TAG Heuer e 10 anos de recordes

No passado fim de semana, o Monaco usado por Steve McQueen no filme Le Mans foi comprado por 2,2 milhões de dólares e tornou-se no mais caro relógio da história da TAG Heuer. Essa verba estratosférica está (in)diretamente relacionada com o leilão da Coleção Haslinger ocorrido há exatamente 10 anos. Aqui fica a devida viagem no tempo.

Já se esperava que o lendário Monaco usado por Steve McQueen no filme Le Mans e oferecido ao seu mecânico Haig Alltounian atingisse uma verba recorde no leilão ‘Racing Pulse’ organizado pela Phillips no passado sábado — e acabou mesmo por ultrapassar as expectativas, atingindo uma soma astronómica que faz desse cronógrafo quadrilátero o mais caro relógio na história da TAG Heuer. A marca não poderia ter desejado melhor presente na conclusão de um ano em que celebrou o seu 160º aniversário, uma vez que as verbas alcançadas em subastas têm vindo a influenciar de forma muito positiva a perceção que os aficionados têm de uma determinada companhia relojoeira.

Aurel Bacs no leilão do Heuer Monaco de Steve McQueen e imagem de Steve McQueen a usar o cronógrafo no filme.
Aurel Bacs voltou a ter em mãos um recorde em leilão: o Heuer Monaco usado por Steve McQueen © DR

Curiosamente, o Monaco leiloado tornou-se famoso devido a Steve McQueen mas pertenceu ao seu mecânico Haig Alltounian desde a conclusão das filmagens. Foi-lhe oferecido pelo astro norte-americano com uma inscrição pessoal que valorizou enormemente a peça — um de seis Monacos que Gerd-Rüdiger Lang, braço-direito de Jack Heuer, levou da Suíça para Le Mans numa viagem cheia de peripécias e por nós já relatada em detalhe. Os 2,2 milhões de dólares alcançados contribuíram significativamente para um total de 27,6 milhões de dólares entre os 138 lotes que integraram a sessão, incluindo 5,475 milhões por um Rolex ‘Big Red’ Daytona pertencente a Paul Newman. Mas já se conhece a febre pelos Daytonas, especialmente os denominados ‘Paul Newman’ que passaram pelas mãos do próprio Paul Newman; o recorde do mundo para um relógio de pulso é do Daytona oferecido a Paul Newman pela sua mulher com uma inscrição (17.752.500,00 USD). Já a soma atingida pelo Monaco eleva a fasquia a um novo patamar para a TAG Heuer, num percurso que teve há precisamente 10 anos uma data marcante.

O Heuer Monaco usado por Steve McQueen no filme Le Mans, com fundo cinzento. E imagem do fundo gravado do mesmo cronógrafo.
O Monaco usado por Steve McQueen no filme Le Mans foi leiloado por 2,2 milhões de dólares e tornou-se no mais caro relógio da história da TAG Heuer © Phillips

A Coleção Haslinger

No dia 15 de dezembro de 2010 foi organizado em Londres o primeiro leilão exclusivamente dedicado a relógios da marca fundada por Edouard Heuer em 1860 — todos eles pertencentes ao colecionador austríaco Arno Haslinger, à exceção de uma peça única com a assinatura de Jack Heuer no mostrador e pensada exclusivamente para a ocasião: a reedição de um Silverstone de cor vermelho-sangue (das três cores do Silverstone original, o castanho e o azul tiveram reedições limitadas de 1860 exemplares). A Espiral do Tempo foi o único órgão de comunicação social presente num evento que reuniu centenas de pessoas e que preconizou a febre leiloeira que temos vindo a assistir ao longo da última década.

E o porquê da decisão de ir propositadamente a Londres cobrir um leilão que, na altura, os colegas da imprensa especializada optaram por não acompanhar in loco? Para qualquer aficionado de cronógrafos, a Colecção Haslinger assumiu — no relativamente curto espaço de tempo em que foi reunida — um estatuto quase lendário no âmbito do imaginário Heuer/TAG Heuer. Em cerca de uma década, Arno Haslinger não só reuniu o maior e melhor acervo de relógios Heuer desde finais dos anos 50 até ao período da década de 80 que precedeu a transição da marca para TAG Heuer, como também editou um livro que se tornou na bíblia dos adeptos do espírito Heuer, tão associado aos anos de ouro do desporto motorizado.

