Fases da Lua: com os ponteiros na Lua

O luar guiou a humanidade através de séculos de mudança, desde as primeiras gravações rupestres até às primeiras pegadas na superfície lunar. A Lua sempre exerceu sobre o homem um peso emocional equivalente à sua influência sobre a natureza, sendo simultaneamente fonte de adoração e inspiração. Foi instrumento de navegação, fonte de iluminação noturna, cenário de episódios místicos e científicos.… e a indicação das fases da Lua fica sempre bem num relógio de prestígio.


Texto originalmente publicado no número 37 da Espiral do Tempo (outono 2011).


A Lua tem exercido um enorme fascínio sobre o homem desde sempre — e ornado relógios desde o Renascimento. Atualmente, todas as marcas relojoeiras de prestígio que não sejam de pendor declaradamente desportivo têm no seu catálogo vários modelos com uma abertura para as fases lunares no mostrador, seja associada a outras complexidades mecânicas (habitualmente calendários triplos ou perpétuos) ou apenas a solo (para ganhar protagonismo). E uma das tendências recentes na indústria relojoeira face aos tempos de recessão prende-se precisamente com a declinação de relógios de linhas puras e simples acompanhados de uma pequena complicação… na maior parte das vezes com a Lua em destaque.

F.P.Journe Automatique Lune | Foto: F.P.Journe

Será porque a crise afasta a ostentação e impele o retorno a tendências mais clássicas, como as que caraterizam a maior parte dos relógios dotados de fases da Lua? Ou será um desejo inconsciente de ‘estar na Lua’ perante a sucessão de acontecimentos desanimadores e notícias preocupantes? O certo é que, depois de tantos milénios e mesmo após já ter sido pisado num ‘passo pequeno para o Homem, mas grande para a Humanidade’, o único satélite natural da Terra (há já 4,5 biliões de anos) continua a exercer magnetismo sobre nós e, aparentemente, a afetar as nossas vidas quase tanto quanto o Sol.

À esquerda: Perpetual Calendar Moonphase Chronograph | À direita: Sky Moon Tourbillon Watch Ref.5002 | Fotos: Patek Philippe

É normal que assim seja. Desde que se conhece, o Homem tem convivido com dois astros alternadamente omnipresentes que o ajudaram na perceção do tempo. O Sol, numa frequência diária; a Lua, em períodos cíclicos e sob diferentes formatos. Cada um com uma personalidade muito própria, sendo o Sol mais óbvio e a Lua mais misteriosa…

Um astro no mostrador

Fases da Lua: Vacheron Constantin
Patrimony Traditionnelle Chronograph Perpetual Calendar | Foto: Vacheron Constantin

O Sol é o centro do seu próprio sistema e não tolera olhares insistentes; a Lua não passa de um satélite e pode ser mirada diretamente. Mas o facto de iluminar o reino das trevas sempre lhe deu um fascínio muito especial – sobretudo porque sempre houve a consciência da sua maior proximidade relativamente a todos os outros corpos da abóbada celeste. E se o Sol permitiu dividir o tempo em dias, a Lua ajudou a estabelecer as semanas e os meses…

Breguet Classique Phase de Lune | Foto: Breguet

Curiosamente, é o Sol que contribui para a visibilidade da Lua. Como não tem luz própria, o único satélite natural da Terra reflete a luminescência solar de modo diferente segundo a posição em que se encontra – variações conhecidas por fases da Lua. As cambiantes, a luminosidade e a possibilidade de ser claramente vista a olho nu transformaram a Lua num objeto privilegiado de contemplação; não admira que tenha servido de inspiração a todas as culturas… e como os relojoeiros tradicionais também são uma espécie de poetas, há muito que conseguiram materializar a atração lunar no mostrador de um relógio. Mesmo que o curso irregular do caprichoso astro noturno não lhes tenha facilitado a vida.

