Cultivar a história

Foi em 2010 que tivemos a oportunidade de visitar o atelier de restauro e reparação da Audemars Piguet, um lugar que, na altura, nos pareceu diretamente saído dos finais do século XIX. Entretanto, muita coisa mudou ou terá mudado, mas nada nos impede de viajar no tempo à nossa maneira. Por isso, hoje revisitamos essa reportagem, em mais um regresso aos arquivos que fazem parte das duas décadas de edição da Espiral do Tempo.


Reportagem originalmente publicada na edição impressa da Espiral do Tempo 32 (Verão 2010)


A tradição de excelência preconizada pela Audemars Piguet passa pela manutenção a todos os exemplares jamais criados pelos artesãos da célebre manufatura – mesmo os mais antigos. Nesse aspeto o seu atelier de restauro e reparação afigura-se como um caso à parte no mundo da alta relojoaria.

A reputação de uma marca relojoeira não está relacionada apenas com a intrínseca qualidade dos seus instrumentos do tempo – tem sobretudo a ver com a capacidade de assegurar, de maneira rápida e competente, o melhor serviço pós-venda possível. Normalmente, cada marca dispõe de um departamento habilitado para resolver problemas mecânicos e substituir peças; no que diz respeito às marcas de alta-relojoaria, a situação coloca-se a um nível muito superior, uma vez que é necessário reparar, substituir e reparar mecanismos de enorme complexidade que até podem ter muitas décadas ou mesmo séculos de vida.

Detalhes fotografados na Manufatura Audemars Piguet a pequenas peças e às bancadas de madeira
| © Nuno Correia / Espiral do Tempo

No caso dos relógios mais antigos, a solução mais habitual encontrada por muitas firmas relojoeiras é o outsourcing – o recurso a mestres relojoeiros com talento para a restauração, ou a ateliers especificamente vocacionados para o género que dispõem da capacidade de reconstruir peças semelhantes às originais. Alguns dos melhores relojoeiros da atualidade foram restauradores e ganharam bagagem técnica refazendo complexas criações relojoeiras do antigamente, como François-Paul Journe. Mas a Audemars Piguet vai mais longe – noblesse oblige!

Desde 1875 que, na sequência da associação entre Jules Audemars e Fréderic Piguet, a Audemars Piguet lança a partir da Vallée de Joux algumas das mais excecionais criações relojoeiras – autênticas preciosidades que é necessário acarinhar ao longo da sua vida, sobretudo porque algumas criações ganham um valor incalculável com o passar dos tempos. Daí que, num edifício ao lado do seu próprio museu em Le Brassus, a Audemars Piguet tenha reunido um importante acervo histórico de peças, mecanismos e utensílios que, manuseados por uma equipa de génios relojoeiros, possibilita a recuperação de algumas das mais complexas obras-primas da manufatura… e não só.

Em ‘portunhol’!

Na altura em que lá fomos, o responsável pelo departamento de restauração de relógios antigos e reparação de relógios complicados da Audemars Piguet trabalhava na manufatura há 29 anos e exprimia-se num português quase perfeito – um galego jovial e dinâmico, que tem passado todo o seu entusiasmo aos jovens relojoeiros que partilham a sua paixão. «Fui aprendendo com oito grandes relojoeiros da Audemars Piguet e agora é a minha vez de passar tudo o que sei aos relojoeiros que trabalham comigo. A experiência de cada um é o tesouro de todos – e, neste atelier, temos a felicidade de efetuar um trabalho que poucos podem fazer no mundo inteiro», regozijava-se Francisco Pasandin. «Tive a sorte de, há cinco anos, a direção me ter dado a sua confiança para criar este atelier – atualmente, não há outra manufatura que tenha um conceito do género. Quando as pessoas compram um relógio Audemars Piguet, estão a fazer um investimento. E ninguém quer deixar um bom investimento nas mãos de desconhecidos».

Detalhes fotografados na Manufatura Audemars Piguet de posters antigos.
| © Nuno Correia / Espiral do Tempo

O atelier de Francisco Pasandin parecia um local perdido no tempo: ainda se via um computador ou outro, mas o cenário dominante incluía instrumentos, ferramentas, caixas, peças e manuscritos antigos. Hoje em dia, mesmo as históricas manufaturas, como a própria Audemars Piguet, apresentam um visual e uma decoração mais ‘modernas’ nas suas oficinas ‘normais’; o atelier de restauro da Audemars Piguet parecia diretamente saído dos finais do século XIX. «Aqui trabalhamos a relojoaria como se fazia há 100 anos», explicou-nos o autodenominado galaico-duriense.

Detalhes fotografados na Manufatura Audemars Piguet a peças a serem trabalhadas por relojoeiros
| © Nuno Correia / Espiral do Tempo

Mas, afinal, como é possível que relojoeiros contemporâneos consigam esse restauro original tão próxima da perfeição? «A formação específica é muito importante. Começamos com relojoeiros com uma experiência de cinco ou seis anos em relógios mais simples; se um determinado relojoeiro demonstra interesse e vocação pelo restauro e pelos modelos históricos, convido-o a juntar-se a nós. Na formação, começamos pelos relógios mais simples, depois pelos de repetição minutos, passamos às grandes complicações, e chegamos à restauração de modelos antigos cada vez mais complicados – essa é a formação de base». E sublinhou: «É fácil perder-se o savoir-faire ancestral – e por isso tivemos de aprender por nós mesmos, com os manuais históricos à disposição e fazendo as nossas experiências em relógios complicados. Por exemplo, no plano da decoração: em alguns casos tivemos de fazer nós próprios algumas decorações, uma vez que não tínhamos dados relativos aos padrões originalmente utilizados. E para não se perder mais o tal savoir-faire, registo todos os trabalhos que aqui se fazem; fiz uns manuais acerca dos diversos tipos de restauro, com as explicações de todas as peças necessárias e dos diversos tipos de decoração, para poder transmitir os conhecimentos por escrito e com ilustrações que dão a explicação das peças, das referências, dos acabamentos e dos mecanismos.»

