Corrida ao ouro

EdT57 — Metal precioso por excelência, o ouro sempre esteve presente desde os primórdios da relojoaria e mantém-se como material de exceção no universo relojoeiro de prestígio. Mas a sua utilização tem evoluído a par dos progressos técnicos e estéticos das últimas duas décadas no setor — aqui ficam as mais recentes novidades de uma corrida cujo interesse tem redobrado graças ao lançamento de novas ligas, tonalidades e aplicações.

Texto originalmente publicado na edição de inverno 2016 da Espiral do Tempo

Ouro Fairmined
Ouro Fairmined fundido. © Chopard

Durante muito tempo, a alta-relojoaria esteve intrinsecamente associada aos metais mais preciosos — não se tratava apenas de produzir os mecanismos mais bem decorados e tecnicamente com melhor desempenho, mas também de os incluir num belo invólucro que invariavelmente teria de ser em ouro ou platina. A Audemars Piguet estabeleceu uma rutura em 1973 com o seu Royal Oak, esculpido em aço criteriosamente trabalhado como se fosse ouro e a um preço mais condizente com o ouro — e, três anos depois, a Patek Philippe seguia pela mesma via com o seu Nautilus, igualmente concebido em aço.

ouro: Octa Divine
F.P. Journe Invenit et Fecit Octa Divine, com caixa em ouro rosa 18 kt. © Espiral do Tempo / Paulo Pires

Apesar dessa aparente ‘concessão’ ao metal mais democrático por parte de históricos bastiões da arte relojoeira, os preços desses modelos de prestígio em aço não baixaram tanto comparativamente com os de ouro: na alta-relojoaria, a mais-valia até está sobretudo na técnica de manufatura e no trabalho decorativo. Mas a utilização de qualquer metal precioso acaba por dar mais nobreza ao conjunto, e, hoje em dia, qualquer manufatura de topo apresenta os seus melhores modelos em platina ou em ouro.

ouro: L.U.C Perpetual Chrono
Chopard L.U.C Perpetual Chrono, com caixa em ouro branco Fairmined de 18 kt. © Chopard

Mesmo que a platina seja mais valiosa, o ouro mantém-se como um caso à parte — é o metal precioso por excelência desde os primórdios da civilização (estima-se que foi descoberto por volta de 6000 a.C.), e nos dias de hoje constitui ainda mais um valor seguro face à reconhecida volatilidade dos mercados financeiros. Na alta-relojoaria, o ouro representa também uma garantia eterna de investimento — apesar de alguma flutuação no seu preço — e é exaltado com toda a carga simbólica que lhe é inerente, sendo as suas várias tonalidades exploradas de modo a serem conjugadas na perfeição com mostradores claros ou escuros, clássicos ou desportivos, sóbrios ou ousados, simples ou complicados. E há cada vez mais marcas a vangloriarem-se de ligas de ouro exclusivas, sendo que, nesse sentido e no mesmo dia do recente mês de outubro, tanto a A. Lange & Söhne como a F.P. Journe apresentaram modelos em edição limitada.

Utilização abrangente

ouro: Rolex Cellini
Rolex Cellini Dual Time, com em Everose 18 kt. © Espiral do Tempo / Paulo Pires

São várias as razões que justificam o fascínio pelo ouro além do seu valor intrínseco: o tom, o brilho, a durabilidade, a maleabilidade, a resistência à corrosão e às manchas. Estas são caraterísticas que tornam o metal precioso numa escolha adequada para os mais exclusivos instrumentos do tempo. O ouro é principalmente utilizado na caixa do relógio e, por concordância, no fecho da correspondente correia ou nas braceletes maciças — mas também pode ser encontrado como componente principal nos próprios movimentos dos relógios ou como detalhe de exceção em elementos mais simples, nomeadamente mostradores, submostradores, índices, algarismos e ponteiros.

ouro: Centigraphe
F.P. Journe Invenit et Fecit Centigraphe © Espiral do Tempo / Paulo Pires

