Edição impressa | Antonio Calce passou por Portugal na sequência do novo acordo de distribuição estabelecido entre a Torres Joalheiros e a Girard-Perregaux — a histórica manufatura suíça a cujos destinos preside e que integra a divisão de relógios e joias do grupo Kering. De origem italiana e com formação em microtecnologia e estudos empresariais, apresenta uma experiência superior a duas décadas no mais alto nível na indústria relojoeira — tendo passado pela Piaget, pela Panerai e pela Corum, até assumir a liderança da Girard-Perregaux, no início de 2015. Fomos falar com ele sobre o rumo que pretende para a marca; com a sua jovialidade e eloquência caraterísticas, não se fez rogado em abordar vários aspetos significantes da indústria relojoeira, em geral, e da Girard-Perregaux, em específico.
Entrevista originalmente publicada no número 60 da Espiral do Tempo (outono 2017)
Em que momento se encontra atualmente a Girard-Perregaux e qual acha que é o seu papel na história da marca?
Não devemos estar permanentemente a olhar para o passado, porque o futuro é que é importante. Mas, na relojoaria, se não estamos em linha com o passado, perdemo-nos enquanto marca. A Girard-Perregaux tinha-se afastado da sua história nos produtos, na comunicação e até mesmo na distribuição — a distribuição tem de ser exclusiva. Hoje em dia, a Girard-Perregaux está em harmonia com a sua história. Também a estratégia de produto é clara, a começar pelo regresso do Laureato: recuperámos um modelo histórico e, ao mesmo tempo, lançámos, pela primeira vez, uma grande coleção exclusivamente em aço. E passamos a estar num patamar de produto onde podemos chegar a um público mais jovem. Temos uma assinatura muito forte na alta-relojoaria, sobretudo com o turbilhão Três Pontes de Ouro. Já o Neo.Bridges situa-se num nível mais acessível no que respeita ao preço. Estamos a trabalhar em profundidade, com estratégias de produto e comunicação muito claras. E, em Portugal, estabelecemos um acordo muito importante com as lojas Torres Joalheiros.
Essa grande aposta na reedição do Laureato marca a coleção da Girard-Perregaux em 2017; como explica a tendência neo-vintage tão vincada na relojoaria dos últimos anos?
Tem tudo a ver com o momento; se tivéssemos relançado o Laureato no início dos anos 2000, seria maior e mais espesso, segundo os padrões da altura. Talvez não funcionasse tão bem. Depois da crise de 2008, as marcas tornaram-se mais calmas e esta foi a altura certa para o apresentar numa linha completa — temos a felicidade de ter movimentos de vários tamanhos e de espessura fina. É curioso constatar que, depois de tantos anos, a relojoaria não inventou nada de verdadeiramente novo no plano do design e o Laureato mantém o espírito que tinha aquando do seu lançamento, em 1975: um relógio sport chic com uma identidade muito forte.
Hoje em dia, fala-se que a indústria relojoeira está em crise e que a nova geração representa um tipo de consumidor distinto, até porque existe a alternativa do chamado relógio conectado; como vê o futuro próximo da relojoaria?
Compreendo o termo «crise», mas parece-me não ser o mais ajustado; olhando mais de perto para o consumo dos bens de luxo, constatamos que, a cada ano que passa, as pessoas gastam mais dinheiro — em carros de coleção, na aviação privada, em vinhos de luxo… É certo que houve uma bolha artificial na relojoaria e sentiu-se que as marcas não respeitaram suficientemente a sua própria história, refletindo-se negativamente no facto de as pessoas gastarem menos em relógios; também acho que houve muita gente a contar excessivamente com os resultados das vendas na China, até mesmo projetando 70%das suas vendas lá, mas, entretanto, houve leis que travaram essa perspetiva. Por outro lado, a relojoaria tornou-se menos sexy e houve ainda uma subida de preços que atingiu a loucura. Como vemos na indústria automóvel, os carros tiveram de se adaptar às novas normas ecológicas e o mesmo tem de acontecer na relojoaria: é preciso refletir e chegar a preços justos com boas parcerias de distribuição. As marcas têm de encontrar produtos com um preço mais correto e, simultaneamente, não criar excessos de stock, tendo muita atenção aos seus canais de distribuição.
O grupo Kering é um enorme conglomerado do luxo, com dezenas de marcas de prestígio no campo da moda e, ainda, a Ulysse Nardin na relojoaria. Como funcionam as sinergias de grupo?