Precioso acervo histórico

Uma das mais-valias do atelier é o precioso espólio de mecanismos e peças sobresselentes que constitui herança da marca desde os seus primórdios. «Temos um valioso património da Audemars Piguet, com todo o tipo de peças que foi sendo acumulado desde o início da marca. É um tesouro de valor incalculável – muitas outras marcas deitaram fora máquinas e mecanismos durante a crise do quartzo e perderam o seu savoir-faire. Por exemplo, agora temos no atelier um relógio de 1913 que precisa de várias peças originais – e ou as temos connosco ou temos a possibilidade de criar exatamente iguais, peças novas que muitas das vezes são feitas com ferramentas antigas – e muitas vezes temos de fazer esses utensílios, que eram utilizados há mais de 100 anos.»

Manufatura Audemars Piguet
| © Nuno Correia / Espiral do Tempo

A disparidade histórica e a capacidade de estabelecer a ponte entre eras distintas é um motivo de regozijo para Francisco Pasandin. «É um orgulho trabalhar com relógios que foram feitos com tanta minúcia por antigos mestres. Fazemos o mesmo trabalho que antigamente os relojoeiros faziam aqui na Vallée de Joux», confessou entusiasticamente. Mas também reconhece que muitos dos problemas que enfrenta foram provocados por relojoeiros menos hábeis ou pouco habilitados – na maior parte dos casos, soluções baratas encontradas fora do âmbito do serviço oficial de pós-venda. «Em quase 80 por cento dos casos, temos de reparar estragos que outros relojoeiros fizeram…».

Um atelier internacional

A competência do atelier de Francisco Pasandin é tanta que por vezes é contratado para recuperar modelos históricos de relojoeiros individuais ou de outras marcas. «O relógio mais antigo que tivemos de restaurar foi um relógio erótico de 1700 – não era Audemars Piguet, mas também fazemos restauração de marcas que desapareceram. A janela com o casal a ter relações era muito interessante…». No caso das complicações acústicas, como nos modelos de sonnerie e repetição de minutos, as competências vão mais além: «Quase que temos de ser músicos, para conseguirmos a afinação ideal dos timbres.»

Detalhes fotografados na Manufatura Audemars Piguet a peças a serem trabalhadas por relojoeiros
| © Nuno Correia / Espiral do Tempo

O maior desafio é proporcionado por peças ultracomplicadas: «O trabalho que nos deu mais orgulho foi a recuperação de um modelo extremamente complexo que incluía grande e pequena sonnerie, calendário perpétuo e cronógrafo com rattrapante. Precisou de mais de 300 horas de trabalho e foi necessário fazer muitas peças à mão… mas foi extremamente gratificante.» Outro aspeto determinante no trabalho de recuperação é a parte decorativa do acabamento: «Num relógio de qualidade, é preciso dar muita atenção aos acabamentos e à decoração – porque um relógio Audemars Piguet é também uma obra de arte.»
O departamento de restauro e reparação da Audemars Piguet apresenta um elenco verdadeiramente internacional: «Eu sou galego, o meu adjunto é italiano, e temos connosco dois franceses, um canadiano, um suíço e um alemão». Francisco Pasandin mostrou-se particularmente humilde, tendo em conta as suas elevadas habilitações: «É muito frequente atribuir-se o título de mestre-relojoeiro no nosso meio. Eu considero-me apenas um aprendiz – continuo a aprender com o tempo, com o que os antigos relojoeiros fizeram. Tento ensinar aos rapazes que trabalham connosco tudo o que sei e ao mesmo tempo também vou aprendendo com eles: até que morra, serei sempre um relojoeiro aprendiz.»

Agentes oficiais

O atelier de restauro e reparação da Audemars Piguet está vocacionado para os relógios mais antigos e para os modelos mais complicados. Na maior parte dos casos, os problemas podem ser resolvidos pelos serviços de pós-venda na própria sede em Le Brassus ou pelos seus distribuidores oficiais em cada país. Mas os modelos mais complexos e com mais de meio século de vida têm mesmo de ir até à Suíça para o selo de garantia proporcionado pela casa-mãe e qualquer solução alternativa que pareça mais barata pode sair bem cara: «No que diz respeito às reparações, 80 por cento dos estragos são feitos por relojoeiros de manutenção fora do âmbito das marcas e a quem as pessoas recorrem porque pensam que é mais barato», confessa Francisco Pasandin.

Detalhes fotografados na Manufatura Audemars Piguet a peças a serem trabalhadas por relojoeiros
| © Nuno Correia / Espiral do Tempo

Há relógios que são mais simples e há instrumentos do tempo ultra-complicados, mas é necessário um conhecimento técnico profundo até mesmo para os check-ups mais simples. Desde a sua criação até ao momento em que uma peça é adquirida pelo consumidor, a assistência deverá ser sempre garantida através de equipas especializadas; o facto de todo o trabalho de pós-venda ser efetuado por relojoeiros devidamente certificados e especializados justifica o preço, sem esquecer que cada revisão simples implica a desmontagem e montagem de todas as peças do relógio. No caso do atelier de restauro e reparação da Audemars Piguet, o nível de especialização é superlativo e se houver toda a parte de reconstrução para ser feita, o preço pode parecer assaz elevado – mas Francisco Pasandin refuta essa ideia: «É mais caro levar o carro a arranjar na oficina!».

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