Eis o que pode acontecer quando alguém que desconhece o mundo da relojoaria mecânica se vê, de súbito, nele envolvido – como resultado de um fascínio inesperado. Referimo-nos ao documentário Keeper of Time e ao seu realizador, Michael Culyba, com quem falámos sobre relógios, sobre o tempo e sobre a vida. E, claro, sobre os quase 90 minutos que nos prendem hipnoticamente ao ecrã, tal como os dois balanços sincronizados de um F.P.Journe Chronomètre à Résonance (por sinal, o relógio que, durante as filmagens, mais apaixonou o agora já colecionador de relógios).
Entrevista originalmente publicada no número 79 da Espiral do Tempo (verão 2022)
No nosso quotidiano, falamos muitas vezes de tempo. Mas a noção de tempo parece que só ganha verdadeiramente importância nas nossas vidas quando paramos para refletir sobre ele ou quando o percecionamos na sua relação com a nossa existência: o tempo que parece passar rápido ou devagar, o tempo que existe e o que não existe, ou a teimosia que é a tentativa de dominar o tempo através de dispositivos que, no fundo, não o dominam, mas antes o mostram. O tempo, como sabemos, faz-se ver não apenas nos relógios. Vê-se no Sol, que passa, nas flores, que abrem e fecham, nos rostos das pessoas, no canto dos pássaros de madrugada ou no bater da porta do vizinho. Mas, de tanto o vermos passar, banalizamo-lo, até chegarmos à conclusão de que nos falta tempo, tornando-se, nessa altura, o maior dos nossos bens. Felizmente, nem todos são assim ou pensam assim. Há quem consiga relembrar o valor contínuo do tempo. Como? Falando sobre ele, por exemplo, nas suas mais diversas possibilidades. É o caso de Michael Culyba que, depois de ter adquirido um Tudor Black Bay 36, se rendeu à relojoaria mecânica e começou a questionar-se sobre aquilo que, no fundo, os relógios medem: o tempo, portanto. O resultado foi a realização do documentário Keeper of Time, que estreou em 2022.
Ponto de partida
«Há uns anos, queria comprar o meu primeiro relógio e apercebi-me de que os mais interessantes eram de natureza mecânica, mesmo sem saber o que isso significava», contou-nos Michael Culyba, numa entrevista via Zoom, pouco depois da estreia do documentário. «Na altura, não sabia a diferença entre um relógio mecânico e um de quartzo. Mas, ao explorar o tempo mecânico e ao descobrir os relógios mecânicos, comecei a ficar fascinado por eles e por aquela toca de coelho que se chama horologia. Ao mesmo tempo, tendo em conta que trabalho em Nova Iorque há 20 anos em edição de filmes, sempre quis fazer o meu próprio filme, embora não tivesse encontrado ainda um tema que me tivesse apaixonado o suficiente para investir. Quando descobri os relógios mecânicos e os instrumentos do tempo, deu-se o clique. Outra das razões que me levou a fazer o filme foi ter ficado surpreendido por nunca ter sido feito um documentário ou um filme sobre relojoaria. Não queria acreditar».
Depois de quatro anos de realização, Keeper of Time estreou em Nova Iorque, abordando a relojoaria mecânica numa perspetiva que vai além da relojoaria mecânica. De facto, é de tempo que se fala: «Tudo começou com os relógios e depois comecei a explorar o que os relógios medem. Desde o início, pensei enveredar também por ideias e temas mais filosóficos: como percecionamos o tempo e o que é exatamente o tempo, como na física teórica. Podem ser mudanças no universo, por exemplo, e os relógios segmentam e medem isso de um modo objetivo. Já nós percecionamos o tempo de forma subjetiva, e estes temas interessam-me. Quando comecei a desdobrar as ideias existenciais e filosóficas sobre a imortalidade, de como vivemos e percecionamos o tempo, foi o ponto em que pensei que fazia sentido englobar tudo no documentário, abordando os relojoeiros, mas falando sobre todos estes temas em conjunto. Os relojoeiros são interessantes por direito próprio, fazendo interessantes e bonitos instrumentos do tempo, mas acho que falar apenas com os relojoeiros e horologistas não resultaria enquanto longa-metragem. Na verdade, as grandes ideias sobre a humanidade são sempre o que me interessa no cinema: a mortalidade, os temas existenciais. Este tipo de filmes são os que mais gosto e foi muito entusiasmante explorar tais ideias num filme essencialmente sobre relojoaria.»
