Espiral do Tempo 65: segredos de uma capa

Foram-me pedidas algumas linhas sobre a realização da capa da última edição da Espiral do Tempo, a edição 65. Sem querer entrar em detalhes técnicos achámos que seria interessante, para quem nos acompanha, ficar um pouco por dentro de como fazemos algumas imagens, quais os desafios que encontrámos e os ‘truques’ usados para levar a bom porto mais uma capa.

Como sempre, tudo começa pela escolha do relógio. Sob o tema “Sonhar”, seria inevitável termos um relógio de sonho como estrela maior na capa do número 65 da Espiral do Tempo. A escolha recaiu no soberbo Jaeger-LeCoultre Master Grande Tradition Grande Complication, um modelo que eleva ao máximo o conceito de ‘relógio de sonho’. Reunindo complicações de excelência, este relógio está ao alcance de muito poucos – por um lado, não é qualquer casa relojoeira que tem a capacidade de manufaturar uma peça assim, por outro lado, não é qualquer  pessoa que tem a honra de o poder usar no pulso. Mas, por mais incrível que esta peça seja mecanicamente, foi o seu lado estético que nos levou a evocar o mundo dos sonhos…

Como tem sido hábito, o elemento humano nas capas da Espiral do Tempo passa sempre pelas mãos e o pulso – para nós esta é sempre a melhor forma de mostrar como é um relógio e de como ele assenta. No fundo, são os melhores elementos de ‘suporte’. Por isso, procurámos as mãos que nos pareceram mais adequadas – jovens, elegantes e reais.

Seguidamente, passámos ao desafio mais delicado que é escolher a posição das mãos. Depois de tantas capas em que temos procurado manter-nos fiéis ao nosso conceito, mas lutando sempre para que este não se torne repetitivo, foi preciso alguma imaginação para levar a cabo algo que fosse diferente das edições anteriores.

Imagem realizada para a produção "Into the Wild" e publicada na edição 58 da Espiral do Tempo e que serviu de inspiração para a pose da capa da edição 65.
Imagem realizada para a produção “Into the Wild” e publicada na edição 58 da Espiral do Tempo e que serviu de inspiração para a pose da capa da edição 65. © Paulo Pires/ Espiral do Tempo

Da minha parte, preocupava-me sobremaneira a posição, a pose… com um tema como “Sonhar” agradava-me uma posição contemplativa e a resposta surgiu numa sessão de brainstorming em que nos lembrámos de uma imagem que realizámos para a produção Into the Wild que foi publicada no número 58 da “Espiral do Tempo:  um jovem de braços cruzados atrás da nuca, contemplando o horizonte. Esta posição tem uma grande vantagem porque o relógio fica de frente para o observador permitindo uma perfeita leitura do mostrador e da caixa.

Check-list e circulação sanguínea

A posição estava escolhida pois, à semelhança do que muitas vezes acontece no mundo da relojoaria, fomos ao nosso património inspirar-nos para criar algo novo. Nesta fase recorremos também a uma espécie de “check-list” de meu próprio design para que nada escapasse.

Sim, caros amigos, o meu poder de organização é absolutamente inexistente, peço desculpa, queria dizer extraordinário!

Extraordinária "check-list" e um pequeno "how-to". Deve ser assim que eles fazem na NASA.
Extraordinária “check-list” e um pequeno “how-to”. Deve ser assim que eles fazem na NASA… © Paulo Pires/ Espiral do Tempo

Deixem-me que vos diga que esta não é uma posição fácil e após algumas imagens foi notório que algo estava a acontecer. Devido ao esforço para manter a pose, a circulação nas mãos e nos dedos fez com que a tonalidade da pele se tornasse… menos estética para ser simpático. O ligeiro púrpura contrastando com o pálido em amarelo claro. Há aqui muita riqueza cromática mas… tínhamos em mente outra coisa. Nada a fazer, situações assim são corrigidas em pós-produção.

Diferentes tonalidades da pele são corrigidas em pós-produção.
Diferentes tonalidades da pele são corrigidas em pós-produção. © Paulo Pires/ Espiral do Tempo

Por outro lado, é frequente eu fotografar a mesma cena com a luz a incidir de vários ângulos para que depois possa escolher as melhores imagens para fazer a montagem final. Uma série de fotos para iluminar a mão esquerda, outra série para a mão direita, outra para o cabelo e roupa e ainda outra para a caixa e correia do relógio.

Diferenças na variação da incidência da luz para cada parte específica da imagem.
Diferenças na variação da incidência da luz para cada parte específica da imagem. © Paulo Pires/ Espiral do Tempo

Como é fácil imaginar, caro leitor, quando se trabalha com um objeto estático, fazer uma montagem digital de várias imagens é relativamente simples porque o objeto não se move. Sobrepõem-se as imagens no Photoshop e apaga-se o que não se quer em cada uma.

Quando se fotografa pessoas isso não acontece e, apesar dos melhores esforços do nosso modelo para se manter imóvel, é humanamente impossível fazê-lo. Significa isto que todas as imagens têm desvios umas em relação às outras. Acertos assim, são infinitamente mais complicados de concretizar.

