Espiral do Tempo 70: o que esconde uma capa…

Nada faria prever que uma visita à fábrica de mostradores Les Cadraniers de Genève seria o ponto de partida para uma aventura que culminaria quatro meses depois na capa da edição de primavera 2020 da Espiral do Tempo. Este é o relato do que se passou nos bastidores. Curiosidades, ansiedades mas também e sobretudo amizades.

Em outubro do ano passado e após a visita à fábrica de mostradores Les Cadraniers de Genève, tivemos a oportunidade de estar sentados à conversa com o mestre relojoeiro François-Paul Journe. Foi um final de tarde descontraído, e também algo emocional onde, sem filtro, o mestre nos informou dos seus planos para um futuro próximo, mas também nos esclareceu acerca de algumas questões mais pragmáticas como a entrada da Chanel no capital da F.P. Journe Invenit et Fecit e a aquisição na totalidade da já mencionada Les Cadraniers de Genève que, até à data, era detida em partes iguais com a Vacheron Constantin.

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Imagens recolhidas aquando da visita aos Les Cadraniers de Genève. © Paulo Pires/Espiral do Tempo

No entanto, desculpem-me a frontalidade: a minha paixão são mesmo os relógios e a fotografia. Se bem que os aspetos da gestão sejam fundamentais e interessantes, esse lado estava nas mãos do meu colega Miguel Seabra, pelo que, enquanto ele ouvia atentamente o Mestre, eu ainda pensava no que tinha visto momentos antes nos ateliers da manufatura na Rue de l’Arquebuse — a montagem do último Sonnerie Souveraine. O último que alguma vez seria feito. Claro que é bem verdade que François-Paul Journe já nos tinha maravilhado com o fantástico Tourbillon Vertical meses antes, porém senti-me nostálgico por saber que aquele incontornável modelo  iria ser descontinuado. Adiante, conversa puxa conversa e eis que surgem as duas palavras mágicas que nos puseram a cabeça à roda: o novo Astronomic Souveraine.

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Nos ateliers da F.P. Journe lá estava o último Sonnerie Souveraine a ser ultimado. Um momento algo emocional para um amante da bela-relojoaria. @ Paulo Pires/Espiral do Tempo

Astronomic Souveraine

O original Astronomic Souveraine foi uma sublime obra-prima que François-Paul criou para o leilão Only Watch, mas cuja intenção era também a de a incluir no catálogo da marca, pelo que nessa nossa visita à F.P. Journe estava já a avançar-se com o modelo que iria ser leiloado e já se previa o início da sua integração na coleção. Ao saber isto, nas costas do Mestre Journe e de frente para o meu colega, resolvi esbracejar e fazer ‘sinais de luzes’, pisquei os olhos e agitei os braços. Para depois dizer:

– Miguel, temos de ter esse relógio em mãos.

Foi um daqueles momentos-chave. Quando o Astronomic Souveraine estivesse pronto, todas as revistas e sites de relojoaria por esse mundo fora iriam querer ter acesso. Quem no universo da relojoaria não iria querer ter na mão a mais complicada criação de Françous-Paul Journe? Qual o apaixonado por fotografia de relógios que não iria querer tê-lo à frente da lente?

Nestas coisas, felizmente, tenho o cúmplice perfeito, pois se eu sou apaixonado por relógios, o Miguel está noutro patamar, pelo que, imediatamente deixou cair uma pergunta com um sorriso:
– E quando estiver pronto, podemos ter acesso ao Astronomic?
Voltámos a Lisboa com um «talvez» na carteira, mas com a promessa da relações públicas da marca, Brigitte Makhzani, de que tudo faria para que conseguíssemos ter acesso ao relógio.

Mais além

De volta a Lisboa e nas reuniões editoriais para a edição de primavera da Espiral do Tempo, foi o tema ‘Mais além‘ que foi ganhando mais peso. ‘Mais além‘ no sentido de extraordinário, visionário, inventivo, arrojado, criativo, de superação e de ir além dos limites estabelecidos. Quanto mais amadurecíamos a ideia mais o Astronomic Souveraine nos parecia ideal como relógio de capa. A cereja no topo do bolo seria ter acesso ao relógio e ao mesmo tempo falar com o seu criador, François-Paul Journe.

Todos concordámos, com sorrisos nervosos, que seria simplesmente incrível, mas algures também a expressão «tá bem abelha» entrou na equação, tal a dificuldade em levarmos a bom porto as nossas intenções. Como muitas vezes se costuma dizer «o não é garantido» e, como tal, iniciámos contactos. «To make a long story short» quiseram os deuses que entre contactos Lisboa/Genève/Dubai os nossos objetivos começassem a ganhar contornos de realidade.

«Sim», o Mestre Journe iria ter uma peça de produção do Astronomic Souveraine à disposição da Espiral do Tempo para ser fotografada e um «duplo sim», pois ele iria também estar presente para uma conversa sobre o mesmo. Neste momento, caros leitores, saímos do mundo da relojoaria e entrámos no mundo da pastelaria, pois isto era a cereja no topo da cereja no topo do bolo em relação ao que pretendíamos.