Quanto ao acabamento, são múltiplas as hipóteses estéticas e os níveis decorativos que o próprio ouro proporciona e que o tornam ainda mais desejável — por exemplo, o tratamento escovado nos relógios em ouro rosa para um efeito mate distinto ou o tratamento polido nos relógios em ouro amarelo para um efeito mais puro. O ouro amarelo sempre foi o mais utilizado em relojoaria, fosse a solo ou aliado ao aço, mas, na última década, as companhias relojoeiras têm optado mais pelo ouro rosa ou pelo ouro branco e, mais recentemente, até têm estado na moda os tons intermédios. O ponto de partida é o ouro de 24 kt, com um grau de pureza praticamente total (99,99%); a partir daí, o ouro é derretido e as combinações que lhe são acrescidas tornam o metal precioso não só mais resistente, mas também com as tonalidades desejadas.

A palavra do mestre

ouro rosa
F.P. Journe Invenit et Fecit Chronomètre Optimum, com caixa e mostrador em ouro rosa 18kt. © Espiral do Tempo / Paulo Pires

François-Paul Journe é das personalidades da relojoaria que melhor conhece o tema — não só porque a sua formação relojoeira foi feita a restaurar obras-primas dos grandes mestres de outrora, mas também porque tomou a decisão de produzir os seus próprios movimentos exclusivamente em ouro. «O ouro vermelho é o mais duro. Antes, utilizava-se sobretudo o ouro amarelo ou o meio rosa. Há ouro amarelo, meio rosa, rosa e vermelho: em França, chama-se amarelo ao ouro amarelo 2N; depois há o 3N, o 4N, o 5N e o 6N, que é o ouro vermelho. Não gosto do ouro amarelo, pelo que nunca fiz relógios em ouro amarelo; sempre os fiz com ouro avermelhado. E também não gosto do ouro branco: é um ouro mais acinzentado que não considero particularmente bonito e, quando riscado, é preciso retirar a camada de ródio para depois a recolocar. Como metal branco, sempre preferi a platina: é mais cara e mais difícil de trabalhar, mas também é melhor», confidenciou-nos numa entrevista em Nova Iorque.

ouro F.P. Journe Invenit et Fecit
Caixas F.P. Journe Invenit et Fecit, Les Boîtiers de Genève, Montres Journe SA. © F.P. Journe Invenit et Fecit

O ouro puro tem uma dureza de 2,5 na escala de Mohs, o equivalente a uma dureza de 30 Vickers; as ligas podem catapultar essa dureza para os 300. Os quilates indicam o grau de pureza do ouro, sendo 24 a expressão máxima e 18 (o melhor compromisso entre luxo e funcionalidade) a versão instituída por lei na maior parte dos países para a sua designação, enquanto ouro propriamente dito e consequente comercialização. François-Paul Journe é um grande aficionado do ouro de tonalidade avermelhada: «Nos últimos anos, fazemos as caixas dos nossos relógios em ouro 6N. É muito bonito, mas extremamente difícil de se trabalhar». E recorda que a utilização do ouro vermelho, tão em voga ultimamente, já vem de longe: «Não nos podemos esquecer de que as espirais em ouro existem desde 1820 e, na relojoaria, quando há algo que tem mesmo de ser sólido, é feito em ouro vermelho — porque tem as mesmas caraterísticas do que o aço. Os primeiros relógios F.P. Journe, no final do século XX, já eram em ouro vermelho».

ouro
Os calibres F. P. Journe Invenit et Fecit são concebidos em ouro. © Espiral do Tempo / Nuno Correia

A decisão de passar a fazer movimentos em ouro no início do milénio também foi relevante para a história da marca: «Quando apresentei o meu primeiro relógio em Basileia, em 1991, esse modelo inaugural tinha o movimento em ouro, mas quando arranquei com a marca e a coleção propriamente dita, em 1998, ainda não tinha verticalizado a produção. Logo que senti que estávamos prontos, fizemos a transição e, nos nossos movimentos, recorremos ao ouro 3N, por ser mais maleável».

