Pedro Costa Ferreira, nosso leitor e vencedor do passatempo de fotografia «O seu relógio sabe voar?», aceitou o desafio de contar na primeira pessoa uma experiência relojoeira e escolheu partilhar uma bela história que abrange um Rolex Submariner específico… e três amigos seus.
Quando, em 1996, a Patek Phillipe lançou a campanha Generations — cujo mote era «Nunca somos verdadeiramente donos de um Patek Phillipe, apenas o conservamos para a geração seguinte» —, capturou na perfeição a essência de quem, mesmo não podendo ter um exemplar desta mítica marca, vive fascinado pelo mundo da relojoaria, do seu colecionismo e cuja função ultrapassa em muito a medição do tempo, despertando um misto de emoções que apenas entende quem, como nós, sofre deste ‘vício’.
Talvez por esta ser a primeira de várias histórias que conto escrever, mais do que um conto isolado gostaria de partilhar o que me move neste mundo com tantas marcas e variadas opções. Vim pelos relógios, mas fiquei pelas pessoas e pelas histórias que se criam, pelas amizades que se criaram.
Muitos têm uma ligação especial com um relógio apenas, opção fundamentada e mais difícil de manter até que outros, que por diversas razões optam por não se limitar apenas a uma peça na sua coleção e diariamente fazem o exercício de escolher qual a peça que irão utilizar em função do humor do dia, da indumentária ou da ocasião.
A nossa paixão é construída de diversas formas e as coleções constroem-se na forma de diversos credos. Há os fascinados por clássicos, por marcas, por funções, por cores; na realidade, tudo serve de desculpa, que damos a nós mesmos, para continuar a alimentar este vício e justificar, perante nós próprios e terceiros, a necessidade de adicionar mais um elemento a um conjunto de outros elementos que aos olhos de outros não são nada mais que «mais um relógio», enquanto que, para nós, assinalar a hora do dia é muitas vezes o único elo comum que a nova adição tem em comum com as anteriores.
E porque recorrentemente leio histórias de pessoas e dos seus relógios, pensei em provocar o leitor, invertendo o sentido de pertença e trazendo-vos ‘a história de um relógio e das suas pessoas’.
Afonso
Quando, em 2014, um grande amigo meu — chamemos-lhe Afonso — me pediu ajuda para o ajudar a comprar o seu primeiro bom relógio (tendo o pedido sido feito pela ideia erradamente sustentada de que eu entendia algo sobre este imenso mundo), nunca pensei vir a ser testemunha de algo tão interessante que apenas constatei quando me sentei para escrever este texto.
Note-se que, na altura, ainda a loucura do mercado de segunda mão não tinha inundado o mundo da relojoaria, tendo a parte difícil sido a escolha e as suas variáveis — marca, cor, funções, se mais formal, ou mais desportivo. O Afonso tinha apenas um requisito: algo que pudesse ser utilizado diariamente! Após semanas de trocas de fotografias e visitas a lojas, no final ficaram dois candidatos, o Omega Speedmaster Profissional com a Ref. 3510.50.00 e o Rolex Submariner Ref. 116610.
Ditou a suposta fragilidade do vidro em Hesalite do primeiro e o movimento automaático e função de data do segundo, que a escolha recaísse sobre o Submariner. O Afonso queria apenas um relógio fiável e ambos achámos que reunia todos os requisitos, adicionando ainda o misticismo de James Bond no filme Live and Let Die e a fiabilidade da marca, sendo a ‘Coroa da Jóia’ um sinónimo crescente de um bom investimento, não depreciando com o tempo e podendo em caso de necessidade ser transacionado como se de papel-moeda de tratasse.
Recordo-me do processo de encomenda e da satisfação que nos trouxe; a ele, pelo ato em si, e a mim, pela satisfação de ver a alegria de um amigo a adquirir algo único e marcante (uma satisfação que o amigo pessoal RMDB deve ter sempre que me ajuda a obter algo inatingível nos dias de hoje), mas acima disso, lembro-me do dia que o fomos buscar. Explicar o processo de pagamento, dado os valores, versus limites bancários, a quem não anda nestas lides. O retirar dos plásticos de proteção. O acertar a bracelete à medida do pulso, até à questão de se, para sair da loja, desejávamos um saco com publicidade ou anónimo para não atrair os olhares mais atrevidos.
O que é certo é que, no dia 11 de junho de 2014, uma quarta-feira, o Afonso era um jovem adulto feliz, radiante e orgulhoso do que comprara, não por ostentação, mas porque aquele relógio simbolizava diversas conquistas, um ponto na sua vida e era, segundo ele, a única joia que um homem poderia usar. Ao longo dos anos — em jantares, praia, férias, nas diversas ocasiões que o estimado leitor pode imaginar em que dois amigos se encontram — sempre, mas sempre, o Afonso usava orgulhosamente o seu único relógio, que muitas vezes representava ponto de partida para uma conversa, e que outras era apenas um objeto de dar horas com quem tinha criado uma ligação íntima. Algo que o acompanhava dia após dia, criando a sua história.
Volvidos cinco anos de uma história e de um dia a dia cheio de vida, num fim de tarde o Afonso liga-me num misto de contentamento e temor, felicidade e preocupação: ia ser pai… e agora? Disse-lhe: «Épa, que notícia fantástica!». Tanta coisa para planear, tanta felicidade, mas também tantos receios, medos. Queria precaver-se do desconhecido, queria ter dinheiro para o caso de acontecer algo menos bom, menos programável, e para isso queria fazer algo programado: desfazer-se de um objeto que tanto lhe era querido e tanta companhia lhe havia feito, mas encontrar-lhe um herdeiro que dignificasse a sua história, o seu propósito e o seu significado. «Pedro, não quero vender o sub, não quero ganhar dinheiro com ele, quero apenas que quem ficar com ele, tenha o mesmo cuidado que eu teria».
