A ressurreição da Universal Genève: 5 questões que se impõem

O anúncio da aquisição do nome Universal Genève por parte da Breitling apanhou a indústria relojoeira de surpresa mas deixou a esmagadora maioria dos observadores satisfeita e ansiosa pelo que se irá seguir. Aqui fica a devida análise.

A edição número 83 da Espiral do Tempo, lançada no verão transato, contemplou um artigo em que se abordava os por vezes bizarros ciclos de vida de certas marcas relojoeiras — porque, se há manufaturas históricas que mantiveram um nível de notoriedade mais constante ao longo dos tempos, há também marcas que desapareceram, outras que perderam protagonismo e outras que estão a regressar. Esse vai e vem depende muito da conjuntura, da competência e do mercado. E também da visão de determinados protagonistas.

Banner de publicidade da Universal Genève durante uma corrida automóvel no Brasil, ca. 1950 | Imagem cedida por Breitling
Banner de publicidade da Universal Genève durante uma corrida automóvel no Brasil, ca. 1950 | Imagem cedida por Breitling

Nesse artigo, escrevemos o seguinte: «A Universal Genève era mesmo uma das mais relevantes marcas (a terminologia tricompax, bicompax e unicompax até fazia parte do seu catálogo, não tendo nada a ver com o atual número de submostradores em cronógrafos) e faz figura de bela adormecida, à espera do beijo da ressurreição. Caso seja despertada, a coisa terá de ser muito bem feita e respeitando a rica herança de tão importante nome da relojoaria». Será que Georges Kern leu a Espiral do Tempo? De qualquer das formas, o patrão da Breitling viu aquilo que muitos já viam, mas que não tiveram capacidade nem vontade — e adquiriu os direitos da Universal Genève (nome e arquivos) à empresa proprietária, a Stelux Holdings de Hong Kong, cuja área principal de atividade é a distribuição. A repórter Astrid Wendlandt, especialista em assuntos económicos no universo do luxo, referiu na sua plataforma Miss Tweed que o negócio foi fechado por cerca de 50-60 milhões de euros e que tanto a LVMH como investidores privados estavam na corrida.

Painel da Breitling na Dubai Watch Week 2023
Georges Kern, CEO da Breitling,na recente Dubai Watch Week | © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

O início do comunicado oficial refere que «Num acontecimento histórico para a indústria da relojoaria suíça, a Breitling anunciou a aquisição da Universal Genève, dando início a um novo capítulo para a marca conhecida pela sua arte e inovação relojoeira. Esta aquisição estratégica promete restaurar o prestígio de uma marca consagrada no mundo dos relógios de luxo». Vamos então escalpelizar a nova aventura relojoeira respondendo a cinco questões que o tema impõe.

1. Será a Breitling o parceiro ideal?

Numa primeira análise, tudo indica que sim. Georges Kern é um patrão de elevado nível de exigência e com grande experiência na relojoaria (IWC e supervisão da Roger Dubuis e Baume & Mercier no grupo Richemont, antes de reformar com grande sucesso a Breitling desde 2017). Mesmo que crie alguns anticorpos devido a facetas da sua personalidade, ninguém duvida da sua competência. «Por mais entusiasmados que estejamos, estamos também plenamente conscientes da tarefa que temos pela frente e da vasta herança que temos de honrar e perpetuar», sublinha Georges Kern. Alfred Gantnet, cofundador do Partners Group e Presidente do Conselho de Administração da Breitling, acrescenta: «A Universal Genève foi outrora aclamada como o couturier da relojoaria, sendo consagrada pelos seus movimentos de manufatura e modelos míticos. É uma marca que os entusiastas da relojoaria sempre sonharam ver regressar em definitivo».