Montagem do mostrador num Langematik Perpetual | Foto: Vacheron Constantin

As indicações astronómicas têm marcado presença em todos os sistemas de medição de tempo desde tempos imemoriais. Os calendários da antiguidade eram empíricos e respeitavam uma certa lógica: cada lua nova determinava o início de um mês e cada quarto indicava o começo da semana – ao longo da sua trajetória, a Lua apresenta diversas fases (lua nova, quarto crescente, lua cheia, quarto minguante e retorno à lua nova) em função das posições relativas da própria Lua, do Sol e da Terra. As quatro fases da Lua equivalem a uma lunação, que dura 29 dias, 12 horas, 44 minutos e 2,8 segundos e nada tem a ver com o Sol. O único denominador comum entre o astro do dia e o da noite encontra-se no ciclo de Méton: 235 meses lunares correspondem a 19 anos do calendário Juliano. Um número que de nada serve aos relojoeiros…

A dentição da Lua

Jaeger-LeCoultre Duomètre Quantième Lunaire | Foto: Jaeger-LeCoultre

Como não é possível criar uma roda com 29,5 dentes para acompanhar a duração aproximada de uma lunação, os relojoeiros adotaram uma astuciosa solução: um disco com duas luas opostas, movimentado por uma roda com 59 dentes. No decurso de 59 dias (duas lunações), esse disco roda uma vez em volta do seu eixo, revelando o estado da Lua através de uma abertura semicircular no mostrador. Mas é possível fazer melhor: é que se a roda tiver 59 dentes, o dispositivo ganhará um avanço de 44 minutos e 2,8 segundos por lunação – antecipando o ciclo lunar em um dia por cada dois anos e sete meses. Esse é o desfasamento máximo tolerado num relógio de qualidade. Os sistemas de fases da Lua em relógios de pulso mais aperfeiçoados são dotados de uma roda com 135 ínfimos dentes, que se adianta apenas 57,2 segundos por lunação e necessita de ser corrigida somente a cada 122 anos (uma precisão de 0,002 por cento!).

Fases da Lua: Calibre Jager-LeCoultre
O Calibre 381 da Jaeger-LeCoultre de onde salta à vista o disco das fases da Lua | Foto: Jaeger-LeCoultre

A qualidade de um sistema de fases da Lua num relógio está diretamente associada à capacidade de a respetiva marca ser capaz de produzir uma minúscula rodagem com mais ou menos dentes. Só que não é assim tão fácil transformar dados astronómicos em engrenagens de dimensões quase microscópicas, e uma reputada casa relojoeira tem orgulho em desenvolver o seu próprio sistema, pelo que a precisão e o modo de correção (botão ou corretor) são muito variáveis. Normalmente, as marcas com maior tradição apresentam melhores soluções – aperfeiçoando a indicação das fases da Lua paralelamente ao desenvolvimento de calibres com calendários triplos, anuais ou perpétuos.

Fases da Lua: mecanismo A.Lange & Sohne
Montagem do calibre L922.1 SAX-0-MAT, que equipa o A.Lange & Söhne Langematik Perpetual | Foto: A. Lange & Söhne

É o caso de seculares manufaturas como a Audemars Piguet, a Jaeger-LeCoultre ou a A. Lange & Söhne, acompanhadas pelas criações de mestres como François-Paul Journe ou Franck Muller. Os mestres Martin Braun e Paul Gerber especializaram-se mesmo em complicações lunares. Por outro lado, jovens marcas como a De Bethune aperfeiçoaram um sistema tridimensional baseado numa Lua esférica ou optam por uma representação gráfica modernista. E a Linde Werdelin até lançou um relógio de mergulho com fases da Lua – afinal de contas, a Lua afeta as marés!

