Duas estruturas conceptuais sustentam esta peça: excertos de óperas de Mozart e a poesia do britânico Philip Larkin. Um poema sombrio de Larkin foi o ponto de partida em direcção à celebração da viagem libertadora de uma personagem construída sobre Tamino, o príncipe mozartiano de A Flauta Mágica.
Será que a arte contem fins curativos e de remediação, preenchendo, de forma satisfatória, uma lacuna nas nossas vidas e nas sociedades, objectivo que contraria as recentes afirmações de uma das mais eminentes figuras do mundo das artes, Philippe de Montebello, o director do Metropolitan Museum of Art durante 31 anos? Pois, a avaliar pela reacção da jovem assistência, a música de Vasco Mendonça, muito celebrada pelo crítico do jornal New York Times escassos dias após a sua estreia no Festival de Aix, preencheu de forma mais que satisfatória uma lacuna na vida das pessoas. Como escreveu Dostoiévski, «só a arte salvará o mundo».
Muito se continuará a falar deste talentoso músico, um homem discreto e despretensioso que, desde há anos, tem o privilégio de desfrutar dos ensinamentos de um par de conselheiros de eleição, a compositora Kaija Saariaho e um britânico, o compositor e maestro George Benjamin, professor de Vasco Mendonça durante os seus estudos em Londres. Benjamin é o autor da ópera Written on Skin, com acção a decorrer na Provença trovadoresca do século XII, obra estreada e aclamada na edição de 2012 do Festival de Aix-en-Provence.
No domínio da música, Vasco Mendonça é o sétimo dos jovens artistas a ser envolvido no projecto Mentors & Protegés, uma iniciativa desenvolvida pela Rolex em vários campos das artes onde se encontram nomes como os de Mario Vargas Llosa, Siza Vieira, Robert Wilson, Toni Morrison e Martin Scorsese. Movido por uma insaciável sede de pioneirismo, o Rolex Institute tem promovido a excelência musical por meio de projectos filantrópicos e educacionais. Na área musical, Jessye Norman orientou a mezzo-soprano canadiana Susan Platts, Youssou N’Dour foi o mentor do hondurenho Aurelio Martinez, Gilberto Gil foi o protector da egípcia Dina El Wedidi, Brian Eno tutelou Ben Frost, Pinchas Zukerman norteou David Aaron Carpenter e Colin Davis foi o mentor de Josep Caballé-Domenech. Sob a égide da finlandesa Kaija Saariaho, uma das mais consagradas figuras da música contemporânea, Vasco Mendonça continuará certamente a dar o seu precioso contributo para a comunidade mundial dos criadores.
What the Night Brings nas palavras de Vasco Mendonça
Festival Internacional de Arte Lírica de Aix-en-Provence
Auditório Darius Milhaud, 7 de Julho de 2015
«O Festival de Aix tem uma importância muito especial para mim: foi lá que, em 2013, estreei aquela que considero a minha peça mais importante até à data, a ópera de câmara The House Taken Over. Por essa razão, fiquei muito sensibilizado quando me convidaram para escrever o quinteto vocal que encerra o concerto de aniversário da ENOA. A peça que escrevi, What The Night Brings, baseia-se num poema do Philip Larkin inicial — ainda muito influenciado por Yeats, mas em que já é óbvia a sua capacidade única de convocar imagens perturbantes e inesquecíveis —, e é uma espécie de madrigal, em que o discurso musical segue intimamente o registo emocional do poema. A imagem sonora que percorre toda a peça é a de sinos a tocarem. Os sinos que tocam quando algo de maravilhoso — ou terrível — acontece. Não sendo de forma alguma uma peça com implicações políticas, achei, no entanto, que a pergunta de Larkin no poema «Are you prepared for what the night will bring?» era uma pergunta importante e actual: no momento em que a Europa parece arder em lume brando, quão preparados estaremos realmente para o que a noite nos trará?»
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