Manel
Nem de propósito, e por uma fantástica coincidência, um outro amigo mais recente, o Manel, gente de caráter e princípios, pessoa certamente criada por avós, com uma educação e um estar em desuso — alguém diria, fora de época! — demonstrara dias antes interesse em comprar não um qualquer relógio, não uma qualquer referência, mas precisamente aquela que uns anos antes o Afonso e eu tínhamos elegido, a 116610. Para ele, o ultimate, tool watch (perdoem o estrangeirismo). Deixando-se levar pela emoção de um jovem entusiasta de relojoaria, havia trocado semelhante referência por outros dois belos exemplares da arte relojoeira, mas que de uma forma inexplicável lhe enchiam as medidas, deixando-o sempre a pensar no relógio que tanto gostava.
E foi assim que, servindo de intermediário — mas apenas e só por conhecer ambos, nunca com o intuito de lucrar um único cêntimo que fosse —, ajudei a que o Submariner encontrasse um novo pulso, alguém que orgulhosamente o usasse com o mesmo cuidado e primor que o seu anterior dono. Coisa estranha, esta definição de dono; na realidade, fazendo uso da campanha Generations, não dono, apenas alguém que o utilize até a próxima geração, que o utilizará. Mas já lá voltaremos…
Ficou o querido amigo Manel com o relógio. Manel, jovem das artes, arquiteto de profissão, obcecado pelas formas e simetrias, alguém que se perde na perfeição de um bom design, mas que se apaixona a cada nova inovação. Assim deambularam pela vida, o Manel e o 116610, anos a fio, sempre juntos, tal como com o Afonso; havia um magnetismo que ele criava em quem o envergava, um fascínio que apenas o seu detentor percebia, uma espécie de romance encapotado imperceptível aos demais, mas que tornava indissociável pessoa e pulso, caráter e mecanismo, exagerado por certo para alguns, tão inteligível para outros tantos…
Certo é que o Manel, não alheio ao charme da educação simétrica de que havia sido alvo na faculdade de arquitetura, quando, em 2020, a Rolex lança o Submariner Ref. 124060, me liga no dia seguinte ao Watches and Wonders (uma espécie de sexta-feira santa para os apreciadores de relógios) porque tinha visto os novos modelos anunciados para aquele ano. Imediatamente sentiu a necessidade de comprar a nova referência, sem data claro, porque a sua vida profissional o tinha levado a concluir não necessitar de tal função, pois sendo patrão dele mesmo, não queria ser escravo do calendário e desse modo desfrutava por inteiro da simetria perfeita do mostrador na sua versão atualizada. Segundo ele, a melhor versão de sempre do Submariner. Incumbiu-me então de fazer o que já havia sido anteriormente feito: procurar alguém que o quisesse — uma vez mais, e com a condição de não lucrar dinheiro algum, fosse o Submariner Ref. 116610 encontrar uma nova pessoa para fazer feliz.
Francisco
Nada mais fácil, uma mensagem de texto, três minutos de ausência de resposta para um simples e redundante sim, enfeitado com letras maiúsculas, preenchidas a negrito. Francisco, amigo de longa data, formado em engenharia, cuja vida profissional e paixão pelo mergulho haviam levado anos antes para terras australianas, não hesitou. Disse-me imediatamente que ficava com o relógio e pediu-me apenas uma semana, pois para disponibilizar tal verba sem sentir o estrago na conta, iria desfazer-se de dois outros ‘amigos’ de longa data para, assim, poder realizar o sonho de ter algo que sempre quis, mas cujo mercado local ditava a impossibilidade de adquirir um num vendedor autorizado.
Imagino a difícil escolha de ter de abrir mão de algo de que se gosta, para ter algo que se ambiciona. Enquanto vos escrevo, diz o rastreio de envio que o Rolex Submariner Ref. 116610, que já pertenceu a dois amigos meus, se encontra no posto DHL de Frankfurt a aguardar a transferência para Sidney para fazer um terceiro amigo feliz. Um relógio que saiu às peças entre Bienne, Plan-les-Ouates e Chene-Bourg, viajou para Portugal e aqui encontrou casa por quase duas décadas, ia atravessar meio mundo para se estabelecer em terras aborígenes e fazer outro português feliz. Desta vez não irei testemunhar pessoalmente a alegria do seu novo protetor, mas não duvido de que irei receber uma mensagem de texto com muitas interjeições, onomatopeias e pontos de exclamação a enaltecer as qualidades do tão aguardada obra relojoeira.
Voltando à campanha Generations e fazendo o paralelo com esta história que cruza a vida de três amigos que, não se conhecendo, usaram o mesmo relógio, pergunto o que contariam se a vida lhes proporcionasse tempo e espaço para tal tertúlia — ou, de uma forma romantizada, que aventuras e desventuras contaria tal relógio acerca dos seus quase 20 anos de vida se tal oportunidade tivesse. Deixo à vossa imaginação não apenas essa reflexão, como também a de se questionar e imaginar se, no futuro, o Submariner procurará novo pulso para fazer feliz e que histórias mais contará daqui a outros vinte anos…
Sobre o leitor convidado:
42 anos, Piloto Comandante de Linha Aérea de Aviões, sonhador por natureza, descobriu aos nove anos de idade a paixão pela aviação, com a ajuda do Pai, grande referência para si. E, desde então anda com a cabeça nas nuvens. Herdou do avô materno um relógio de bolso que havia passado por três gerações e ganhou aí o fascínio pelas máquinas que medem o tempo..
Para seguir: @the_amateur_wristshooter