Sobreposição de várias imagens realçando o "desvio" de umas em relação às outras.
Sobreposição de várias imagens realçando o “desvio” de umas em relação às outras. © Paulo Pires/ Espiral do Tempo

Facilmente se percebe que antes de começar a apagar o que não quero em cada imagem (para a montagem final) todas elas têm de estar perfeitamente alinhadas. O que o caro leitor está a ver na imagem acima são precisamente as quatro imagens escolhidas todas sobrepostas, em que se pode ver o tal desvio entre cada uma. Com um objeto estático as imagens ficariam perfeitamente alinhadas.

Os ingredientes da receita

Seguidamente, avançámos para uma das partes mais delicadas, ou seja, fotografar o mostrador do relógio isoladamente para depois se montar em cima da imagem final. E porque faço isto? Simples. Nem sempre a luz que mais me agrada nas mãos, por exemplo, é a luz que mais me agrada no mostrador. Por outro lado, quero sempre o mostrador com o mais detalhe possível e, como tal, prefiro tratá-lo isoladamente.

Recolha de imagens para a capa. Imagens em bruto, saídas da máquina.
Recolha de imagens para a capa. Imagens em bruto, saídas da máquina. © Paulo Pires/ Espiral do Tempo
Recolha de imagens só para o mostrador do relógio.
Recolha de imagens só para o mostrador do relógio. © Paulo Pires/ Espiral do Tempo

Com todos os elementos fotografados chegou a hora “de estar sentado na cadeira, com o Photoshop em alta a queimar pestana”. A partir desde ponto tudo foi começando a ganhar forma e, aos poucos, o que tínhamos em mente foi-se materializado através das artes digitais.

Após algumas horas de trabalho, já era possível ver que todos os problemas anteriores tinham sido resolvidos. As quatro imagens ficaram alinhadas na perfeição, o tom da pele foi uniformizado, todas as imperfeições foram também corrigidas. Por último, o mostrador fotografado à parte também foi inserido na imagem.

No entanto, e após mais algumas sessões de brainstorming, decidimos honrar o Hemisfério Norte desenhado no mostrador do Jaeger-LeCoultre Master Grande Tradition Grande Complication e colocar o nosso modelo a contemplar um noturno céu estrelado. E chegámos aqui.

A imagem de capa já em processo de montagem final.
A imagem de capa já em processo de montagem final. © Paulo Pires/ Espiral do Tempo

“Muito bem!”, exclamámos, “Vamos mas é celebrar que esta capa só precisa do logotipo da Espiral do Tempo e fica feita!”

Mas não estava feita! Quando o diretor da revista vê a imagem e pergunta: “Então, e as constelações do zodíaco? É que o mostrador do relógio também as tem…”

Faltava, de facto, isso.

Mais uma sessão de pesquisa de imagens até conseguimos encontrar uma base para espalhar as constelações do zodíaco pelo nosso céu estrelado. Constelação aqui, constelação acolá e a imagem aproximava-se rapidamente da sua forma final.

Imagem final e uma irritante sombra que foi corrigida no último momento
Imagem final e uma irritante sombra que foi corrigida no último momento. © Paulo Pires/ Espiral do Tempo

Bem… parecia que estava tudo – pose contemplativa, pele das mãos tratada, mostrador impecável, céu estrelado e as constelações do zodíaco em tom azul claro a dar aquele toque especial. Mas sabe, caro leitor. Investiguei durante muitos anos a relação entre o “prazo para entrada em gráfica” e “coisas que (não sei porquê) me dão vontade de mudar” e é matemático. Quando mais curto é o prazo, mais coisas me parecem subitamente mal! Como aquela irritante sombra assinalada na imagem da esquerda.

Pedi ajuda a um amigo do MIT (…)  e em conjunto desenvolvemos um gráfico altamente científico para ilustrar o que quero dizer. Aqui está ele:

O extraordinário gráfico.
O extraordinário gráfico da relação entre “prazo para entrada em gráfica” e “coisas que (não sei porquê) me dão vontade de mudar”… © Paulo Pires/ Espiral do Tempo

Mais um ajuste aqui, mais um toque ali e a tal sombra foi minimizada para níveis que me agradaram bastante mais, resultando numa mão, quanto a mim, mais harmoniosa.

Permitam-me um aparte na forma de sentido agradecimento ao António Allegro pelo “empréstimo” das suas mãos para esta capa.

Deixamos sempre para o fim a escolha da fonte do tema da revista e a citação que gostamos de juntar. Poucas dúvidas houve desta feita. Creio que na redação todos tivemos sempre em mente as palavras de Álvaro de Campos “Tenho em mim todos os sonhos do mundo” do célebre “Tabacaria”.

Para terminar apenas umas palavras a Álvaro de Campos, em jeito de brincadeira: Não, caro amigo, não tens em ti todos os sonhos do mundo, nós também temos alguns e um deles é precisamente o inacreditável Jaeger-LeCoulte Master Grande Tradition Grande Complication que foi capa da edição de inverno 2018 da “Espiral do Tempo”

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