Edição impressa | Aparentemente improvável, a ligação entre a capital do Barroco e uma ilha no Atlântico pode confirmar que a relojoaria é mesmo descendente da astronomia. Três dos mais recentes modelos apresentados pela manufatura A. Lange & Söhne têm essa conotação celestial e um quarto coloca em evidência a duração do mês. Abordámos a temática numa viagem estelar desde o Salão de Matemática e Física do Palácio Zwinger, em Dresden, até ao Observatório do Roque de los Muchachos, em La Palma.
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Artigo originalmente publicado no número 60 da Espiral do Tempo (outono 2017).
Se a astronomia é a disciplina que estuda os princípios de funcionamento dos corpos celestes, a relojoaria mantém-se como a arte de medir o tempo. E algumas das suas principais obras-primas têm tido o cosmos como inspiração divina — desde os relógios de grande porte até aos de mesa, com incidência especial nos modelos de pulso, desde há um século para cá. A manufatura germânica A. Lange & Söhne encontra-se entre as mais relevantes marcas da atualidade e a sua propensão natural para as complicações astronómicas tem raízes na corte imperial da Saxónia. A tendência mantém-se, já que entre os seus principais modelos da colheita de 2017 se encontram relógios de inspiração celestial.
Dresden não foi apenas a Capital do Barroco entre o século XVII e XVIII; desde o século XVI, Augusto — então Eleitor da Saxónia — promoveu a pesquisa astronómica e fundou a Câmara da Arte de Dresden, que depois deu lugar ao Gabinete Real de Instrumentos Físicos e Matemáticos no Palácio Zwinger. Esse gabinete tornou-se num dos mais destacados museus europeus dedicados a instrumentos científicos e de medição do tempo; após longos anos de reabilitação, o agora denominado Salão da Matemática e da Física reabriu para revelar ao mundo não só mapas astrais ou telescópios da época, mas também um conjunto de modelos históricos que testemunham o desenvolvimento da atividade relojoeira de precisão na Saxónia. Com o tema «De Dresden a Glashütte», a exibição permanente inclui valiosos exemplares relojoeiros de outrora, e ainda algumas obras-primas mais recentes da manufatura A. Lange & Söhne, fundada precisamente na vizinha localidade de Glashütte, em 1845.
Entre os sete novos modelos desvelados pela A. Lange & Söhne no Salão Internacional da Alta-Relojoaria, em janeiro, três apresentam uma conotação astronómica evidente. O Tourbograph Perpetual Pour le Mérite, com um calendário perpétuo entre as suas cinco complicações, é a estrela da companhia e até pode acabar 2017 com vários galardões de relógio do Ano; o 1815 Annual Calendar é um exercício de classicismo que coloca em evidência o calendário anual; o Lange 1 Moon Phase é a atualização do mais emblemático modelo da marca acompanhado de lunação.
O lado lunar
Curiosamente, a mais antiga reprodução da cúpula celeste para efeitos de contabilização do tempo que é conhecida foi encontrada na Alemanha, em 1999 — remonta a 1600 a.C. e recebeu o nome de Nebra, devido à região onde foi descoberta; mostra o céu e 32 corpos celestes (incluindo o Sol, a Lua crescente e a constelação Plêiades) num disco de bronze com 32 centímetros que passa por ser o pai de todas as fases lunares na relojoaria.
A abóboda celestial tem fascinado a raça humana desde os seus primórdios: os primeiros ciclos de tempo estabelecidos além do dia/noite assentavam nas fases da Lua, nas marés e nas mudanças de estação; a necessidade de dominar o espaço e o tempo conduziu aos primeiros calendários da antiguidade, baseados no movimento aparentemente cíclico dos corpos celestes. A maior proximidade da Lua sempre intrigou o Homem e cedo se tornou objeto de análise. Além de que fica sempre bem num relógio de prestígio, tendo-se tornando, por isso, num símbolo da relojoaria clássica.
Desde a ‘ressurreição’ da A. Lange & Söhne, em 1994, e na sequência da queda do Muro de Berlim, que permitiu a Walter Lange regressar a Glashütte e reerguer a empresa fundada pelos seus antepassados, a manufatura saxónica tem dado especial atenção à representação da abóbada celestial em muitos dos seus relógios — embora só cinco anos após o histórico relançamento da marca tivesse surgido o primeiro modelo com fases da Lua: o 1815 Moon Phase, numa edição limitada batizada Emil Lange. Em 2001, surgiu o Lange 1 Moon Phase e, a partir daí, sucederam-se os modelos de índole astronómica — com destaque para o Richard Lange Perpetual Calendar ‘Terraluna’ de 2014, diretamente inspirado no Cronómetro N.º 93 concebido por Johann Heinrich Seyffert (que trabalhou como inspetor no Salão das Matemáticas e das Físicas no início do século XIX) em 1807, utilizando um mostrador em esmalte do tipo Regulador. A equipa de desenvolvimento e produto liderada por Anthony de Haas e Tino Bobe foi bem mais longe do que revelar o habitual ciclo lunar: mostrou, no verso do relógio, a disposição orbital das fases da Lua com reprodução das mudanças.
Entretanto, a A. Lange & Söhne associou-se à Universidade de Dresden para desenvolver uma espécie de camada de verniz sobre um disco de ouro (branco ou rosa) que melhor represente o céu, e agora todos os seus relógios apresentam essa solução nos respetivos discos lunares. Essa camada não é pintada, mas transparente — quebrando a luz de modo a parecer que é azul. Um laser de precisão queima o verniz em forma de estrela para que elas se destaquem; as cores são diferentes consoante o modo como a superfície debaixo do verniz é tratada, sendo polida para a obtenção de tons mais claros e escovada para os mais escuros. Os efeitos alcançados funcionam como um filtro que bloqueia todo o espetro de cores não azuladas da luz do dia incidente.
