Lange e a ‘Revolução de Outubro’

Porque é que nas fotografias da A.Lange & Söhne, os relógios da marca que têm a indicação da data no mostrador apresentam sempre o dia 25? Devido a um acontecimento fundamental que teve lugar no dia 24 de outubro de 1994. E hoje, 24 de outubro, recordamos a história…

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Nas fotos da A.Lange & Söhne, o número 25 surge sempre em destaque nos modelos com janela da data, como o Lange 1 © A. Lange & Söhne

Na história da indústria relojoeira existem várias gestas verdadeiramente épicas caraterizadas por deliciosos pormenores de superação humana e pelo piscar de olho do destino, mas nenhuma das grandes marcas suíças, francesas e inglesas consegue apresentar um grau dramático tão elevado como a da germânica A. Lange & Söhne – os episódios trágicos e os revezes da fortuna foram tantos que têm forçosamente de abrilhantar cada relógio saído de um local que foi arrasado há 72 anos e que ressuscitou para o mundo a 24 de outubro de 1994!

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Em 2015, ano em que comemorou os 200 anos sobre o nascimento do seu fundador Ferdinand Alexander Lange, a A. Lange & Söhne inaugurou um edifício que veio abrir novas perspetivas para a manufatura germânica. © A. Lange & Söhne

Fundada em 1845 por Ferdinand Adolph Lange, a A. Lange & Söhne teve um século XX muito conturbado com a crise pós-Primeira Guerra Mundial, as feridas dos bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial, as cicatrizes da expropriação política na Alemanha de Leste, a redenção após a queda do Muro de Berlim, o milagre do inverosímil regresso e até as graves cheias do início do milénio – que deram sentido histórico aos relógios da Lange & Söhne, mas não a alma. Essa, nunca foi vendida ao diabo. Nem o coração, que sempre palpitou no peito do herdeiro Walter Lange e do financeiro Günter Blümlein, os artífices da segunda vida de uma firma que tinha praticamente 150 anos por altura da reunificação… e que precisou de mais quatro para renascer como uma fénix nos escombros da antiga RDA, minada pela bancarrota e pelo desemprego.

A nova era

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Emblemática fotografia: na primeira conferência de imprensa da A. Lange & Söhne após o seu regresso, Günter Blümlein, Walter Lange (ao centro) e Hartmut Knothe ao lado dos primeiros quatro modelos da nova geração. © A. Lange & Söhne

Na sequência da ressurreição da Lange & Söhne, Walter Lange, bisneto do fundador Ferdinand Adolph Lange, recebeu a chave da cidade de Glashütte e a ordem de mérito do estado da Saxónia; faleceu no passado mês de janeiro, seguramente com a sensação de dever cumprido: escapou à Alemanha comunista para regressar na sequência do colapso do Muro de Berlim e reclamar a herança da sua família relojoeira (a Lange havia entretanto sido absorvida por uma cooperativa, a GUB/Glashütter Uhren Betrieb destinada a fazer relógios baratos para o povo). A visão estratégica do malogrado Günter Blümlein, que já tinha sucumbido ao cancro no início do milénio, é recordada por um busto de homenagem nas instalações da marca e na memória colectiva da manufactura.

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À chegada do Salon International de la Haute Horlogerie 2017, a mais indesejada das notícias: Walter Lange tinha morrido durante o sono, aos 92 anos. © Espiral do Tempo

Hoje em dia, a Lange & Söhne é liderada por Wilhelm Schmid no seio do Grupo Richemont – e se em 1994 os cépticos metaforizavam a aventura da marca saxónica como uma corrida entre um Trabant de leste e um Mercedes ocidental, não há dúvida de que a Lange & Söhne mostra uma cilindrada capaz de ombrear com as míticas manufacturas relojoeiras suíças. Afinal de contas, foi várias vezes considerada a primeira das 30 marcas mais luxuosas da Alemanha… à frente da Mercedes e da BMW. Ironicamente, Wilhelm Schmid trabalhava na BMW antes de aceitar o reto de presidir aos destinos da manufatura saxónica.

Filha da glasnost e da perestroika, a A. Lange & Söhne pós-Muro de Berlim surgiu personificada em quatro modelos iniciais. Esses ‘Quatro Mosqueteiros’ – o Lange 1, o Arkade, o Saxónia e o complicado Tourbillon Pour le Mérite – passaram com distinção no escrutínio da primeira apresentação aos clientes e à crítica, no dia 24 de Outubro de 1994; na altura não havia internet, pelo que os três relógios dotados de data (a revolucionária ‘Data Sobredimensionada’, assente num sistema de cruz para as dezenas e disco para as unidades) apresentavam o dia 25… para que as fotografias tiradas e publicadas na imprensa do dia seguinte apresentassem uma sintonia entre a data e o dia da publicação.

Wilhelm Schmid, atual CEO da A. Lange & Söhne. © A.Lange & Söhne
Wilhelm Schmid, atual CEO da A. Lange & Söhne. © A.Lange & Söhne

A reacção dos mais reputadas relojoarias e distribuidores foi simplesmente eufórica e dois dias depois foi a vez de a imprensa especializada – sobretudo a germânica, de grande peso – se render de modo igualmente entusiástico. Não bastava que os relógios fossem esteticamente apelativos ou concebidos exclusivamente em metais preciosos. Denotavam pura classe e eram sobretudo diferentes sem destoar da tradição da marca, desde o plano estético e decorativo até ao aspecto técnico e à originalidade de concepção. Transpareciam alma e coração, imbuídos na história de uma manufactura com pedigree imperial: mecanismo tradicional em prata alemã com platina a três quartos, decoração única com gravação do galo do balanço e chatôns de ouro; a data sobredimensionada numa janela dupla inspirada num relógio da Ópera Semper de Dresden representou uma tremenda originalidade; o mostrador descentrado do emblemático Lange 1 (que logo se tornou no ex-libris da manufatura) e o princípio de transmissão (com fusée à chaîne) utilizado no Tourbillon ‘Pour le Mérite’ deixaram a indústria boquiaberta.

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A.Lange & Söhne Lange 1 Time Zone Honey Gold. © Paulo Pires/ Espiral do Tempo

O renascimento da relojoaria tradicional alemã na Saxónia teve um papel significante no processo de regeneração de Dresden. Com uma marca como a Lange & Söhne a elevar substancialmente a fasquia e a atrair parceiros endinheirados para a zona, muitos outros vieram atrás e hoje em dia Glashütte ferve de atividade relojoeira. Os relógios Lange & Söhne da nova era celebram hoje ‘apenas’ o seu 23º aniversário, mas parece que estão no topo da indústria desde sempre.

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