EdT35/ A Patek Philippe é nome omnipresente e insubstituível de todos os grandes leilões de relojoaria: ganhou a fama (e o proveito) de ser a marca que rima com investimento seguro, e soube, como nenhuma outra, transmitir os valores da perenidade através da mais eficaz campanha de comunicação no sector. Entre mito e realidade, a equipa da Espiral do Tempo foi recebida no santuário da Patek Philippe para uma reportagem exclusiva e repleta de descobertas.
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Plan-les-Ouates, Genebra, Suíça
Texto: Hubert de Haro
Fotos: Nuno Correia
Reportagem originalmente publicada no número 35 da Espiral do Tempo (verão 2011)
Nesta segunda-feira, 8 de Novembro de 2010, Plan-les-Ouates mais parece Lisboa do que Genebra. Espera-nos uma chuva torrencial que teria conseguido afundar a baixa lisboeta em poucas horas. Mas o clima não pode travar a nossa curiosidade: em (quase) uma década, a equipa da Espiral do Tempo ainda nunca tinha visitado a Patek Philippe; essa falha iria ser rapidamente reparada nas próximas horas e no dia seguinte.
Antes de chegarmos à espectacular entrada da manufactura, inaugurada em 1996 pelo então presidente Philippe Stern (pai do actual presidente Thierry Stern), passámos em frente ao ‘vizinho’ do lado: o colosso ‘verde Sporting’ da relojoaria suíça e mundial, Rolex, de onde saem todos os relógios da marca (os mecanismos chegam da manufactura que a Rolex tem em Bienne). O tom está dado: vamos entrar no santo do santos, uma zona industrial única onde, para retomar a afirmação do químico francês Lavoisier, «nada se cria, nada se perde, tudo se transforma».
A expectativa da equipa já está a atingir o seu máximo. Verdade seja dita: criou-se, ao longo dos anos, uma divergência de opiniões sobre a Patek Philippe no próprio seio da redacção da revista. Nada de estranhar: como revista assumidamente sectarista abordando ‘quase’ todos os relógios, os seus editores afirmam orgulhosamente as suas opiniões: neste paradigma da cultura da subjectividade, a Patek Philippe não escapa à regra. Todos respeitam a marca. Alguns apreciam a qualidade, o rigor da marca, bem como a espantosa qualidade estética dos mecanismos. Outros apontam um conservadorismo excessivo nos tamanhos das caixas e no desenho dos mostradores. Uma posição pouco adequada relativamente aos padrões estéticos mais contemporâneos e, sobretudo, contrastante com uma última década de loucura conceptual vincada por modelos de ruptura vindos de marcas como a Richard Mille ou a MB&F, e relógios sobredimensionados oriundos da Franck Muller ou Panerai, enquanto marcas igualmente históricas, como a Audemars Piguet ou a Jaeger-LeCoultre, têm juntado o classicismo ao modernismo. Qual seria o veredicto após a peregrinação ao santuário?
Cicerones
Daniel Jaquet passou 43 da sua vida na Patek Philippe. Vinte destes foram passados como director de produção de componentes. Apesar de estar já reformado, tivemos o privilégio de o ter como cicerone numa viagem ao coração da manufactura – com um fito particular: pedimos uma visita extensa, mas, sobretudo, centrada no novo cronógrafo mecânico de corda manual CH-29-535, lançado no final de 2009; a opção visava evitar uma informação excessiva, dispersa e demasiada generalista.
Para além da sua qualidade intrínseca, o novo mecanismo cronográfico, recebido pela indústria relojoeira como mais um inovador e significativo marco na longa história da Patek Philippe, teve o condão de complementar uma impressionante lista de 21 calibres de base com mais de 45 variantes. E não há dúvida: trata-se de um mecanismo extremamente sedutor nas suas linhas e nos seus acabamentos, que consegue reinterpretar a tradição técnica e estética de antecessores como o 130, de 1934, um dos mais procurados pelos coleccionadores, ou ainda o CH-27-70, lançado em 1986, numa base Nouvelle Lémania.
«O desafio do caderno de encargos estabelecido em 2005 era o de substituir o Nouvelle Lémania por um novo calibre integralmente concebido, produzido e montado na Patek Philippe», explica Philip Barat, actual director da Divisão de Desenvolvimento (cerca de cem pessoas repartidas entre relojoeiros e engenheiros); «o novo cronógrafo teria de ser ainda mais preciso, fiável e plano». Quatro anos, seis patentes e duzentos e sessenta e nove componentes mais tarde, a aposta foi ganha. Com uma espessura mínima de 5,35 mm (por um diâmetro de 29.60 mm), o CH-29-535 revela toda a sua elegância arquitectural nas formas das suas pontes, rodas e alavancas do cronógrafo – acrescida de uma aposta estética sistemática que inclui anglage das pontes (limar manual das arestas todas, dando um brilho particular a peça), côtes de Genève e perlage para a platina. A decoração é toda efectuada à mão e a um nível incomparável.
