O anúncio da aquisição do nome Universal Genève por parte da Breitling apanhou a indústria relojoeira de surpresa mas deixou a esmagadora maioria dos observadores satisfeita e ansiosa pelo que se irá seguir. Aqui fica a devida análise.
A edição número 83 da Espiral do Tempo, lançada no verão transato, contemplou um artigo em que se abordava os por vezes bizarros ciclos de vida de certas marcas relojoeiras — porque, se há manufaturas históricas que mantiveram um nível de notoriedade mais constante ao longo dos tempos, há também marcas que desapareceram, outras que perderam protagonismo e outras que estão a regressar. Esse vai e vem depende muito da conjuntura, da competência e do mercado. E também da visão de determinados protagonistas.
Nesse artigo, escrevemos o seguinte: «A Universal Genève era mesmo uma das mais relevantes marcas (a terminologia tricompax, bicompax e unicompax até fazia parte do seu catálogo, não tendo nada a ver com o atual número de submostradores em cronógrafos) e faz figura de bela adormecida, à espera do beijo da ressurreição. Caso seja despertada, a coisa terá de ser muito bem feita e respeitando a rica herança de tão importante nome da relojoaria». Será que Georges Kern leu a Espiral do Tempo? De qualquer das formas, o patrão da Breitling viu aquilo que muitos já viam, mas que não tiveram capacidade nem vontade — e adquiriu os direitos da Universal Genève (nome e arquivos) à empresa proprietária, a Stelux Holdings de Hong Kong, cuja área principal de atividade é a distribuição. A repórter Astrid Wendlandt, especialista em assuntos económicos no universo do luxo, referiu na sua plataforma Miss Tweed que o negócio foi fechado por cerca de 50-60 milhões de euros e que tanto a LVMH como investidores privados estavam na corrida.
O início do comunicado oficial refere que «Num acontecimento histórico para a indústria da relojoaria suíça, a Breitling anunciou a aquisição da Universal Genève, dando início a um novo capítulo para a marca conhecida pela sua arte e inovação relojoeira. Esta aquisição estratégica promete restaurar o prestígio de uma marca consagrada no mundo dos relógios de luxo». Vamos então escalpelizar a nova aventura relojoeira respondendo a cinco questões que o tema impõe.
1. Será a Breitling o parceiro ideal?
Numa primeira análise, tudo indica que sim. Georges Kern é um patrão de elevado nível de exigência e com grande experiência na relojoaria (IWC e supervisão da Roger Dubuis e Baume & Mercier no grupo Richemont, antes de reformar com grande sucesso a Breitling desde 2017). Mesmo que crie alguns anticorpos devido a facetas da sua personalidade, ninguém duvida da sua competência. «Por mais entusiasmados que estejamos, estamos também plenamente conscientes da tarefa que temos pela frente e da vasta herança que temos de honrar e perpetuar», sublinha Georges Kern. Alfred Gantnet, cofundador do Partners Group e Presidente do Conselho de Administração da Breitling, acrescenta: «A Universal Genève foi outrora aclamada como o couturier da relojoaria, sendo consagrada pelos seus movimentos de manufatura e modelos míticos. É uma marca que os entusiastas da relojoaria sempre sonharam ver regressar em definitivo».
Ou seja, há sensibilidade para encetar uma missão que se antevê difícil. «Recuperar uma marca com uma narrativa tão rica não é uma tarefa fácil — é um trabalho meticuloso que exige uma grande entrega e que prevemos que se concretize nos próximos anos. Será criada uma equipa independente e especializada, para permitir que a Breitling e a Universal Genève operem como casas separadas», explica Georges Kern. O estabelecimento de um minigrupo relojoeiro pode conduzir à cotação na bolsa e valorizar exponencialmente ambas as marcas.
2. O que se passou com a Universal Genève?
Fundada em 1894, a Universal Genève ganhou proeminência ao longo do século XX pela sua qualidade estética e valências técnicas. No entanto, a crise do quartzo colocou a empresa perante um desafio profundo, obrigando-a a uma mudança na sua estratégia — como sucedeu com tantas outras marcas de relevo, algumas delas desaparecidas. E, também como aconteceu com outras marcas, a mudança de proprietários não foi propriamente benéfica. Desde 1989 que a Universal Genève pertencia ao Stelux Group, tendo deixado de ser protagonista no final da década de 90 na sequência de vários erros de estratégia e estando em hibernação a partir do início do presente milénio.
