Louis Cottier: todo o tempo do mundo

Com o início da cada vez maior mobilidade em finais do século XIX, época de uma globalização económica sem precedentes e de viagens coloniais, os relojoeiros foram desafiados a inventar novos mecanismos que refletissem o facto de o globo terrestre estar dividido em 24 zonas horárias. É neste mundo em mudança que nasce Louis Cottier, símbolo perfeito deste novo tempo.

Louis Cottier
Louis Cottier

Em 1907, Joseph Conrad escreveu uma das suas mais fascinantes novelas: O Agente Secreto. O homem das sombras aqui retratado chama-se Adolf Verloc que, para se redimir perante os seus chefes, é encarregado de destruir o Observatório de Greenwich com uma bomba. Greenwich, que foi o padrão universal do tempo até 1986 (quando surgiu o Coordinated Universal Time ou UTC), era o símbolo da ‘ciência’, algo que então era venerado como o símbolo do progresso e do futuro pelos dirigentes e pelo povo britânico. Dinamitar Greenwich era destruir a ordem temporal, simbolizada pelo seu meridiano. A hora de Greenwich (o GMT ou Greenwich Mean Time) servia de referência para calcular distâncias em longitudes e estabelecer os fusos horários. Definida em 1884, simbolizou também o poder da grande potência mundial de então, a Grã-Bretanha, já que foi definida em detrimento de outras propostas que chegaram de França, da Espanha e de Portugal. Este era um tempo de mutação mundial, onde, depois da revolução dos transportes feita pelos comboios (que implicaram a coordenação de horários de referência para os passageiros através de relógios), se assistia a uma globalização comercial feita por via marítima. Estávamos, ainda, nas vésperas das revoluções na área das comunicações, com os telefones e com a aviação, mas sentia-se que o mundo estava mais pequeno. Os mapas, instrumentos para se saber onde se estava, já não chegavam, e os relógios eram cada vez mais necessários para se saber qual era a hora. O que pode ser mais importante do que se saber a posição no tempo e no espaço?

Um mapa Mercator original de 1569. © creation.com
Um mapa Mercator original de 1569. © creation.com

Com o início da cada vez maior mobilidade em finais do século XIX, época de uma globalização económica sem precedentes e de viagens coloniais para descobrir os segredos escondidos de África e da Ásia, os relojoeiros foram desafiados a inventar novos mecanismos que refletissem o facto de o globo terrestre estar dividido em 24 zonas horárias, cada uma representando 15 degraus de longitude a partir do meridiano de Greenwich. É neste mundo em mudança rápida que nasce, a 28 de setembro de 1894, em Carouge (Genebra), Louis Cottier. Era herdeiro dos talentos do seu pai, Emmanuel, um reconhecido criador de relógios e inventor, em 1885, de um sistema de tempo global que apresentara à Sociedade das Artes. Ia ficando para trás o mundo dos mapas simbolizado pela revolução propiciada por Gerhard Kremer, sob o nome Mercator, que, como mestre cartógrafo, apresentou, em 1569, o mapa que ligaria a latitude à longitude e resolveria o problema da navegação nos mares. A aliança da relojoaria com os fusos horários dava início a uma nova era.

Louis Cottier foi o símbolo perfeito deste novo tempo que atingiu a dimensão mundial quando, após o fim da II Guerra Mundial, foi contratado pela Agassiz para fazer um número limitado de relógios com horas universais personalizados para Winston Churchill, Harry Truman, Josef Estaline e Charles de Gaulle. Para se perceber a relevância destes relógios feitos a pedido, a 22 de setembro de 2015, foi vendido, por cerca de 750 mil dólares, o worldtimer, desenhado por Louis Cottier para Winston Churchill, num leilão da Sotheby’s, e que é uma peça especial. Foi uma prenda para o estadista britânico pela vitória na II Guerra Mundial, financiada por um grupo de cidadãos suíços para comemorar o dia da vitória: 8 maio de 1945. O relógio, desenhado por Louis Cottier, conta com uma gravura esmaltada que mostra São Jorge a matar um dragão e um ponteiro em forma de tridente, além de um ‘V’ na parte traseira que simboliza a vitória dos exércitos aliados. A peça tem ainda uma dedicatória personalizada, na qual se lê: «1939 – Primeiro-ministro Winston Spencer Churchill – 1945». Cottier, que elaborou o relógio em colaboração com a fábrica Agassiz and Company, tinha inventado o mecanismo da hora universal utilizado no relógio de Churchill e que foi incorporado mais tarde por marcas como a Patek Philippe, a Rolex e a Vacheron Constantin. Quando Churchill recebeu o relógio, em 1946, escreveu uma nota ao grupo de cidadãos a agradecer o «soberbo presente».