Quatro dos modelos em destaque no Leilão Haslinger: três Heuer e a reedição única do Silverstone vermelho com a assinatura de Jack Heuer © DR

Esse período dourado da Formula 1 foi muito marcado por Jack Heuer — pioneiro do marketing relojoeiro no âmbito do automobilismo e considerado o pai do cronógrafo desportivo graças a todos os fabulosos Autavia, Carrera, Monaco, Montreal, Monza, Camaro, Daytona e Silverstone lançados entre 1962 e 1980. Algumas referências desses míticos modelos inspiraram reedições/reinterpretações da TAG Heuer ao longo dos últimos 25 anos e contribuíram muito para a evidente tendência neo-rétro verificada sobretudo na última década. Tal como o leilão da Coleção Haslinger foi determinante para a febre vintage que se tem vivido.

O leilão desenrolou-se nas instalações da Bonhams em New Bond Street. Na véspera, Arno Haslinger concedeu-nos uma longa entrevista em que abordou as pérolas da sua coleção e as razões que o levaram a leiloar 81 peças. O colecionador austríaco é um homem de bom gosto e um perfeito gentleman; a primeira questão foi a mais óbvia: porque diabo iria ele vender uma tão bela coleção que tanto lhe custou a juntar? «Estou a restaurar uma casa do século XIV. E é caro. Para mais, fecha-se um ciclo; quando se acumula uma coleção durante 10 anos e se faz um livro sobre o tema, queremos passar para algo de diferente. E o tempo parece parar quando olhamos para os mesmos 81 relógios. Então o meu amigo Paul Maudsley, da Bonhams, perguntou-me se não deveríamos vender os relógios».

Ao centro a imagem do livro Heuer Chronographs.
Arno Haslinger com Mathilde Tournois, então responsável pelo museu TAG Heuer, e com os seus pais; ao centro, a imagem do livro Heuer Chronographs © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

E foi essa a primeira razão: o motivo financeiro. Mas depois lá confessou ter ficado com trunfos na manga: «Ainda fico com alguns relógios Heuer, mas não houve escolha relativamente ao leilão — os 81 relógios da coleção à venda são precisamente os 81 relógios utilizados na produção do meu livro Heuer Chronographs e são os melhores 81 exemplares que tinha por altura de 2007-2008; sempre paguei mais para ter os relógios em melhores condições e esse foi um dos meus segredos. Depois, utilizamos as mesmas fotografias do livro na produção do catálogo do leilão». E acrescentou: «Depois da publicação do livro, em março de 2008, comprei mais relógios Heuer que obviamente não estão representados no livro nem integram o lote do leilão. Porque é importante que os relógios que eu venda estejam associados ao meu livro e às publicações derivadas, por uma questão de consistência. Não irei escrever um segundo livro, este capítulo fica encerrado», disse então.

Quadratura do círculo

Ou seja, fechou-se um círculo perfeito iniciado precisamente com um quadrado: a coleção teve a sua génese num Monaco ‘Steve McQueen’ original que o pai de Arno, um professor universitário que esteve presente no leilão londrino e entretanto desaparecido, lhe ofereceu como presente de 30º aniversário. A quadratura do círculo! E será que o Monaco é o modelo preferido de Arno Haslinger? «É difícil dizer qual, todos os dias é um diferente! Depende onde vou e o que faço. Mas há formatos que aprecio particularmente: o do Autavia com caixa cushion, gosto do Silverstone original em vermelho». E foi com um Silverstone de 1974 vermelho num ‘punho Agnelli’ que assistiu ao leilão, que perfez 475.754 libras.

