Edição impressa | Numa altura em que o excessivo classicismo e a folia do vintage pode encaminhar o mercado para uma reação contrária à que se tem vindo a sentir, recordamos que foi a água que veio moldar a génese do relógio moderno. E que há marcas contemporâneas independentes que assentam literalmente a sua existência na… liquidez!
Crónica originalmente publicada no número 63 da Espiral do Tempo (verão 2018)
É sempre assim. Também na história da arte se assistiram a ciclos revolucionários e contrarrevolucionários, pelo que se torna mais do que natural que a moda avance igualmente em ciclos e contraciclos. No que diz respeito à relojoaria, tem-se caraterizado por uma tendência vincadamente rétro ao longo da presente década, com a proliferação de reedições e reinterpretações de históricos modelos ou até mesmo criações completamente inéditas, mas utilizando códigos estéticos de outrora. Entre essas recriações há vários relógios com raízes na mais transformadora das décadas, a dos anos 70, mas a inspiração baseia-se, sobretudo, em versões mais clássicas das décadas de 50 e 60.
Ou seja, perante a iminência de uma overdose neoclassicista e sob a influência dos recordes estabelecidos por relógios vintage em leilões, pode esperar-se que a futura reação do mercado represente uma mudança completa à tendência rétro atualmente vigente. Com uma diferença: a revolucionária década de 70 ficou cultural e esteticamente marcada pela conquista do Espaço e pelo futurismo que lhe foi adjacente. As múltiplas missões Apollo em direção à Lua e a proliferação de filmes/séries de ficção científica mexeram com os costumes e com o imaginário das pessoas… tanto que, quando os relógios de quartzo surgiram e os mostradores digitais LED inundaram o mercado, quase todos acharam que a relojoaria mecânica analógica estava ultrapassada e votada à extinção.
Hoje em dia, não existe a urgência modernista que caraterizava os anos 70 porque a conquista do Espaço passou para um plano terciário. Mas os designs mais radicais e vanguardistas da relojoaria contemporânea ainda estão marcados por essa década — a década da juventude de criadores como Max Büsser ou Vianney Halter que, desde o final dos anos 90, tanto fizeram pela implementação da alta-relojoaria independente assente num conjunto de iconoclastas criadores determinados a fugir às normas e capazes de concretizar as suas ideias radicais. Max Büsser foi muito influenciado pela ficção científica e essa paixão influenciou o advento das suas já célebres Horological Machines.
O trajeto profissional de Max Büsser acabou mesmo por ser o inspirador desta crónica que faz a ponte entre o passado e o presente, o clássico e o moderno — devido a uma sua frase marcante proferida num dos fóruns da Dubai Watch Week do passado mês de novembro: referiu então que, quando tinha reuniões em Genebra, se sentia quase forçado a usar os seus modelos Legacy Machine (a variante mais clássica na sua coleção) porque o conservadorismo local não via com bons olhos as suas mirabolantes Horological Machines. E essa constatação peculiar do fundador da MB&F remete-me para um outro episódio protagonizado por ele mesmo que me foi transmitido pelo designer Emmanuel Gueit e que me foi confirmado pelo próprio Max Büsser: por alturas de 1992, num almoço entre ambos na Vallée de Joux, o jovem Emmanuel (designer na Audemars Piguet) mostrou ao jovem Max (que então trabalhava na Jaeger-LeCoultre) os planos para o Royal Oak Offshore. «Isso é um monstro», respondeu Büsser, certamente influenciado na altura pelo classicismo da Jaeger-LeCoultre, «nunca se vai vender!». Hoje em dia é a linha bestseller da marca…
O certo é que, no final dessa mesma década de 90, Max Büsser estava a liderar uma revolução na Harry Winston através do projeto Opus que catapultou para a ribalta os mestres independentes com soluções concetuais esteticamente ainda mais arrojadas do que o Royal Oak Offshore e, 15 anos depois, fundou a sua própria marca segundo a lírica premissa de que «um adulto criativo é uma criança que «sobreviveu». Daí a inspiração no imaginário sci-fi da sua meninice tão presente na irreverente linha HM (Horological Machine) que se tornou na sua imagem de marca até ao surgimento da mais tradicional LM (Legacy Machine).
O mais recente lançamento da MB&F é a variante verde da HM7 de inspiração marinha, dita Aquapod, cujo formato é evocativo das… alforrecas. A MB&F não está propriamente direcionada para os relógios ditos profissionais e muito menos de mergulho, mas é interessante constatar que foi a água a empurrar a relojoaria para os tempos modernos – primeiro com as caixas de estanqueidade gradualmente mais importante graças a desenvolvimentos arquiteturais e na construção da coroa (sendo a Rolex o expoente nesse aspeto, do Submariner ao Sea-Dweller), depois com designs integrados e inovadores de conotação náutica surgidos sobretudo na década de 70 (principalmente graças ao Royal Oak da Audemars Piguet e ao Nautilus da Patek Philippe).
Noutro âmbito, não é a água — mas outro tipo de fluído — que está por trás do conceito de duas das mais inovadoras marcas contemporâneas: a HYT e a Ressence. A HYT assenta numa tecnologia hidromecânica em que líquidos especialmente preparados são propulsionados para indicar a hora ao longo de um microtubo. A Ressence tem por premissa submostradores em disco que rodam sobre um mostrador também rotativo; o módulo desloca-se em órbita sobre uma base de 35,7 ml de óleo, que lubrifica em permanência o mecanismo e atenua o peso dos componentes. Dois bons exemplos de como o passado pode estar ligado a soluções futuristas: há cerca de 3.400 anos, os faraós mediam o tempo com clepsidras —relógios com um dispositivo movido à base de líquidos (normalmente água) que funcionavam por gravidade, segundo princípios semelhantes aos da ampulheta.
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