A Roger Dubuis pretende dar uma machadada no convencionalismo relojoeiro, sendo o golpe desferido por uma arma com nome de espada lendária: Excalibur. A manufatura fundada por um português e um suíço tem agora um italiano ao leme — e é um case study. Eis as conclusões desse estudo…
Crónica originalmente publicada no número 77 da Espiral do Tempo (inverno 2021)
Numa indústria que tem por principal modelo de negócio a tradição, não deve haver marca de alta-relojoaria que (aparentemente) mais tenha mudado de feição do que a Roger Dubuis. E foi com essa premissa que fiz a viagem até à costa leste da península itálica, mais precisamente à zona de Pesaro e Misano. Queria perguntar pessoalmente ao CEO da Roger Dubuis a razão pela qual, na apresentação Zoom que promoveu durante a feira digital Watches and Wonders, foi tão peremptório na sua recusa em reinterpretar emblemáticos modelos do passado da marca — numa altura em que são cada vez mais cobiçados por colecionadores e cujos preços dispararam nos leilões da especialidade. Nicola Andreatta mostrou mesmo uma convicção à prova de bala; sabe perfeitamente onde está a companhia que dirige e a direção que ela vai tomar, sendo certa uma coisa: para trás é que não é.
E, no entanto, é um passado muito interessante. Fundada em 1995 por um empreendedor luso e pelo relojoeiro helvético que lhe deu nome, a Roger Dubuis surgiu com grande força no final dessa década e contribuiu decisivamente para tornar a relojoaria fina mais… sexy. Apresentava-se então como uma marca neoclássica assente nas linhas Hommage (caixa redonda) e Sympathie (de forma tonneau, mas facetada octogonalmente), ganhando maior irreverência nos primeiros anos do novo milénio com a extravagância das linhas TooMuch e MuchMore. O Excalibur surgiu em 2005 e, hoje em dia, é a gama que domina totalmente um catálogo de fisionomia bem distinta daquela que apresentava nos anos 90. Até porque Carlos Dias, o empresário português, vendeu a marca ao grupo Richemont em 2008, e Roger Dubuis, o mestre relojoeiro suíço, morreu em 2019.
«Em 26 anos, a Roger Dubuis evoluiu muito. E a nossa essência é essa: avançar, esticar os limites, ultrapassar fronteiras, procurar novas soluções. Mas também foi assim que a marca começou, desafiando a tradição. Os relógios Sympathie apresentavam uma forma muito diferente para o tempo; na ótica dos dias de hoje, parecem um tanto datados — e não resultariam porque, entretanto, o design também evoluiu», fez questão de dizer Nicola Andreatta. «O mais importante para nós é estarmos fora do tempo, termos um design que aguenta o teste do tempo, mas que vai evoluindo. Um bom exemplo disso é a maneira como temos trabalhado o Excalibur. Adequava-se perfeitamente ao que a marca era quando nasceu em 2005; entretanto, a marca evoluiu e o mundo evoluiu, mas o Excalibur manteve-se sempre contemporâneo e tornou-se num ícone: fomos atualizando o design e adaptando a mecânica à direção para onde o mundo vai. Não se pode olhar para a Roger Dubuis num determinado momento do tempo, é preciso ver o modo como vai evoluindo».
Formatação e liberdade
Numa lógica de grupo, a Roger Dubuis assumiu um posicionamento perfeitamente compreensível: é a companhia relojoeira mais vanguardista da Richemont, destacando-se das históricas manufaturas de pendor mais tradicional. Num contexto mais lato, é uma das raras marcas de nomeada com caraterísticas high tech numa época que tem sido dominada pelos relógios clássicos e que se foram tornando mais pequenos. Talvez mesmo a pior era na liberdade do design relojoeiro. «Só posso dizer que é triste. Se é preciso recuar no tempo e apanhar algo que se fez no passado é porque não se tem a criatividade, o espírito, a atitude e a coragem de fazer algo de novo. Isso é terrível, porque não é assim que se evolui», frisou Nicola Andreatta. «A nossa herança é o nosso futuro, pelo que vamos continuar a andar para a frente e fazer algo de diferente. E não olhar para trás, como os outros fazem. É mesmo triste!».
O uso repetido do termo triste (sad, ele exprimiu-se em inglês) não só me fez recordar Elton John a cantar Sad songs (say so much), como reforçou a minha opinião sobre o atual cenário relojoeiro — que considero desequilibrado, depois de várias marcas que surfaram a vaga modernista nos primeiros anos do novo milénio (e que na altura apelidei de ‘tecnolojoaria’) terem desaparecido. Eu próprio acho triste que, quando publico uma imagem de um modelo de estética disruptiva nos muitos grupos WhatsApp de aficionados de que faço parte, as novas gerações praticamente não reajam — em contraste com o entusiástico feedback a mais um modelo banal das marcas de sempre. Os jovens estão a entrar na relojoaria com o espírito formatado pelo neo-vintage vigente!
Oriundo de uma família ligada à relojoaria, Nicola Andreatta cresceu no meio e refuta tão redutora visão. Muito possivelmente foi por isso que Jérôme Lambert, o antigo patrão da Jaeger-LeCoultre e da Montblanc que agora supervisiona o polo relojoeiro da Richemont, o escolheu. «Foi por gostar de desportos radicais e carros velozes», brincou. Talvez o local da nossa conversa (o Circuito de Misano) e a banda sonora de fundo (o roncar de Lamborghinis, não a cantoria de Elton John…) sirvam de prova: estavam em curso as finais mundiais do Super Trofeo e foi lá que a Roger Dubuis apresentou o seu novo Excalibur Spider Huracán Monobalancier. A associação institucional à Lamborghini é perfeita: trata-se de uma escuderia oriunda de um país que preza tanto o passado e o vintage, mas que é totalmente virada para o futuro. Tal como a Roger Dubuis no contexto da relojoaria suíça.
A única concessão de Nicola Andreatta? «O pre-owned é provavelmente a parte do mercado que mais vai crescer nos próximos anos. Vamos tomar conta da nossa herança, não vamos apagar ou esquecer o que fizemos». Mas a estratégia principal está definida: «Trabalhamos a 360 graus, os novos materiais ajudam à funcionalidade e ao rendimento. A missão é lutar contra a gravidade. Sempre trabalhámos o órgão regulador para evitar que o peso da gravidade afete a precisão — fizémo-lo com o turbilhão, o duplo turbilhão, turbilhão inclinado, o balanço inclinado a 12 graus, o Aventador com dois balanços, o Quatuor com quatro balanços, os modelos Single Flying Tourbillon e Double Flying Tourbillon. Temos a gaveta cheia de projetos e só posso dizer o seguinte: esperem o inesperado». Pela minha parte, mal posso esperar novas demonstrações de Hiper Relojoaria, como lhe chama a marca. Está na altura de se voltar a dar mais crédito a estéticas e mecânicas disruptivas.