Céu limpo e estrelas na Terra
A pequena ilha vulcânica de La Palma, nas Canárias, congrega a maior densidade de observatórios do hemisfério norte devido a uma orografia extremamente íngreme — com o cume localizado acima das nuvens, a 2426 metros. Com uma ressalva importante relativamente a outros locais mais altos: atmosfera não contaminada. Desde 1888, tem um departamento técnico dedicado a evitar contaminação lumínica, radioelétrica e atmosférica. Daí reunir investimentos das mais diversas nacionalidades que, em conjunto, formam um centro de estudos espaciais de renome. Quando cai a noite no Observatório do Roque de los Muchachos, a limpidez da atmosfera promove uma leitura perfeita da abóbada celeste. E foi lá que tomámos um contacto mais direto com as novidades da manufatura germânica, em especial as que são dotadas de acrescento astronómico e que destacamos aqui.
1 – O grande protagonista é o quinto relógio da A. Lange & Söhne com a chancela ‘Pour le Mérite’. O portentoso Tourbograph Perpetual Pour le Mérite em platina combina cinco complicações e presta tributo à relojoaria clássica enquanto paradigma de perfeição mecânica. Só os melhores dos melhores relojoeiros são capazes de juntar os vários subsistemas individuais com a precisão requerida, de modo a que os 684 componentes do calibre L133.1 possam interagir sem falhas. Duas das suas cinco complicações servem o único propósito de melhorar a precisão do seu funcionamento: o mecanismo de fuso com corrente assegura a suave transferência de tensão desde a mola principal do tambor de corda até ao balanço que, isolado da influência da gravidade, oscila dentro da gaiola rotativa do turbilhão. O cronógrafo rattrapante de recuperação é controlado através de duas rodas de colunas. O módulo para o calendário perpétuo analógico surge construído à volta do turbilhão; exibe corretamente as diferentes durações dos meses no ciclo de 100 anos do calendário gregoriano e só precisa de ser corrigido em um dia no ano 2100 — precisão é assegurada pela roda de 48 meses do módulo de calendários. A lua é a cereja no topo do calendário: a transmissão em sete etapas para a disposição das fases da Lua é calculada com uma tal precisão que somente requer a correção de um dia após 122,6 anos de funcionamento ininterrupto. O tom azul profundo do disco lunar em ouro branco é resultante do tal processo de revestimento patenteado.
2 – O elegante 1815 Annual Calendar é o segundo relógio da A. Lange & Söhne dotado da função de calendário que lhe dá o nome. Mas, em contraste com o Saxonia Annual Calendar de corda automática com data sobredimensionada estreado em 2010, inclui um movimento de corda manual e uma indicação analógica para a data que seguem os princípios clássicos de design da linha 1815. Calculada para permanecer precisa ao longo de 122,6 anos, a indicação das fases da lua está integrada no submostrador dos pequenos segundos às seis horas; as indicações do calendário são facilmente legíveis graças aos ponteiros em ouro nos dois submostradores alinhados de maneira precisa no eixo horizontal central: no da esquerda, mostram o dia; no da direita, o mês. A nuance: de março a janeiro, todas as durações mensais são corretamente indicadas…. excetuando o facto de o mecanismo tratar fevereiro como um mês de 30 dias, pelo que a 1 de março é necessário efetuar uma correção manual. Um botão às 2 horas torna possível o avanço coletivo de todas as indicações para um acerto rápido, se por acaso o relógio tiver estado parado durante um assinalável período de tempo. Adicionalmente, três diferentes botões embutidos permitem a correção separada do dia, do mês e das fases da Lua. E, estreia absoluta num modelo de calendário da Lange, a data também pode ser avançada separadamente através de um botão próprio embutido na caixa. O módulo de calendário tem uma espessura de somente 1,4 mm; apesar de compacto, o novo movimento L051.3 de corda manual tem uma reserva de corda máxima de 72 horas.
3 – Na sequência das atualizações recentemente efetuadas ao ex-líbris Lange 1, também a correspondente versão lunar tinha de receber um novo calibre —além de ser devidamente aperfeiçoada com uma nova e ainda mais realística abordagem à temática, associando a lunação a um indicador dia/noite. A indicação das fases da Lua reproduz o ciclo lunar (duração média de 29 dias, 12 horas, 44 minutos e três segundos) tão fielmente que são necessários 122,6 anos para que a indicação se desvie do período sinódico real em um dia. A elaboração do disco lunar baseia-se num novo conceito que é particularmente realista: uma lua em ouro maciço segue separadamente a sua própria órbita sobre o disco celestial — também em ouro maciço — que por trás dela completa uma revolução exata a cada 24 horas. Nesse disco, as diferentes alturas do dia são representadas por distintas tonalidades de azul que ganham vida consoante a incidência de luz sobre ele. Durante o dia, o disco mostra um céu azul brilhante sem quaisquer estrelas, e ao longo da noite exibe um céu mais escuro no qual surgem estrelas contrastantes finamente recortadas através de raio laser. Assim, a lua orbita sempre sobre um fundo realístico que funciona igualmente como referência dia/noite quando se ajusta o relógio. O 20.º calibre da Lange equipado com fases da Lua baseia-se no movimento do Lange 1 introduzido há dois anos e apresenta os mesmos atributos de rendimento; as 70 peças suplementares que compõem a indicação das fases da Lua foram integradas de maneira tão inteligente no calibre de manufatura L121.3 que o torna apenas ligeiramente mais espesso do que o calibre L121.1 que equipa o Lange 1.
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