Curiosamente, os relógios F.P. Journe com movimento em aço são atualmente muito procurados — porque, com o passar do tempo, tornaram-se mais raros e em clara minoria (atualmente, correspondem a 10%, mas a percentagem vai baixando) comparativamente com o grosso da produção, assente em movimentos de ouro.

Tonalidades suaves e coloridas

ouro branco
Rolex GMT-Master II Pepsi, com caixa em ouro branco 18 kt. © Rolex/ Alain Costa

Apesar de não ser apreciador de ouro branco nem de ouro amarelo, François-Paul Journe acaba de lançar um relógio muito especial numa tonalidade entre o branco e o amarelo. «Chamo-lhe ‘ouro palha’. Fizemos um modelo especial para o clube de colecionadores, e fui influenciado pelas joias H. Stern, do Brasil, que usam uma tonalidade dourada muito suave. O presidente da Journe Society, Felipe Jordão, é brasileiro e queria algo do género. Adoro, acho um tom muito belo. Fizemos uma fórmula secreta e estabelecemos um contrato de confidencialidade com o nosso fornecedor; é uma ‘fórmula mágica’ de ouro e inclui paládio, mas não posso dizer mais…»

ouro amarelo
TAG Heuer 300M Calibre 5 Steel and Yellow Gold, com caixa em aço e ouro amarelo de 18K. © TAG Heuer

O relógio, com mostrador azulado e fases da Lua, não pode ser revelado ao público — já o vimos, mas não pudemos tirar qualquer fotografia, porque é mesmo secreto. E nenhum dos exemplares é numerado: trata-se de um clube de colecionadores tão fechado que os relógios não precisam de numeração, mas as nossas estimativas apontam para que o grupo tenha cerca de 37 elementos. Ironicamente, esse relógio foi lançado precisamente no mesmo dia em que a A. Lange & Söhne apresentava, nas suas boutiques em todo o mundo, uma série de 100 exemplares do Lange 1 Time Zone em ‘ouro mel’ — também um ouro com uma tonalidade que se pode descrever como estando ‘abaixo’ do amarelo.

ouro
Lange 1 Time Zone Honey Gold © A. Lange & Söhne

O ouro amarelo (2N e 3N) é o que se aproxima mais da cor original, recebendo normalmente uma pequena adição de prata; já o ouro rosa (4N), rosado (5N) ou vermelho (6N) depende do acrescento de uma determinada percentagem de cobre para atingir a tonalidade desejada, além da adição de prata e zinco; o ouro branco requer processos mais complexos, conjugado com paládio e sendo revestido de ródio para a obtenção do desejado brilho prateado. No ouro ‘colorido’, a junção da platina é importante, mesmo que seja apenas na ordem dos 2%: devido à sua inércia, a platina age como um protetor do ouro e fixa os átomos de cobre perante a agressão dos elementos exteriores.

ouro: Franck Muller Long Island Sporting 100
Franck Muller Long Island Sporting 100, com caixa em ouro verde. © Ana Baião

Em Portugal, deu que falar no início do milénio o ouro verde: para celebrar o primeiro século de vida do Sporting Clube de Portugal, foi elaborada uma série especial de relógios Franck Muller — denominada Long Island Centenário — com um tom de ouro esverdeado graças à alquimia certa de uma liga especial! Hoje em dia, graças a combinações específicas e ligas patenteadas, há marcas que dão um nome específico ao ‘seu’ ouro como meio de diferenciação e até argumento de venda. A Hublot, fiel ao lema da Arte da Fusão, tem o seu Magic Gold à prova de risco e o seu King Gold especialmente avermelhado; a Rolex há muito que vangloria as qualidades do Rolesor e do Everose.