«Estamos convencidos de que a Breitling está mais bem posicionada para catapultar a Universal Genève para o próximo nível, tal como fez com enorme sucesso com a sua própria marca», assume Joseph Wong, Presidente e CEO do Stelux Group. «Quando se assume a responsabilidade por um fabricante de relógios desta importância, a preservação da sua herança é a principal preocupação. A gerência da Breitling demonstrou que está 100% empenhada em garantir que a Universal Genève continue viva, não apenas no nome, mas também no espírito». Em princípio, não será difícil fazer melhor do que o Stelux Group…
3. Quais os marcos da Universal Genève?
São muitos — e relevantes. O início da história da Universal Genève é marcado por dress watches para senhora e inovadores relógios para homem, incluindo o Reversible Cabriolet, um dos primeiros do seu género. Na década de 1940, a marca estava na vanguarda da inovação no que dizia respeito a cronógrafos, oferecendo uma variedade impressionante na sua linha de cronógrafos Compax com movimentos manufaturados, juntamente com o lendário calendário completo Tri-Compax, lançado para celebrar o seu 50.º aniversário. Na década de 1950 surgiu o mítico Polerouter, desenhado pelo então muito jovem designer Gerald Genta (tinha 23 anos) e concebido para resistir a qualquer clima, do Polo Norte ao Equador. Também nessa década, introduziu um movimento revolucionário de corda automática conhecido como Microtor.
Na década de 60, a Universal Genève continuou a dar cartas no universo dos cronógrafos — e relançou com sucesso a sua coleção Compax numa vertente mais desportiva, incluindo o mítico cronógrafo ‘Nina Rindt’, assim batizado por ter brilhado no pulso da mulher do malogrado campeão alemão de Formula 1, e o Tri-Compax ‘Eric Clapton’, de calendário completo, usado pelo famoso guitarrista. Em 1966, a Universal Genève lançou o movimento automático mais fino do mundo no seu Golden Shadow.
4. Há laços históricos entre as duas marcas?
A legitimidade da aquisição não passa apenas pelo facto de a Breitling parecer ser o parceiro ideal — até porque o catálogo atual da marca, alargado por Georges Kern desde um núcleo duro masculino muito à volta da aviação para uma coleção bem mais abrangente (apesar de o recente Top Time Tourbillon não fazer muito sentido…), apresenta muitos pontos de contacto com o que a Universal Genève fazia. Passa também pelo facto de as duas marcas terem igualmente participado em vários projetos em comum.
Como grandes especialistas em cronógrafos, a Breitling e a Universal Genève foram simultaneamente rivais e aliadas. Agora, estão destinadas a coexistir — e os novos responsáveis prometem manter a individualidade de cada marca. «Este renascimento é um sonho transformado numa missão», assegura Georges Kern. «É um processo que estamos a desenvolver com o máximo respeito e dedicação, com o objetivo de devolver à Universal Genève o seu lugar de direito na relojoaria».
5. E agora?
É esperar para ver. O tempo ajudará a esclarecer muita coisa e aguarda-se ansiosamente a primeira coleção da ‘nova’ Universal Genève neste tandem com a Breitling — que evoca um pouco a filosofia de sister brand que existe entre a Rolex e a Tudor ou a H. Moser Cie. e a Hautlence… embora nesses casos exista claramente uma marca dominante e se espere que a Universal Genève apresente uma maior relevância face à Breitling (como sucede entre as ‘irmãs’ Girard-Perregaux e a Ulysse Nardin) porque era esse o equilíbrio histórico de antigamente. Também é positivo que o nome não tenha sido adquirido por uma Richemont ou um Swatch Group, o que podia condicionar o posicionamento da marca e dos seus produtos numa estratégia de grupo. Também não fazia sentido ressuscitar a ‘grande’ Universal Genève para fazer dela uma micromarca de preços entre os 1.500 e os 4.000 euros, como sucede com a Nivada Grenchen e a Vulcain. Pelo contrário: será comercializada num patamar de preço claramente superior ao da Breitling. O investimento vai ser de monta e por vezes a injeção financeira não é suficiente (veja-se o caso da Favre-Leuba), mas Georges Kern parece ser o homem ideal para levar a cabo a auto-proclamada missão e conta que a Universal Genève passe a valer cerca de mil milhões (um bilião) dentro de alguns anos.
De resto, há já algumas primeiras conclusões a retirar. Uma delas é que o plágio mais ou menos assumido de designs históricos da Universal Genève (como acontece, por exemplo, com alguns modelos Massena Lab) vai ter de ser acautelado e evitado: afinal de contas, a histórica manufatura está agora de regresso ao ativo. A outra tem a ver com uma nomenclatura oficial utilizada pela Universal Genève que foi adaptada para outros fins: Uni-Compax, Bi-Compax e Tri-Compax eram designações que indicavam o número de funções nos relógios (cronógrafo, cronógrafo com calendário e fases da lua, etc) e que passaram a caraterizar a configuração dos submostradores dos cronógrafos em geral (bicompax para dois totalizadores, tricompax para três)… deixando de fazer sentido se a marca recuperar essa emblemática nomenclatura nos modelos da sua nova vida.
Para concluir: viva a Universal Genève!