Além da relojoaria
O documentário Keeper of Time explora a relojoaria mecânica enquanto contempla as noções teóricas e filosóficas de tempo, envelhecimento e mortalidade. Michael Culyba explica que o maior desafio sentiu-se na sala de edição, tendo em contas as três linhas que estão na base do filme: «Temos os relojoeiros, o seu perfil, depois temos a história da contagem do tempo, e, ainda, o lado mais profundo e filosófico do tempo. Unir os três temas de forma lógica para uma audiência e que fluísse de forma natural foi muito desafiante.» Juntamente com entrevistas de investigadores de referência nas áreas da física teórica, da fisiologia e da filosofia, contamos, assim, com testemunhos de Philippe Dufour, amplamente considerado o maior relojoeiro vivo do nosso tempo, de Roger W. Smith, relojoeiro independente que dedicou a sua vida a melhorar a cronometria mecânica, preservando a tradição da relojoaria britânica, de François-Paul Journe, inovador mestre relojoeiro que, inspirado pelos mestres franceses que o precederam, desafia as possibilidades da alta-relojoaria, e de Maximilian Büsser, que, sob a marca MB&F, projeta relógios com um caráter vanguardista muito próprio na relojoaria contemporânea.
Depois, somos ainda levados pelo incrível mundo dos autómatos antigos com Brittany Nicole Cox, especializada no restauro destas máquinas, e uma das poucas horólogas do mundo, e pelos meandros da história da medição do tempo com Michael Friedman, responsável de complicações da Audemars Piguet. Mas há mais, com diversos outros intervenientes. O fascínio pela relojoaria faz-se assim ver ao longo de cerca de 90 minutos. Até porque não se trata só de relojoaria mecânica, mas dos mais diversos dispositivos de medição do tempo construídos ao longo da história.
Para Michael Culyba, a observação da roda do balanço foi algo de mágico e romântico: «foi nessa altura que comecei a explorar mais a história da relojoaria mecânica e o lado artesanal, de fazer tudo desde o início. Os relojoeiros independentes fazem tudo à mão – não apenas um objeto que nos diz o tempo, mas o mais bonito e perfeito objeto possível. Tudo à mão: as decorações, as Côtes de Genève, o anglage, os polimentos. O seu trabalho aproxima-os muito de trabalhos artísticos. Tudo isto me deixou rendido. Depois, a horologia em si. Uma das minhas partes favoritas do filme é a visita ao atelier de Brittany Nicole Cox, no momento em que é apresentado o cisne prateado. Se pensarmos que esse cisne foi feito em 1773, ainda sem eletricidade, durante o dia ou à luz das velas, com máquinas com pedais ou tudo à mão, é surpreendente! Além disso, são objetos que resistem ao teste do tempo. Alguém pode restaurar o cisne e, passados 200 e tal anos, ainda funciona. Este lado fascinou-me imenso: num mundo de obsolescência, em que deitamos fora computadores, telemóveis poucos anos depois, tornando-se lixo, estes objetos são reparáveis e bonitos, mantêm o seu valor, e vale a pena serem guardados e serem passados a gerações futuras. Em última análise, se forem preservados, duram. Carregam consigo este significado mais profundo.»
Uma nova perspetiva
Michael Culyba não esconde o lado pessoal que guarda todo o projeto: afinal, tudo partiu de um fascínio que o próprio foi sentindo: «Podemos olhar para um relógio e ver nele as horas agora, mas o objeto em si pode lembrar-nos um tempo anterior. Aquele relógio pode representar um valor sentimental a qualquer altura. O meu Tudor Black Bay 36 terá sempre um valor sentimental para mim, porque foi o ponto de partida para eu fazer o filme. Este relógio informa-me desse momento na minha vida, e tenho em vista passá-lo para os meus filhos, depois de morrer. Para eles, será sempre uma lembrança de mim, com significado. Nesse sentido, como diz Ben Clymer, estes objetos tornam-se talismãs, representando muito mais do que o facto de serem um relógio de luxo.»
O documentário é ainda pontuado por breves passagens da infância de Michael Culyba, com especial enfoque em momentos com o pai. E é ao pai precisamente que o realizador dedica o documentário. Estes instantes e as palavras de Jay Griffiths, autora de A sideways look at time, traduzem o lado mais filosófico e reflexivo sobre o tempo e a sua paisagem: «realizar este filme foi uma experiência de aprendizagem e representa bem o que apreendi nesta jornada e espero que quem veja também o consiga apreender. À medida que envelhecemos, percecionamos o tempo a passar mais rapidamente, mas se vivermos uma vida interessante, se fizermos coisas interessantes, se criarmos coisas bonitas e interessantes, percecionamos o tempo a passar mais devagar. E vivemos vidas mais felizes», explica-nos o realizador.
«No fundo, não é a quantidade de vida necessariamente que está em causa, mas a qualidade de vida que temos enquanto cá estamos. Acho que é a tal ideia de carpe diem e de que cada momento conta. Acho que é muito fácil esquecer isso nas nossas vidas e eu preciso de um lembrete para isso. É importante passarmos o nosso tempo a fazer coisas com significado e, de preferência, fazendo coisas bonitas e partilhá-las com o mundo. As pessoas devem questionar-se: será que eu sou como estes relojoeiros? Será que estou a levar a vida que, em última análise, queria para mim mesmo? Se não estiver a fazer isso, é tempo de o começar a fazer. Gostava que as pessoas levassem esta ideia consigo quando vissem o documentário.»
Keeper of Time pode ser adquirido através do site oficial: keeperoftimemovie.com.