Edição impressa | O tempo parou durante muito tempo em Dresden. Mas, à semelhança do que sucedeu com a manufatura relojoeira A. Lange & Söhne, a sofrida cidade tem renascido como uma Fénix das cinzas da Segunda Guerra Mundial e do atrofiamento de quatro décadas de comunismo. A capital da Saxónia que outrora foi a capital do Barroco está intimamente associada ao mais importante foco relojoeiro fora da Suíça.
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Crónica originalmente publicada no número 42 da Espiral do Tempo.
Já passaram mais de vinte anos sobre a queda do Muro de Berlim, mas ainda sou daqueles cuja juventude foi beliscada pelos temores nucleares da Guerra Fria e que ficavam apreensivos ao ouvir Sting cantar «I hope the Russians love their children too». Sim, o mundo era mais pequeno naqueles tempos por causa do desconhecimento – e estava dividido entre ‘nós’, os do lado de cá, e ‘eles’, os estranhos do lado de lá. Felizmente, a Cortina de Ferro foi derretida pela Glasnost e o Muro de Berlim derrubado pela Perestroika – e comprovou-se que ‘os outros’também amam as suas crianças.
Pessoalmente, fiquei também a saber que Dresden exala algo de muito português: o fado. Tenho ido à capital da Saxónia várias vezes ao longo dos últimos doze anos e sempre que lá vou não posso deixar de recordar esses tempos idos e de sentir o peso inexorável de décadas de atrofiamento psicológico e económico na Alemanha de Leste. É certo que, a cada visita, a cidade parece ter recuperado mais um pouco do seu esplendor imperial de antes de ser aniquilada pelas bombas dos Aliados e asfixiada por quatro décadas de comunismo. Mas é uma cidade monumental com um fado triste, que se nota bem no angst das gentes mais velhas e ainda se vislumbra nos mais jovens, porque foram educados precisamente por esses outros. E é também uma cidade fascinante que, à imagem das suas várias pontes sobre o rio Elba, está entre esse passado sofrido e um futuro auspicioso.
O paralelismo entre Dresden e a A. Lange & Söhne é incontornável, se bem que a manufatura relojoeira tenha recuperado a sua aura mais depressa do que a cidade. Ainda se nota que o tempo parou durante muito tempo em toda a região; no entanto, após a reunificação alemã e com a injeção de biliões de euros ‘ocidentais’, Dresden tem vindo paulatinamente a recuperar todo o seu esplendor de antiga capital não só estatal mas também da arte e cultura germânicas – tal como a Lange & Söhne, sedeada na vizinha localidade de Glashütte, recuperou toda a sua grandiosidade para se tornar na única entidade de alta relojoaria capaz de rivalizar com as melhores das melhores manufaturas suíças.
Excelência na renascença
Ainda me recordo da primeira vez em que tive um contacto físico com os relógios Lange & Söhne da nova geração: foi na feira de Basileia, em 1997. Jorge de Freitas, o cavalheiro e artista que nos deixou há três anos após prolongada doença, era então o representante em Portugal da IWC através da sua firma J. Borges de Freitas (atualmente dirigida pela filha Ana de Freitas) e levou-me até ao primeiro andar do stand da IWC para me mostrar «algo de especial». É verdade: a Lange & Söhne não tinha sequer um espaço próprio nesses primeiros anos após a apresentação dos primeiros modelos da nova geração em 24 de outubro de 1994. Eu que era – e continuo a ser – um jornalista especializado em ténis, estava na altura a especializar-me também em alta relojoaria e essa foi a minha segunda visita ao maior certame mundial do setor. Fiquei tão convencido com o que vi e tão tocado pela saga da marca que não hesitei em promover a Lange & Söhne para a capa do suplemento especial que fiz então para o Correio da Manhã, numa edição apadrinhada pelo grande aficionado da relojoaria que é Carlos Barbosa e que na altura era o diretor do jornal.
Felizmente, pude posteriormente conhecer in loco as raízes da Lange & Söhne e sentir na pele o peso da sua história. E gosto sempre muito de regressar a Dresden, sobretudo porque a cada nova visita os progressos são notórios e se recupera a monumentalidade de uma orgulhosa metrópole onde a cada esquina se constata a dicotomia entre os tempos gloriosos da Saxónia dominada por Augusto, O Forte (que na verdade era O Gordo, mas suficientemente viril para ter 346 filhos!) e o purgatório de quatro décadas de comunismo, com as feridas da Segunda Guerra Mundial sempre bem abertas.
A fisionomia da cidade e em especial do seu centro mudou muito, mantendo-se com grandes áreas abertas onde anteriormente existia uma grande densidade habitacional destruída pelas bombas; os cidadãos continuam a debater se devem ou não manter os sinais do jugo comunista através de edifícios com a característica arquitetura do período, mas entretanto vão recuperando todos os principais marcos históricos – desde o Zwinger (o palácio real) até à emblemática Frauenkirche (catedral), passando pela Ópera Semper (salão nobre de espectáculos) e sempre com a sua arquitetura assente em pedras que escurecem com o ar da zona. E não deixa de ser irónico que a marca de luxo eleita repetidamente como a melhor da Alemanha nos últimos anos venha de uma zona que estava tão depauperada – e essa marca é precisamente a A. Lange & Söhne.
Fundada em 1845 por Ferdinand Adolph Lange na localidade de Glashütte, a cerca de 30 quilómetros de Dresden, a Lange & Söhne desde logo ganhou a reputação de criar sublimes relógios de bolso e cronómetros de marinha infalíveis, mas ao longo do século XX acabou transformada numa empresa de instrumentos de precisão durante as duas Guerras Mundiais e, após ter sido bombardeada precisamente no último dia do segundo conflito, foi incluída numa grande cooperativa que fabricou relógios baratos durante a vigência comunista. A reunificação permitiu a Walter Lange, neto do fundador, regressar às origens para recuperar o património familiar e transformá-lo numa das mais prestigiadas manufaturas da atualidade com relógios como o incontornável Lange 1 mas também os cronógrafos Datograph e Double Split ou os excecionais modelos ‘Pour Le Mérite’ que se incluem no panteão da relojoaria superlativa. Os novos modelos desvelados no recente Salon International de la Haute Horlogerie confirmam ainda mais estar ao nível das melhores criações suíças!
Sempre que concluo essa notável viagem no tempo que é sempre a visita a Dresden e a Glashütte, sou brindado com um grande anúncio luminoso à entrada do aeroporto que me faz despedir da capital da Saxónia com nostalgia – e, desta última vez, também com água na boca: o relógio escolhido foi o Zeitwerk Striking Time (com um gongo que assinala o passar da hora), o meu preferido da A. Lange & Söhne. A frase ao lado diz tudo. ‘Ícones de Dresden: a Frauenkirche de Bahr, a Opera de Semper e os relógios da A. Lange & Söhne’. Mal posso esperar para ver qual será o próximo modelo.
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