Mostrador do Linde Werdelin Oktopus Moon
Linde Werdelin Oktopus Moon Carbon | Foto: Paulo Pires / Espiral do Tempo

A A.Lange & Söhne faz questão de exaltar sistemas que mostram a Lua em avanço contínuo e não aos supetões, ou com paragem quando se acerta o relógio. O destaque que a histórica firma saxónica dá à Lua está bem patente em diversos modelos da sua coleção, sejam eles regulares ou em edição limitada, como foi o caso de um estojo com dois relógios Lange 1 Luna Mundi lançado há uma década – um reproduzia a Lua no firmamento como ele é visto a partir do hemisfério norte (com a Ursa Maior em destaque) e outro mostrava o astro no céu encarado a partir do hemisfério sul (sendo o Cruzeiro do Sul a constelação dominante). Mais recentemente começaram a surgir modelos dotados de fases duplas da Lua – fiéis tanto no hemisfério norte quanto no sul, como sucede no Chopard LUC Lunar One Big Date com revolução sinódica.

Chopard L.U.C Lunar Big Date num tabuleiro de xadrez
Chopard L.U.C Lunar Big Date | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Entre as várias soluções que acompanham a indicação das fases da Lua, deve-se igualmente salientar a presença de um ponteiro ou escala de 29 dias e meio para mostrar a ‘idade’ da Lua em vários modelos, como acontece no Duomètre à Quantième Lunaire ou no Master Moon da Jaeger-LeCoultre. A manufatura de Le Sentier revela ainda a sua vocação astronómica no Reverso Sun Moon, dotado de um indicador dia/noite para se poder efetuar a correção das fases lunares a qualquer hora. Esteticamente, o grande mérito reside na qualidade da tinta ou da laca utilizada no disco (os tons azulados para o céu ou dourados para os astros variam bastante) e no modo artístico como a Lua e as estrelas são desenhadas. O formato da abertura da janela e a sua colocação no mostrador também contribuem decisivamente para a elegância e a eficácia do modelo. Geralmente, a Lua é a única representação gráfica num mostrador analógico e deve ser tratada com o destaque que merece…

Do céu ao pulso

Jules Audemars Equação du Temps | Foto: Audemars Piguet

Muitos calendários religiosos são estabelecidos segundo a Lua. Mas o ritmo frenético em que vivemos atualmente faz-nos mergulhar na irreversibilidade do tempo e na inexorável sucessão de segundos, minutos, horas, dias, meses e anos. São essas as unidades de tempo pelas quais a sociedade ocidental se rege, não prestando a devida atenção à Lua e respetivas fases em constante alternância – mesmo que, ocasionalmente, possamos reparar nela quando brilha na escuridão do firmamento. A Lua tem um diâmetro 3,66 vezes menor e uma massa 81 vezes inferior à da Terra. A distância da sua órbita é variada: no perigeu (mais perto), está a 356.334 km; no apogeu (mais distante), está a 406.610 km. Mas exerce uma notável influência sobre a Terra e os terrestres.

O movimento das marés, as percentagens de nascimento ou falta de sono em noites de lua cheia são alguns desses fenómenos e mesmo simples atividades como cortar o cabelo, efetuar tratamentos médicos, atividades sociais, práticas amorosas, arrancar ervas daninhas e plantar ou transplantar estão sujeitas aos insondáveis poderes ocultos da Lua. Para além de haver todo um imaginário construído à volta do parceiro da Terra: o lunático, o lobisomem, a lua de mel, as serenatas ao luar, a conquista do espaço. Já no século XIII, existiam relógios mecânicos dotados de calendário com fases da Lua. Os relojoeiros desse tempo pretendiam impressionar os seus abastados clientes alardeando mestria na sua arte, enquanto os compradores revelavam publicamente sensibilidade artística e interesse pela astronomia. O período renascentista que se seguiu gerou um interesse ainda mais científico pelos astros e os relógios da altura faziam-se acompanhar frequentemente pelas fases lunares.