À esquerda: em 1965, a Universal Genève ganhou o Diamonds-International Awards em Nova Iorque com este modelo; à direita: o relógio Universal Genève Cabriolet, ca. 1928 | Imagens cedidas por Breitling
À esquerda: em 1965, a Universal Genève ganhou o Diamonds-International Awards em Nova Iorque com este modelo; à direita: o relógio Universal Genève Cabriolet, ca. 1928 | Imagens cedidas por Breitling

Ou seja, há sensibilidade para encetar uma missão que se antevê difícil. «Recuperar uma marca com uma narrativa tão rica não é uma tarefa fácil — é um trabalho meticuloso que exige uma grande entrega e que prevemos que se concretize nos próximos anos. Será criada uma equipa independente e especializada, para permitir que a Breitling e a Universal Genève operem como casas separadas», explica Georges Kern. O estabelecimento de um minigrupo relojoeiro pode conduzir à cotação na bolsa e valorizar exponencialmente ambas as marcas.

2. O que se passou com a Universal Genève?

Fundada em 1894, a Universal Genève ganhou proeminência ao longo do século XX pela sua qualidade estética e valências técnicas. No entanto, a crise do quartzo colocou a empresa perante um desafio profundo, obrigando-a a uma mudança na sua estratégia — como sucedeu com tantas outras marcas de relevo, algumas delas desaparecidas. E, também como aconteceu com outras marcas, a mudança de proprietários não foi propriamente benéfica. Desde 1989 que a Universal Genève pertencia ao Stelux Group, tendo deixado de ser protagonista no final da década de 90 na sequência de vários erros de estratégia e estando em hibernação a partir do início do presente milénio.

A nova fábrica Universal Genève inaugurada em 1956 em Carouge, no Cantão de Genebra | Imagem cedia por Breitling
A nova fábrica Universal Genève inaugurada em 1956 em Carouge, no Cantão de Genebra | Imagem cedia por Breitling

«Estamos convencidos de que a Breitling está mais bem posicionada para catapultar a Universal Genève para o próximo nível, tal como fez com enorme sucesso com a sua própria marca», assume Joseph Wong, Presidente e CEO do Stelux Group. «Quando se assume a responsabilidade por um fabricante de relógios desta importância, a preservação da sua herança é a principal preocupação. A gerência da Breitling demonstrou que está 100% empenhada em garantir que a Universal Genève continue viva, não apenas no nome, mas também no espírito». Em princípio, não será difícil fazer melhor do que o Stelux Group…

3. Quais os marcos da Universal Genève?

São muitos — e relevantes. O início da história da Universal Genève é marcado por dress watches para senhora e inovadores relógios para homem, incluindo o Reversible Cabriolet, um dos primeiros do seu género. Na década de 1940, a marca estava na vanguarda da inovação no que dizia respeito a cronógrafos, oferecendo uma variedade impressionante na sua linha de cronógrafos Compax com movimentos manufaturados, juntamente com o lendário calendário completo Tri-Compax, lançado para celebrar o seu 50.º aniversário. Na década de 1950 surgiu o mítico Polerouter, desenhado pelo então muito jovem designer Gerald Genta (tinha 23 anos) e concebido para resistir a qualquer clima, do Polo Norte ao Equador. Também nessa década, introduziu um movimento revolucionário de corda automática conhecido como Microtor.

À esquerda: anúncio sobre o Universal Genève Compax chronograph publicada numa revista suíça, ca. 1940; à direita: publicidade sobre o Universal Genève lady's watch publicada numa revista francesa, ca 1940 | Imagens cedidas por Breitling
À esquerda: anúncio do Universal Genève Compax chronograph numa revista suíça, ca. 1940; à direita: publicidade sobre um relógio feminino Universal Genève publicado numa revista francesa, ca 1940 | Imagens cedidas por Breitling

Na década de 60, a Universal Genève continuou a dar cartas no universo dos cronógrafos — e relançou com sucesso a sua coleção Compax numa vertente mais desportiva, incluindo o mítico cronógrafo ‘Nina Rindt’, assim batizado por ter brilhado no pulso da mulher do malogrado campeão alemão de Formula 1, e o Tri-Compax ‘Eric Clapton’, de calendário completo, usado pelo famoso guitarrista. Em 1966, a Universal Genève lançou o movimento automático mais fino do mundo no seu Golden Shadow.