É um grupo fabuloso que nos permite construir as marcas a longo prazo, criar valores seguros, fortalecer a identidade própria — e para uma marca como a Girard-Perregaux é muito importante poder dispor de um acionista com essa visão. Existem sobretudo sinergias no plano da distribuição e no do fabrico preservando a identidade de cada marca, mas também sinergias inteligentes na distribuição. Por exemplo, a Kering tem correeiros que produzem artigos em pele para várias marcas suas e recorremos a eles para as nossas correias. Também no plano do ouro ético seguimos a mesma linha; é mais caro, mas é o que está certo. O grupo mostra respeito pelas pessoas, pela ecologia, trabalha em profundidade na estratégia e na comunicação. E o proprietário adora os relógios. No plano relojoeiro, existe um savoir-faire muito diferente — na Girard-Perregaux, antes recorríamos ao exterior no plano das complicações e dos acabamentos, enquanto agora capitalizamos a nossa capacidade industrial; antes, cada uma das marcas relojoeiras fazia dez e, agora, juntos, fazemos 100: entre a Girard-Perregaux e a Ulysse Nardin, aproveitamos ao máximo as equipas das duas marcas através de reuniões mensais e mantendo os calibres diferenciados — mas, por exemplo, às vezes usamos máquinas de produção de uma e outra marca. Temos uma excelente colaboração e muito savoir-faire; a troca é agradável.
O que é que a Girard-Perregaux fabrica em casa?
Decidi que devíamos concentrar-nos nos artigos topo de gama — no fabrico das caixas em ouro, nas caixas de repetições de minutos. Antes, fazíamos tudo. Continuamos a fazer algumas caixas em aço, mas temos excelentes parceiros que nos podem ajudar nesse aspeto. Só que no que diz respeito à alta-relojoaria, um modelo dotado de planetário, um repetição de minutos, um Esmeralda para senhora… esses modelos têm de ser feito em nossa casa. E a Girard-Perregaux sabe fazer tudo, ou quase tudo, graças ao papel de um homem visionário — herdei uma marca notável: estive muitos anos no grupo Richemont e posso dizer que conheço bem a relojoaria; quando cheguei à Girard-Perregaux, decidi visitar um departamento diferente por semana e fiquei impressionado com tudo, desde a qualidade dos relojoeiros, a qualidade dos acabamentos… Temos um savoir-faire excecional e um nível de integração muito elevado. Todos os diferentes métiers têm a assinatura da marca. E também podemos perfeitamente fazer uma combinação entre a produção interna e externa para o que quer que seja necessário. No plano dos movimentos de base para os modelos regulares, temos cinco calibres. Dou uma enorme importância ao departamento de pesquisa e desenvolvimento. A Girard-Perregaux foi uma das primeiras marcas a integrar um tal departamento interno, o que permitiu grandes inovações que marcaram a indústria — a alta frequência, o Gyromatic, até mesmo o quartzo na década de 70. Quando cheguei, contratei três engenheiros suplementares num ano e, este ano, contratei mais dois construtores de movimentos.
Nesse âmbito, quais são os desafios mais próximos?
O departamento de pesquisa e desenvolvimento é essencial para nós. Pretendemos continuar a evoluir no campo do escape de força constante e conseguir várias declinações. Procuramos sempre melhorar no plano da inovação e precisão, que fazem parte da nossa história, e seguimos a via do Gyromatic para apostar na melhoria do produto — sempre no sentido da precisão, da fiabilidade, da criação de relógios dotados de um sistema de escape com pouca manutenção e que tenham, pelo menos, três dias de reserva de corda. É fundamental. Num modelo regular de manufatura, as qualidades fundamentais são a precisão e a fiabilidade. Já num modelo de alta-relojoaria, as caraterísticas obrigatórias são a inovação e a criatividade: têm de ser obras-primas — escape de força constante, turbilhão triaxial, planetários ou a concretização de ideias que permitem seguir um rumo diferente. E não nos podemos esquecer do modelo Neo.Bridges; não estamos na alta-relojoaria propriamente dita, mas é um modelo caraterizado pela inovação e pela criatividade.
Qual a estratégia da Girard-Perregaux relativamente aos certificados de precisão e à garantia?