Tecnicamente, Philip Barat sublinha que «a vontade de ter um contador dos trinta minutos do cronógrafo com salto instantâneo levantou a maior dificuldade». É certo que o utilizador mal nota o salto imediato dos minutos quando o ponteiro dos segundos passa dos cinquenta e nove para os sessenta segundos; essa funcionalidade nem pertence às seis patentes apresentadas. No entanto, através de um pequeno grande detalhe, a marca assegura uma maior precisão ao relógio, permitindo respeitar um dos elementos do novo e extremamente rigoroso selo próprio, baptizado Poinçon Patek Philippe: «Para os mecanismos cujo diâmetro é igual ou superior a vinte milímetros», explica o regulamento, «a precisão de marcha deve situar-se obrigatoriamente entre os -3 e os +2 segundos em 24 horas». Para melhor se perceber tamanho rigor, basta relembrar que o referencial Certificado Oficial dos Cronómetros (COSC), emitido pelo Observatório de Neuchâtel, exige uma precisão de -4 a +6 segundos por dia nos mecanismos (e não nos relógios já montados) – ou seja, uma tolerância duas vezes mais do que em qualquer modelo Patek Philippe.
Cronografias
O atelier de montagem do mecanismo CH-29-535 é composto por uma pequena dezena de relojoeiros especializados. Aquando da nossa visita, dois relojoeiros, vindos de um outro atelier, estavam a ser formados pelo relojoeiro Zejn Mustafa – sempre com a paciência indispensável a um tão criterioso e minucioso ofício. Aproveitámos para trocar impressões com os vários relojoeiros. «É uma pena nunca podermos ver o relógio acabado», explica um deles; «venho do departamento SAV (Serviço Após Venda), o que me permite trabalhar em todos os aspectos do relógio. Passo aqui cerca de um dia para montar primeiro a rodagem e escape (para ser enviado a um primeiro teste de precisão) e depois todo o cronógrafo. Sinto, por vezes, saudades dos meus mecanismos. Quando saem para o controlo e para a colocação dos mostradores e ponteiros, nunca mais os vejo!».
Enquanto o responsável do atelier, M. Chapuis, nos explica pedagogicamente as seis patentes do mecanismo, o resto da equipa prossegue, sempre numa calma olímpica, o processo de montagem. Antes de deixarmos o local, notamos que um dos relojoeiros usa uma lima; uma das alavancas tem de ser rectificada: ter-se-á de limar 32 centésimos de milímetro numa ponta e 19 noutra.
Depois de uma tarde de análise prévia em que foi feita a repérage do local, Daniel Jaquet passa connosco o dia inteiro de reportagem. Num raro exercício de transparência, passeámo-nos à vontade pelos largos corredores da exclusiva manufactura. Os quase 1300 empregados nas instalações em Plan-les-Ouates representam praticamente todos os métiers necessários à produção de um relógio mecânico – mas ao mais elevado nível conhecido. À excepção das âncoras ou ainda das espirais, a Patek Philippe junta por baixo de um único (e grande) tecto a produção de rodas, pinhões, pontes, platinas bem como as suas respectivas decorações.
O edifício é inovador e estabeleceu um novo padrão na arquitectura das mais prestigiadas manufacturas relojoeiras. Ao se aperceberem de que a imperial Patek Philippe – com todo o seu prestígio e toda a sua tradição – não hesitou em investir em instalações modernas para preservar a sua incomparável história, muitas outras marcas de alta-relojoaria seguiram-lhe os passos. Mas o modernismo não é excessivo; um charme discreto mantém-se patente. Em vários espaços amplos e desafogados, o branco e o azul-lilás são denominadores comuns. E acabámos a nossa visita no controle final: cada mecanismo será submetido a vários testes de precisão e resistência durante dezoito dias para voltar – após colocação de ponteiros, mostrador e caixa – a passar por uma nova bateria de exigentes testes.
Para terminar, se nos perguntarem se a equipa da Espiral do Tempo chegou a um consenso após a reportagem em Plan-les-Ouates, deixámos para a Philip Barat a última palavra: «O futuro da relojoaria passa pelo uso de novas matérias que permitam uma redução substancial da lubrificação e um aumento da frequência dos mecanismos».
Mais palavras para quê?
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