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Durante a Dubai Watch Week François-Paul Journe que acedeu a ser fotografado com a nossa revista na mão. Uma condição apenas, tapar o relógio “de outra marca”. Um momento bem humorado do Mestre. © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Ansiedade em Genève

O dia chegou. Chegou finalmente o momento em que iria poder fotografar o Astronomic Souveraine e, se tudo corresse bem, uma dessas imagens poderia ser a capa da Espiral do Tempo. Há muito tempo que eu tinha chegado à conclusão de que a próxima capa iria seguir um caminho muito diferente daquele que andávamos a percorrer. Saindo da segurança do ambiente controlado do nosso estúdio em Lisboa, sem o mesmo tempo para fazer e refazer imagens e com todas as condicionantes de ter em mãos uma peça cujo valor se aproximava de um milhão de euros, a minha única e exclusiva preocupação era conseguir uma imagem focada e bem iluminada do relógio.

Não havia tempo, nem meios, nem oportunidade de implementar um conceito como habitualmente fazemos usando mãos e o relógio. Naquelas poucas horas disponíveis, enquanto o Miguel Seabra falava com François-Paul Journe, uma imagem tinha de ser feita na sede da marca usando o que estivesse ao nosso dispor. Para complicar a situação, foi-nos dito que só as sombras das imagens do Astronomic Souveraine que foram tiradas para divulgação da peça demoraram semanas a serem trabalhadas e decididas.

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As primeiras fotos do F.P. Journe Astronomic Souveraine. Rodeado de folhas brancas para proteção dos reflexos. Antes e depois da edição digital. © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Levei comigo uma máquina, uma lente de foco manual, um tripé de viagem (daqueles de plástico que não causam comoção nos aeroportos), um flash e um refletor. Era portanto um kit de viagem e de modo algum poderia aspirar a conseguir uma foto tão boa como as que a marca já tinha. Como tal, a ansiedade instalou-se. Não era, obviamente, uma questão de competição, mas sim de fazer justiça à peça em mãos.

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Noutro cenário, captámos a imagem que iria encerrar o artigo sobre a peça que foi publicado no número 70 da Espiral do Tempo. Paulo Pires/Espiral do Tempo

Numa situação destas relembro-me sempre de uma frase que li algures que, servindo de consolo emocional, é uma grande verdade: imagens deste tipo, não são fotos técnicas, são fotos de ambiente e, consequentemente o ambiente faz parte do relógio, dos seus reflexos, sombras e brilhos. Sendo assim, fiz o meu trabalho. Consegui tirar diversas fotos em diversos ambientes, de modo a responder às nossas possíveis necessidades. Ao mesmo tempo, revi as fotos que ia tirando, claro, assegurando-me de que estavam em foco e com tonalidades diferentes, umas mais quentes e outras mais frias. Mas, acima de tudo, consegui uma variedade e qualidade que, à partida, me tranquilizou. 

E eis que…

… depois de um primeiro momento dedicado em exclusivo ao relógio, chega François-Paul Journe para a grande entrevista com o Miguel Seabra. Como complemento do artigo, era imperativo recolher também umas imagens de reportagem, no entanto, tenho noção de que o Mestre não aprecia grandemente que andem à sua volta a tirar fotos. Em geral, consigo dosear bem situações como esta, intervalando as fotos com momentos de pausa e até com algumas perguntas ou questões que posso ter. Entre uma piada em mau francês aqui e outra em mau francês acolá, uso todos os truques para que nunca se atinja um nível de saturação que leve a um daqueles olhares desconfortáveis de «guarda agora a máquina, se não te importares». Tenho demasiado respeito e admiração por François-Paul Journe. Sempre que nos recebe é de uma generosidade extrema e o mínimo que posso fazer é retribuir essa generosidade com cortesia, educação e deferência.

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À esquerda, o Mestre Journe aprecia a sua criação com um trolley de viagem no fundo. À direita, o tal olhar que chega a intimidar. Paulo Pires/Espiral do Tempo

Com a entrevista a chegar ao fim, chegou também o tal olhar que tentei evitar. Pensei para mim: «pronto, o que está fotografado está. É altura de arrumar a mochila.» Mas, nessa altura, o Miguel jogou a cartada final, daquelas que, num jogo de sueca, batemos com a mão na mesa com estrondo:

– Mestre, agora só falta mesmo um retrato seu com o relógio no pulso.

O alinhamento cósmico fez-se sentir. François-Paul Journe colocou-se à nossa disposição e conseguimos fazer uns retratos do Mestre marselhês com a sua mais recente criação no pulso. Ao chegarmos a Lisboa, apresentámos à equipa as imagens e foi unânime a decisão de quebrarmos com a nossa linha imagética de capa, tendo em conta o que apelidámos na ocasião de «ouro editorial».  Faltava escolher aquela que seria a nossa foto de capa. Não foi fácil, mas o olhar único de François-Paul Journe levou-nos a tomar a decisão final.

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François-Paul Journe permitiu-nos captar momentos raros do próprio a usar o Astronomic Souveraine. © Paulo Pires/Espiral do Tempo

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