Relógio de bolso worldtimer que pertenceu a Winston Churchill (à esquerda). No verso o «V» remete para a vitória dos exércitos aliados em 1945. © Sotheby’s
Relógio de bolso worldtimer que pertenceu a Winston Churchill (à esquerda). No verso o «V» remete para a vitória dos exércitos aliados em 1945. © Sotheby’s

Cottier era considerado extrovertido, um «pintor de domingo», como se chamava a si próprio, um construtor de autómatas e de pássaros cantores. Amava o teatro das sombras e a música mecânica. A influência do seu professor de relojoaria, Henry Hess, uma figura importante da relojoaria genebrina, marcou-o decisivamente. Louis estudou relojoaria na escola de Genebra e, muito novo, recebeu vários prémios, incluindo dois da Patek Philippe. Depois de terminar os estudos, trabalhou para o ramo de Genebra da Jaeger-LeCoultre, antes de abrir o seu próprio negócio, que começou nas traseiras da loja da mulher, na rua Vautier, em Carouge, onde, durante 13 anos, fez relógios de mesa, de bolso, de pulso e protótipos. Em 1931, introduziu o prático e elegante sistema das horas universais, com um tempo central de horas e minutos, ligado a um anel rotativo de 24 horas. A revolução chegava. O seu primeiro relógio de hora universal foi para a loja Beszanger, em 1931. Antes da proliferação da aviação comercial, os relógios de hora universal capturaram a imaginação com o seu mostrador, que revelava o tempo real em cidades de todo o Planeta, nas suas 24 zonas. Era um desígnio pedido desde 1885, quando Sandford Fleming sonhou com a forma de saber o tempo em todo o mundo, mas não é uma tarefa fácil ter todo o tempo do mundo num relógio. Mas foi isso que Louis Cottier ofereceu na sua invenção ao joalheiro Baszanger, na forma de um relógio de bolso. As grandes marcas rapidamente revelaram interesse nesta novidade. Era um tempo em que as comunicações internacionais, pelo ar e por telefone, estavam a desenvolver-se rapidamente, e em que os relojoeiros suíços estavam convencidos de que a distribuição das diferentes zonas temporais se tornaria permanente. Pela segurança, como outrora os relógios e os horários certos dos comboios tinham motivado. Tinham razão. Nos anos seguintes, depois deste primeiro relógio, Cottier produziu diferentes variações da hora universal, criando um movimento retangular (1937); depois, um pequeno relógio de senhora (1938), a que juntou um cronógrafo (1940) e uma segunda coroa, simplificando o seu uso (1950). Desenvolveu um mecanismo crucial: o anel de 24 horas colocado no centro do mostrador que roda ao contrário do movimento do relógio. Os primeiros relógios de hora universal de Cottier tinham as cidades fixadas, muitas vezes como parte do bisel. Mais tarde, passou a incluir um anel de cidades movíveis.

Patek Philippe Ref. 7120G-014 e Ref. 5131/1P © Patek Philippe
Patek Philippe Ref. 7120G-014 e Ref. 5131/1P, modelos atuais da Patek Philippe que usam o sistema desenvolvido por Louis Cottier. © Patek Philippe

Os seus relógios capturavam a imaginação de um mundo cada vez mais global, no final da II Guerra Mundial. Sonhou sempre com novas soluções. Em 1950, haveria de inventar o tempo universal com duas coroas, vista como uma das mais práticas invenções do século XX na área da relojoaria que, com uma maior segurança e precisão na escolha da cidade de referência, oferecia uma maior proteção contra choques. A Patek encomendou-lhe o desenvolvimento e o fabrico de muitas complicações, resultando na invenção do célebre dual time de pulso, de 1954, com um único movimento. Terminado em 1957, o protótipo foi patenteado pela marca em 1959 (no. 340191). Cottier foi ainda um dos organizadores da mostra anual Montres & Bijoux, em que em cada ano se apresentavam novas criações. O seu trabalho foi legado ao Musée d’Horlogerie et d’Emaillerie de Genebra, onde ainda hoje pode ser visto.