Heuer Silverstone de 1974 vermelho num ‘punho Agnelli’ © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Nunca tinha havido um leilão exclusivamente com relógios Heuer. Mas desde cedo foi possível ver que seria concorrido: a correspondente sala da Bonhams em New Bond Street ficou apinhada com interessados, curiosos e aficionados oriundos de 18 diferentes países (!!!), além de todos os que seguiam o evento com licitações através da Internet e do telefone. Arno Haslinger teve ao lado duas representantes da TAG Heuer – Mathilde Tournois, responsável do museu, e Natália Bojanic, uma brasileira que trabalha para a TAG Heuer do Reino Unido — e convidou a equipa da Espiral do Tempo para se sentar ao lado. O leilão começou com as miniaturas de capacetes/relógios despertadores dos anos 80, todos eles vendidos acima das expectativas e com o de Clay Regazzoni (que era o meu ídolo da altura) a chegar às 600 libras. Depois houve mais alguns uns itens (catálogos antigos, logótipos, etc) e começaram então a sair os relógios propriamente ditos…

O próprio Arno Haslinger não escondeu o seu nervosismo ao longo da sessão, olhando fixamente para o catálogo como que a absorver com os olhos uma última recordação dos seus queridos relógios. E foi comentando as vendas: «Este foi uma pechincha», «Aquele foi bem arrematado». Houve alguns modelos muito cobiçados que suscitaram um espectacular ping-pong entre os interessados, houve várias salvas de palmas – e houve vários modelos em particular que se destacaram.

Em pleno leilão: as anotações de Arno Haslinger no seu catálogo © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

O leilão teve por principais vedetas um Monaco de 1974 com revestimento preto em PVD (48.000 libras, recordista absoluto na altura), O recordista absoluto foi um Monaco ‘Dark Lord’ de 1974 com revestimento preto em PVD que originou 40.000 libras (ou seja, 48.000 libras com a comissão final), estilhaçando a estimativa inicial situada entre as 10.000 e as 15.000 libras. Outro modelo que brilhou foi um Autavia de 1969 com a rara inscrição ‘Chronomatic’, tendo chegado às £30,000 (estimativa inicial entre £10.000 e 15.000). Um Carrera em ouro de 1972 (o modelo que Jack Heuer oferecia aos pilotos da Ferrari com contrato com a Heuer e que diz ser o seu relógio preferido na história da marca fundada pelo seu bisavô) fez £22,800 e um Monaco de 1970 (a mesma referência do relógio usado por Steve McQueen no filme ‘Le Mans’) arrematou £18,000. O único modelo contemporâneo integrado na coleção foi doado pela TAG Heuer com fins de beneficência para a cruz verde internacional – o tal exemplar único Silverstone vermelho, com a assinatura de Jack Heuer, chegou às 12.000 libras (estimativa entre as 5.000 e as 7.000).

Como não podia deixar de ser, a TAG Heuer tentou comprar alguns exemplares para o seu Museu – e conseguiu arrematar sete, embora nem todos fossem primeira escolha. «Vim para tentar adquirir alguns modelos que gostaríamos de ter no Museu e ficámos contentes porque, numa lista inicial de dez, conseguimos quase metade e depois comprámos mais três numa decisão de última hora», confessou Mathilde Tournois, a então diretora do museu da marca em La Chaux-de-Fonds (atualmente é Catherine Eberlé). «Tentámos comprar os modelos mais caros, mas ficaram caros demais. Conseguimos um Carrera Indianápolis Motor Speedway de 1966, um Carrera MG de 1966, um Carrera Abercrombie & Fitch de 1971, um Carrera plaqué ouro de 1978, um Carrera Chronomatic de 1969, um Camaro plaqué ouro de 1970 e um Monaco Steve McQueen de 1970». E finalizou: «Este tipo de leilão valoriza muito a marca».

O rescaldo

No rescaldo ao evento (tratado mais detalhadamente numa peça à parte), Paul Maudsley e Arno Haslinger estavam cansados mas felizes com os recordes batidos e o total alcançado. O leiloeiro da Bonhams até brincou, dizendo que «talvez venha a haver uma segunda Colecção Haslinger»… enquanto o colecionador sorria para libertar toda a tensão sentida durante o leilão. Será que teve a tentação de comprar os seus próprios relógios? «Não me deixaram. A Bonhams tomou o cuidado de não me dar qualquer informação e eu não tinha qualquer ideia sobre os pedidos já efetuados ou quem estava a licitar. Haverá sempre alguns remorsos por deixar ir embora algumas das peças, mas o leilão excedeu as minhas expectativas – sobretudo os valores atingidos pelo Monaco ‘Preto’ e pelo Autavia ‘Chronomatic’. Os valores negociados passaram a estabelecer a referência para futuras vendas; como referido, o total roçou as 480.000 libras — 10 anos volvidos, muito provavelmente atingiria o dobro se o leilão fosse realizado hoje…

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