À imagem dos seres humanos potenciados pela cibernética, foram implantados, em alguns relógios, módulos eletrónicos que ampliam as capacidades destes. E apesar de estarem à margem da inovação em relojoaria, acabam por surpreender pelo pragmatismo.
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Por David Chokron
Imagem acima: O Hybrid Manufature da Frédérique Constant.
No domínio da relojoaria, a eletrónica e a mecânica são como água e azeite: não se misturam. Neste contexto, é impossível ignorar a sacrossanta regra que diz que os relógios eletrónicos são baratos, sem valor particular, sem tradição, sem alma, enquanto os relógios mecânicos são, por sua vez, dotados de todos estes atributos. Mas, como se pode constatar com a mostarda que combina azeite e vinagre no vinagrete, um ingrediente pode solidificar uma união que à partida parecia ser contranatura. Este conceito é o da hibridização – relógios cyborgs que têm um corpo e uma alma mecânica, mas cujas capacidades são ampliadas por um circuito eletrónico. O benefício que se pode esperar desta mistura é o seguinte: a eletrónica é funcionalmente superior a qualquer coisa que a relojoaria mecânica possa alcançar, num determinado espaço físico e a um custo mil vezes inferior.

Baixa intensidade
As tentativas para se conseguir obter o melhor da combinação entre a rodagem e o eletrão não são novas. Já na década de 80 do século passado, os movimentos meca-quartz, e especificamente os movimentos de quartzo nos quais se montavam módulos de cronógrafos mecânicos, eram já utilizados pela Cartier no Pasha, entre outros modelos de outras marcas. Em 1988, a Seiko lançou o sistema Kinetic, em que uma massa oscilante servia como dínamo para recarregar os acumuladores de um movimento de quartzo. O conceito foi assumido pela ETA e entregue à Rado ou à Ventura, permitindo uma indicação digital multifuncional acoplada a um rotor bem visível. No início da década passada, a Linde Werdelin foi fundada com base nesse princípio de acoplação, mas exterior – juntando um módulo electrónico exterior sobre um relógio mecânico, mas com uma evidente separação física. A hibridização elementar consiste, portanto, em fazer os dois universos coexistirem numa mesma caixa, mas através de uma interação ténue. A Frederique Constant fez deste o princípio do seu Hybrid Manufacture, um relógio mecânico com caixa de aço na qual reside um sensor de smartwatch, que fornece informações de rastreamento de atividade. Este sensor consegue ainda analisar o funcionamento do relógio, contudo não permite qualquer ajuste.

Alta intensidade
No coração de um relógio, a precisão surge como uma verdadeira simbiose. De facto, mesmo o melhor órgão regulador mecânico, estando sujeito aos choques e às vibrações do uso quotidiano, apresentará sempre alguns segundos de erro por dia. Um movimento de quartzo de qualidade reivindica o mesmo erro, mas à escala anual. Aumentar as capacidades do movimento consiste, portanto, em inserir um regulador eletrónico num relógio mecânico. A Piaget criou um movimento automático de microrrotor regulado por um gerador de quartzo que controlava o movimento do Emperador Cushion XL 700P. Trata-se de uma variação do conceito imaginado há quinze anos pela Seiko com o Spring Drive. No lugar de um conjunto tradicional roda de balanço/espiral/escape, esta família de movimentos dispõe de um regulador chamado Tri-synchro. A força mecânica do tambor faz girar um dínamo que cria a força elétrica, que, por sua vez, alimenta um circuito eletrónico equipado com um cristal de quartzo. Graças à informação de quartzo acumulada com a força eletromagnética, o circuito estabiliza a velocidade de uma roda que controla a parte mecânica.

Monitoramento interativo
Em 2013, a Urwerk imaginou uma outra modalidade de regulação. O seu relógio EMC, um acrónimo de Electro Mechanical Control, está equipado com uma cabeça de leitura a laser, que monitoriza as oscilações do balanço e dá conta da sua precisão num contador no mostrador. Os corretores permitem mover o índice da raqueta e modificar a marcha do relógio. Depois, em 2018, a marca foi mais longe com o AMC – o seu Atomic Master Clock. Trata-se de uma grande mala de 35 kg que mais parece uma bomba nuclear portátil numa aventura de James Bond, mas que, na verdade, é um relógio mestre com precisão científica. Em primeiro lugar, serve de pêndulo que funciona por simpatia: dá corda e regula automaticamente o EMC.

A inovação neste domínio da hibridização é decididamente levada a cabo por empresas de pequena dimensão, porque é difícil de imaginar algo mais pequeno do que a Ressence. Conhecida pelo seu sistema de indicação contrarrotativa, a marca belga criou o Type 2. Entre o seu movimento de base ETA e o módulo de indicação que faz a sua identidade, a Ressence interpôs um módulo eletrónico. Dotado de motores, é alimentado pelo rotor e células fotovoltaicas. Apesar de ser digital, comanda ponteiros analógicos, regista, controla, ajusta e regula a hora automaticamente ou via uma aplicação acessível por Bluetooth ou através do mostrador táctil.

Apesar de serem interessantes, tais iniciativas híbridas permanecem marginais. Mesmo a gigante Seiko não conseguiu fazer do Spring Drive um fenómeno de massa, faltando a partilha de tecnologia. O relógio mecânico tem, portanto, tudo a ganhar: um Grand Seiko Spring Drive indica um erro médio de um segundo por mês numa base 90% mecânica. E o Type 2 regressa à hora certa e durante anos, assim que vê novamente a luz. Quem pode lutar contra tais argumentos práticos?
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