O trabalho revolucionário de Cottier não pode ser isolado das mudanças geopolíticas globais, muitas vezes potenciadas por conflitos mundiais, como foi o caso das guerras de 1914-18 e de 1939-45. As potências vencedoras impunham o seu tempo às anexadas. Por exemplo, a hora oficial alemã foi imposta nos territórios ocupados por Berlim, tendo muitos deles mantido esse fuso sob a designação de tempo da Europa central, após o fim do conflito mundial. Já Londres reteve sempre o lugar como principal meridiano do mundo. O Japão, no Pacífico, também fez com que muitos países tivessem de utilizar a hora de Tóquio. O tempo também é poder.

Beguelin World Timer de 1885, um exemplo de indicação das horas mundiais antes do sistema de Louis Cottier. © salonqp.com
Beguelin World Timer de 1885, um exemplo de indicação das horas mundiais antes do sistema de Louis Cottier. © salonqp.com
Vacheron Constantin Ref. 3372 . Caixa em ouro branco e ouro rosa. O mecanismo do relógio foi feito por Louis Cottier, 1933. © Sotheby’s Rolex Ref. 4262 . Relógio de bolso Rolex em ouro rosa 18kt, com indicação de horas mundiais. Esta peça utiliza a patente World Time de Louis Cottier, 1947. © Christie’s
Vacheron Constantin Ref. 3372 . Caixa em ouro branco e ouro rosa. O mecanismo do relógio foi feito por Louis Cottier, 1933. © Sotheby’s
Rolex Ref. 4262 . Relógio de bolso Rolex em ouro rosa 18kt, com indicação de horas mundiais. Esta peça utiliza a patente World Time de Louis Cottier, 1947. © Christie’s

Ao longo dos anos, também houve variações nas cidades contempladas no anel com diferentes GMT. A Ref. 1415 da Patek, introduzida em 1939, tinha o nome de três cidades cruciais que representavam o Tempo Médio de Greenwich (Londres, Paris e Argel), enquanto o GMT mais uma hora era representado por Oslo, Genebra e Roma. Antes da II Guerra Mundial, Londres e Paris partilhavam a mesma zona horária, o que era lógico, porque o tempo solar de Paris para leste é apenas mais nove minutos do que o meridiano de Greenwich. Por outro lado, fazer parte destas escolhas gravadas nos relógios dava outro poder e distinção às cidades escolhidas. Passavam a ser objeto de cobiça emocional. E, assim, a aparição e o desaparecimento de cidades representativas de um fuso horário poderia depender do seu prestígio ou importância nesse momento. Mas também poderia ser uma obra do acaso e da necessidade. O caso mais célebre é do surgimento da Geórgia do Sul nos relógios de hora universal. Durante muito tempo, o arquipélago dos Açores representou o fuso GMT-2, até que as ilhas foram transferidas para a zona GMT-1 para reduzir a diferença relativamente a Portugal continental. Apareceu uma vaga e, para lá de Fernando de Noronha, as únicas opções restantes eram as ilhas da Geórgia do Sul e as ilhas Sandwich do Sul, um território britânico administrado através das Malvinas, também reivindicadas pela Argentina, o que era um problema político. As pessoas interessadas pelo horário da Geórgia do Sul não eram muitas, mas que outra solução haveria?