Produção própria e certificada

ouro Fairmined
Lingotes de ouro Fairmined. © Chopard

Não há muitas marcas capazes de produzir os seus produtos em ouro através de uma fundição própria, onde o ouro puro é primeiro transformado nas ligas mais adequadas e depois concretizado em caixas, braceletes e outro tipo de componentes relojoeiros ou joalheiros, na sequência de um processo moroso e que requer uma complexa sucessão de etapas.

ouro Chopard
A futura caixa de um relógio emerge de uma barra em ouro. © Chopard

A Rolex e a Chopard são raras exceções. Começam com lingotes de um quilo de ouro de 24 kt (comprados às instâncias oficiais, com certificação do controlo suíço dos materiais preciosos), mergulhados em fornos de vácuo com temperaturas à volta dos 1000 °C, que vão cozinhando os lingotes até os transformarem em líquido. Depois, são fornecidos os aditivos que tornam o metal precioso ainda mais resistente ou com as tonalidades requeridas pelas opções estéticas através de ligas específicas. Após a fundição, a liga de ouro é colocada liquefacta em moldes e esfriada até saírem barras; essas barras entram depois em prensas que formam novos blocos de onde são posteriormente extraídas as caixas e braceletes dos relógios, esculpidas através de maquinaria de extrema precisão e finalmente tratadas com múltiplos tipos de acabamento.

microrrotor em ouro
O microrrotor em ouro de 22 kt do Chopard L.U.C XPS 1860. © Chopard

A Rolex parte do ouro de 18 kt com 75% de ouro puro para fazer o ‘seu’ ouro branco, amarelo e Everose — designação para a liga exclusiva de ouro rosa «que não perde a tonalidade com o tempo». Já o termo Rolesor, patenteado em 1933 (!), tem a ver com a conjugação de aço e ouro nos seus famosos relógios bicolores (ou monocromáticos, na combinação de aço com ouro branco). A marca da coroa não divulga muito as percentagens inerentes às ligas, mas sabe-se que a Chopard junta a 75% de ouro 16% de prata e 9% de cobre para a obtenção do ouro amarelo 2N, invertendo depois as proporções que vão até 9% de prata e 16% de cobre para o ouro rosa 4N — e também faz questão de utilizar ouro um pouco acima dos 18 kt como garantia de qualidade.

ouro Rolex
Ouro amarelo 18 kt © Rolex /Jean-Daniel Meyer; ouro branco 18 kt ©Rolex/Cédric Widmer; Everose 18 kt © Rolex /Jean-Daniel Meyer
ouro, Rolesor
Rolesor: o termo tem a ver com a conjugação de aço e ouro nos relógios bicolores da Rolex. © Rolex /Cédric
Widmer

Entretanto, a Chopard — propriedade da família Scheufele, que na sua origem era, sobretudo, joalheira — apresentou também a certificação Fairmined, que garante que o ouro utilizado nos seus produtos com o correspondente selo foi obtido da maneira mais responsável possível: sem exploração humana nem desrespeito pelo ambiente. Essa é claramente uma via a seguir num século XXI com uma maior sensibilidade ética e social, contrastando com um milénio anterior em que tantas atrocidades foram cometidas em nome da corrida ao ouro.

ouro Fairmined
Lingotes de ouro Fairmined. © Chopard

Ainda antes da lenda do El Dorado na época dos Descobrimentos, os alquimistas da antiguidade procuravam transformar o chumbo em ouro através das mais variadas fórmulas químicas, mas, ao que se sabe, a solução nunca foi encontrada e o Toque de Midas mantém-se na área da mitologia. E mesmo numa era virada para a tecnologia em que tantos outros materiais mais raros e mais preciosos têm vindo a ser explorados, o ouro será sempre ouro: o metal de luxo por excelência e universalmente aceite como tal, simbolizando riqueza, poder, realeza. O seu simbolismo tem-se mantido incólume desde as culturas ancestrais até às civilizações contemporâneas, valendo tanto para uma declaração de amor como para uma demonstração de sucesso, legitimação social ou mesmo a mais desejada recompensa olímpica.

ouro rosa
Chopard L.U.C Tourbillon QF Fairmined, com caixa em ouro rosa Fairmined 18 kt. © Chopard

Na alta-relojoaria, o ouro distingue-se pela sua versatilidade e preciosidade — independentemente das soluções adotadas. E é garantido que um sofisticado instrumento do tempo em ouro é um precioso investimento no tempo. ET_simb

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