4. Há laços históricos entre as duas marcas?

A legitimidade da aquisição não passa apenas pelo facto de a Breitling parecer ser o parceiro ideal — até porque o catálogo atual da marca, alargado por Georges Kern desde um núcleo duro masculino muito à volta da aviação para uma coleção bem mais abrangente (apesar de o recente Top Time Tourbillon não fazer muito sentido…), apresenta muitos pontos de contacto com o que a Universal Genève fazia. Passa também pelo facto de as duas marcas terem igualmente participado em vários projetos em comum.

Anúncio da Universal Genève sobre o Golden Shadow publicado na Europa Star em 1966 | Imagem cedida por Breitling
Anúncio da Universal Genève sobre o Golden Shadow publicado na Europa Star em 1966 | Imagem cedida por Breitling

Como grandes especialistas em cronógrafos, a Breitling e a Universal Genève foram simultaneamente rivais e aliadas. Agora, estão destinadas a coexistir — e os novos responsáveis prometem manter a individualidade de cada marca. «Este renascimento é um sonho transformado numa missão», assegura Georges Kern. «É um processo que estamos a desenvolver com o máximo respeito e dedicação, com o objetivo de devolver à Universal Genève o seu lugar de direito na relojoaria».

Pilotos SAS a receber os seus receiving their Universal Genève Polerouter na década de 1950 | ©scandinaviantraveler - Imagem cedida por Breitling
Pilotos SAS a receber os seus Universal Genève Polerouter na década de 1950 | ©scandinaviantraveler – Imagem cedida por Breitling

5. E agora?

É esperar para ver. O tempo ajudará a esclarecer muita coisa e aguarda-se ansiosamente a primeira coleção da ‘nova’ Universal Genève neste tandem com a Breitling — que evoca um pouco a filosofia de sister brand que existe entre a Rolex e a Tudor ou a H. Moser Cie. e a Hautlence… embora nesses casos exista claramente uma marca dominante e se espere que a Universal Genève apresente uma maior relevância face à Breitling (como sucede entre as ‘irmãs’ Girard-Perregaux e a Ulysse Nardin) porque era esse o equilíbrio histórico de antigamente. Também é positivo que o nome não tenha sido adquirido por uma Richemont ou um Swatch Group, o que podia condicionar o posicionamento da marca e dos seus produtos numa estratégia de grupo. Também não fazia sentido ressuscitar a ‘grande’ Universal Genève para fazer dela uma micromarca de preços entre os 1.500 e os 4.000 euros, como sucede com a Nivada Grenchen e a Vulcain. Pelo contrário: será comercializada num patamar de preço claramente superior ao da Breitling. O investimento vai ser de monta e por vezes a injeção financeira não é suficiente (veja-se o caso da Favre-Leuba), mas Georges Kern parece ser o homem ideal para levar a cabo a auto-proclamada missão e conta que a Universal Genève passe a valer cerca de mil milhões (um bilião) dentro de alguns anos.

À esquerda: artigo sobre o Universal Genève Polerouter publicado ina Europa Star em 1965; à direita: publicidade antiga do Universal Genève Tri-Compax publicada na Europa Star em 1952 | Imagens cedidas por Breitling

De resto, há já algumas primeiras conclusões a retirar. Uma delas é que o plágio mais ou menos assumido de designs históricos da Universal Genève (como acontece, por exemplo, com alguns modelos Massena Lab) vai ter de ser acautelado e evitado: afinal de contas, a histórica manufatura está agora de regresso ao ativo. A outra tem a ver com uma nomenclatura oficial utilizada pela Universal Genève que foi adaptada para outros fins: Uni-Compax, Bi-Compax e Tri-Compax eram designações que indicavam o número de funções nos relógios (cronógrafo, cronógrafo com calendário e fases da lua, etc) e que passaram a caraterizar a configuração dos submostradores dos cronógrafos em geral (bicompax para dois totalizadores, tricompax para três)… deixando de fazer sentido se a marca recuperar essa emblemática nomenclatura nos modelos da sua nova vida.

Relojoeiros da Universal Genève a trabalharem na manufatura, ca. 1960 | Imagem cedida por Breitling
Relojoeiros da Universal Genève a trabalharem na manufatura, ca. 1960 | Imagem cedida por Breitling

Para concluir: viva a Universal Genève!

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