Para já, estamos a considerar cinco ou mesmo sete anos de garantia. Hoje em dia, temos dois e vamos passar rapidamente a cinco. E na alta-relojoaria pensamos mesmo numa garantia para a vida. Quando se fala de relógios de 300 mil euros, tem de se pensar obrigatoriamente nisso. Às vezes, vendemos relógios de um milhão. O serviço de pós-venda é muito importante e, quando o cliente investe dessa maneira, temos de pensar num serviço muito personalizado. Por exemplo, um colecionador nosso cliente é comprador de Ferraris e a Ferrari proporciona-lhe um serviço muito avançado de concierge, que vai até à organização dos aspetos mais pormenorizados das suas viagens. Não vamos fazer a mesma coisa, mas temos de ir nessa direção para poder fazer a diferença ao mais alto nível. A extensão de garantia é obrigatória com a qualidade que temos e, em caso de algum problema, devemos mesmo ir buscar o relógio a casa dos colecionadores. Os agentes oficiais têm de ser apoiados; estamos a pensar em cerca de 80 a 100 em todo o mundo na alta-relojoaria e construir com eles um serviço para esses clientes especiais. Quanto aos certificados, as marcas buscam continuamente etiquetas de certificação e há várias desde o certificado de Fleurier ao COSC (Contrôle Officiel Suisse des Chronomètres) – mas penso que o principal certificado deve ser dado pela própria marca. Sermos sérios e ter qualidade. Temos de estabelecer objetivos muito baixos no retorno de relógios antes do final da garantia. Hoje em dia, a Girard-Perregaux tem padrões muitíssimo elevados no que diz respeito à qualidade e ao acabamento, e isso tem de ser reconhecido. A própria marca representa o certificado pela sua fiabilidade e pelo serviço de pós-venda.
Relativamente à comunicação e ao sponsoring, qual é a sua visão para a marca?
O melhor embaixador da Girard-Perregaux é o próprio produto. As pessoas compram a Girard-Perregaux por causa dos relógios. Mas também temos de encontrar um meio de modernizar a relojoaria e não assentar sobre os pilares do passado, temos de saber sair de uma lógica formatada que faz da relojoaria algo de velho. Na Girard-Perregaux, o produto será sempre a vedeta, mas temos de ser mais modernos. A moda, por exemplo, faz isso bem e, no nosso grupo, a Gucci tem uma projeção incrível. Não devemos renegar o passado, mas é preciso refrescar a relojoaria, mantendo-nos fieis à sua e à nossa história. Com o Neo.Bridges, mostrámos ser possível fazer algo de novo e diferente e, no entanto, é um relógio claramente Girard-Perregaux: foi possível fazer algo de inovador e sexy respeitando a nossa herança. E devemos fazer o mesmo na comunicação. Temos de refletir para sermos mais modernos, mais sexy, mais jovens na abordagem da comunicação dos pontos de venda. Mas o produto será sempre o embaixador. Não temos sponsoring nem patrocinados, temos apenas uma relação forte com clientes — é preferível fazer jantares de colecionadores e ocasiões especiais para clientes, dedicar-nos à apresentação de produto. Mais vale investirmos em pesquisa e desenvolvimento, nos nossos canais de distribuição e na comunicação digital.
Sendo de origem italiana, como carateriza a influência transalpina na relojoaria e, em especial, na Girard-Perregaux?
É colossal. Costuma dizer-se que se um produto funcionar em Itália será um sucesso em qualquer lado, mesmo o produto mais ousado. Quando houve conversações para a contratação de um novo CEO, diziam que teria de ser um italiano a tomar conta da Girard-Perregaux, tendo em conta o historial da marca. Por exemplo, no âmbito do relançamento do Laureato, falámos com a relojoaria Pisa, de Milão, e eles deram-nos informações preciosas sobre a génese do Laureato nos anos 70 — do arquiteto italiano que começou por desenhar um octógono e que aproveitou a tendência do desenho italiano num modelo que até surgiu antes do Nautilus, do antecessor do Overseas e do Ingenieur. Não foi um designer relojoeiro que idealizou o Laureato, foi um arquiteto. A ideia veio de um italiano, e Itália sempre teve grande sensibilidade para o produto. O filho do anterior dono da marca, Stefano Macaluso, trabalha connosco e está em contacto direto comigo; a família Macaluso já não é proprietária da marca, mas ele continua connosco. Tenho a sorte de ser engenheiro de formação e de ter equipas fantásticas, obriguei-os a ‘matarem-se’ no relançamento do Laureato e estive em cima de todos os pormenores, até na escolha das alternâncias de superfície polida e escovada!
E o que achou de Portugal?
Foi a minha primeira vez em Portugal e estamos prontos para levar a marca a um novo patamar no vosso país. De resto, gostei muito e, claro, comi bacalhau: foi espetacular… mandei logo uma mensagem à minha mulher e pedi-lhe para procurar bacalhau, ela respondeu-me que não o sabia cozinhar e eu disse-lhe que depois se veria…
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