A. Lange & Söhne Luna Mundi | Foto: A. Lange & Söhne

Essa popularidade e o contínuo fascínio pelo pálido satélite fizeram com que os relojoeiros dos séculos posteriores adotassem o mecanismo de fases da Lua a relógios de bolso cada vez mais pequenos. No século XVIII, já existiam guardiões do tempo portáteis de grande qualidade, mas inacessíveis ao homem comum. Abraham-Louis Breguet inventou ou desenvolveu quase todas as complicações relojoeiras conhecidas atualmente, e muitos dos seus relógios estavam dotados de fases da Lua, satisfazendo abastados clientes com necessidades estéticas ou científicas. Os primeiros modelos de pulso com uma janela lunar surgiram nos anos 20, dando especial relevo aos mostradores. Iniciou-se então uma moda que teve o seu auge nos anos 40 e sobreviveu até aos nossos dias, revelando-se indissociável da relojoaria mecânica tradicional. A Lua colocada sobre um céu azulado, visível através de uma janela em forma de semicírculo, é inclusivamente um símbolo da relojoaria clássica – e a relojoaria clássica está de novo na moda.

Inspiração ancestral

Relógio de bolso Ref. 42500 da A. Lange & Söhne | Foto: A. Lange & Söhne

As fases da Lua são apenas uma das várias complicações de calendário disponíveis na relojoaria mecânica. A mais simples é a data, seguida do dia da semana e do mês (quando juntos, formam um calendário triplo). Geralmente, essas complicações simples necessitam de ser ajustadas manualmente para anular as diferenças de dias entre os vários meses. Num plano mais avançado, há também os calendários anuais (que têm de ser avançados uma vez por ano, de fevereiro para março) e os calendários perpétuos, que contabilizam anos bissextos e não necessitam de correção. Os relógios dotados de equação do tempo têm um calendário perpétuo com indicação adicional do tempo solar e o desfasamento em relação ao tempo civil. Geralmente, todos os calendários mais elaborados fazem-se acompanhar de fases da Lua.

Vacheron Constantin Malte Moon Phase Power Reserve | Foto: Vacheron Constantin

Já se sabe que os relógios mecânicos ‘adormecem’ se não lhes for dada corda (mecânicos manuais) ou se não forem utilizados no pulso (mecânicos automáticos). E, tal como sucede em relação aos modelos com calendário, um relógio mecânico dotado de fases da Lua que para durante algum tempo tem de ser posteriormente corrigido com o recurso a uma tabela das fases lunares. A revolução lunar empregada na relojoaria é apelidada de sinódica – corresponde ao intervalo médio de duas conjunções consecutivas da Lua e do Sol. Desde a passagem para o terceiro milénio, a sua duração exata é de 29 dias, 12 horas, 44 minutos e 2,806 segundos – valor que diminui 0,16.10 sextos em cada século Juliano, que corresponde a 36.525 dias. Nos relógios de pulso, as indicações das fases da Lua podem atingir um desfasamento que vai de 45 horas por lunação até 24 horas em 122 anos em caso de funcionamento contínuo; a correção pode ser efetuada manualmente e ‘a olho’ através do botão ou corretor presente na caixa do relógio.

De Bethune DB25 Perpetual Calendar | De Bethune

Basta alguma prática e um almanaque com as fases da Lua (em papel ou virtualmente na Internet) para que qualquer utilizador efetue a correção, mas os relojoeiros que corrigem as variações até à milésima parte do milímetro são cada vez mais raros. O grande especialista nessa tarefa foi o francês Antide Janvier, que, por volta de 1800, utilizava rodas inclinadas de centro variável para corresponder às diversas leis da física que regem os movimentos da Lua na sua órbita (e há mais de 1.500 elementos a afetar a trajetória). Antide Janvier foi uma grande referência para François-Paul Journe, pelo que a coleção do mestre marselhês tinha de ter um modelo que celebrasse as fases da Lua: o Octa Lune.Nos tempos modernos, o ciclo lunar deixou de influir diretamente no calendário civil. Mas a Lua continua fascinante, e é um parceiro de prestígio para a dança do tempo presente no mostrador de um relógio mecânico tradicional – e no nosso imaginário. 

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