Esboços e esquemas técnicos da autoria de Louis Cottier relativos ao sistema worldtimer por ele inventado. © Antiquorum
Esboços e esquemas técnicos da autoria de Louis Cottier relativos ao sistema worldtimer por ele inventado. © Antiquorum

O certo é que o fascínio pela hora universal continua a exercer-se. O princípio básico mantém-se inalterado com os nomes das cidades a rodear a periferia da esfera sobre um disco interior de 24 horas que gira em sentido contrário. Este foi o golpe da genialidade de Cottier – o movimento do disco coordena simultaneamente as horas em todos os fusos, enquanto as agulhas indicam a hora local da cidade cujo nome aparece as 12 horas. A sua ligação profunda à Patek marcou esta marca. Desde um dos primeiros relógios de hora universal, o Ref. 96 HU (de 1937), e passando pelos modelos de bolso Ref. 1064 HU (de 1938) ou Ref. 605 HU (de 1945), onde se vê Neptuno, ou o Ref. 1415 HU em platina, de 1948, com 41 cidades, países e regiões, até ao Ref. 2523 HU (de 1954) e aos da era moderna (apenas com a influência de Cottier), como o Ref. 5110 de 37 mm, de 2000, ou o Ref. 5230, de 2016. Tudo pequenas obras-primas da hora universal.

1954 - Um dos primeiros relógios de pulso worldtimer da Patek Philippe, com um disco rotativo que mostra as horas e a indicação dia/noite, com os nomes das cidades no mostrador. © Christie’s 1940 - Relógio cronógrafo worldtimer, mostrador com escala pulsométrica, disco da hora rotativo e nomes das cidades na luneta. © watchprosite.com 1948 - Relógio em platina com 41 cidades, países e regiões. Esta referência detém o recorde do 3o relógio de pulso mais caro do mundo por ter sido vendido em 2002 por 6.6 milhões CHF. ©europastar.com
1954 – Um dos primeiros relógios de pulso worldtimer da Patek Philippe, com um disco rotativo que mostra as horas e a indicação dia/noite, com os nomes das cidades no mostrador. © Christie’s
1940 – Relógio cronógrafo worldtimer, mostrador com escala pulsométrica, disco da hora rotativo e nomes das cidades na luneta. © watchprosite.com
1948 – Relógio em platina com 41 cidades, países e regiões. Esta referência detém o recorde do 3º relógio de pulso mais caro do mundo por ter sido vendido em 2002 por 6.6 milhões CHF. ©europastar.com
1954 - Um dos primeiros relógios da Patek Philippe a incluir uma segunda coroa às 9 horas. Esta segunda coroa era usada para ajustar o disco com as cidades. Mostrador cloisonné em esmalte. © Patek Philippe 1959 - O primeiro relógio dual time com a patente no 340191 desenvolvida por Louis Cottier © Christie’s
1954 – Um dos primeiros relógios da Patek Philippe a incluir uma segunda coroa às 9 horas. Esta segunda coroa era usada para ajustar o disco com as cidades. Mostrador cloisonné em esmalte. © Patek Philippe
1959 – O primeiro relógio dual time com a patente no 340191 desenvolvida por Louis Cottier © Christie’s

Cottier criou uma herança única. Os relógios que criou, em nome da companhia Patek, entre os anos 1930 e 1960, converteram-se em apreciados objetos de coleção. Afinal, a hora universal é um produto do século XX, uma função criada para responder à nossa capacidade de viajar longas distâncias a grande velocidade. A globalização financeira e económica na era das viagens rápidas e contínuas reforçou apenas essa necessidade de controlar o espaço temporal, com exemplares dotados das zonas horárias mundiais. O que se pretende é a leitura instantânea das horas em diversos pontos do Planeta. Outras marcas continuam a apostar nestes fascinantes relógios. Um dos mais famosos relógios dotados de hora universal é o Jaeger-LeCoultre Master Geographic Universal. Já a Audemars Piguet apresentou como trunfo o seu Dual Time da década de 90. A Rolex celebrizou-se com o Oyster GMT-Master, que se tornaria célebre pela escala bicolor de 24 horas na luneta (azul-escuro, para indicar a noite; vermelho, para o dia). Concebido em parceria com a Pan Am no início da era do jato, tornou-se também um ícone. Tudo frutos da bela caixa de Pandora que Louis Cottier delicadamente abriu.

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