Devido à sua arquitetura original e reversível, nenhum outro relógio de pulso está tão associado às artes como o Reverso – cujo segundo rosto tem proporcionado um espaço portátil para personalizações e divagações artísticas desde a sua criação em 1931. Em comemoração do recente aniversário de Paula Rego (a artista completou 85 anos no passado dia 26 de janeiro), recordamos a associação do lendário modelo da Jaeger-LeCoultre a alguns dos mais reputados artistas plásticos portugueses que arrancou há precisamente 20 anos.
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Dando sequência a um conceito de elevado cariz artístico e cultural, a Jaeger-LeCoultre e a entidade que distribui a marca em Portugal (a Torres Distribuição) associaram-se para dar vida a um projeto denominado Reverso/Arte Portuguesa – que consistiu no aproveitamento do emblemático relógio reversível como tela original para a representação plástica do tempo por parte de vários artistas nacionais de nomeada.
O ambicioso projeto foi estreado em 2000 e foi incluindo, ao longo dos anos, relógios Reverso em edição limitada valorizados com a assinatura de Júlio Pomar, Manuel Cargaleiro, Paula Rego, José de Guimarães e Julião Sarmento, para além de um modelo Master Control associado a uma escultura de Júlio Pomar. As duas décadas do lançamento do projeto e o aniversário de Paula Rego (no passado dia 26 de janeiro), atualmente a pintora portuguesa mais valorizada, permite-nos recuperar essa notável ‘série reversível’ que também esteve destacada em múltiplas capas da Espiral do Tempo na primeira década de vida da revista.
Uma tela chamada Reverso
Mas vale a pena começar pela ‘tela’. Devido à sua arquitetura original e reversível, nenhum outro relógio de pulso está tão associado às artes como o Reverso – cujo segundo rosto tem proporcionado um espaço portátil para personalizações e divagações artísticas desde a sua criação em 1931
Cedo se tornou evidente que a estrutura basculante se afigurava ideal para devaneios criativos; as possibilidades técnicas e estéticas abertas pelas suas características próprias têm sido oportunamente aproveitadas pela Jaeger-LeCoultre – que ao longo de quase nove décadas foi dotando o verso com prodigiosas complicações relojoeiras ou belas manifestações artísticas. O percurso do Reverso foi permitindo à histórica manufatura suíça reunir no seu portefólio uma larga panóplia de personalizações artísticas à vontade do freguês, desde a simples gravação de iniciais até composições em esmalte.
Nesse sentido, as edições limitadas Reverso/Arte Portuguesa assumem papel de relevo entre as mais belas interpretações de sempre do Reverso; o projeto foi idealizado por Pedro Torres, que foi um reputado colecionador de arte e de relógios, e contou com a participação de consagrados artistas plásticos lusos, convidados a utilizar o verso do Reverso para transmitir a sua própria interpretação do tempo. O resultado: obras de arte intemporais de elevado valor intrínseco e emocional com a assinatura de Júlio Pomar, Manuel Cargaleiro, Paula Rego, José de Guimarães e Julião Sarmento; o desafio proporcionou obras-primas que provaram que a arte e o tempo são um excelente investimento. As diversas associações entre relógios Jaeger-LeCoultre e artistas portugueses foram limitadas a 20, 30 ou 40 exemplares (mais um como prova de autor, oferecido ao artista) acompanhados de uma serigrafia com a imagem do verso, para além de também o fundo da caixa apresentar a numeração da série e o número do mecanismo juntamente com o nome do autor. Eis a retrospetiva de uma série começada em 2000 e cujos exemplares são muito procurados por grandes colecionadores internacionais, provando que a arte e o tempo são sempre um excelente investimento.
2000: Júlio Pomar e a fábula de Esopo
Desaparecido há quase dois anos, Júlio Pomar foi um dos maiores vultos das artes plásticas do século XX em Portugal e o conjunto da sua obra valeu-lhe inúmeros prémios e reconhecimentos. Um dos temas recorrentes no percurso do pintor é a zoologia; os animais sempre exerceram especial fascínio sobre Júlio Pomar e, quando confrontado com o desafio de criar uma gravura alusiva ao tempo, optou por se inspirar genialmente na célebre parábola da lebre e da tartaruga – os protagonistas de um conto de Esopo depois adaptado por La Fontaine que tem servido de lição através dos séculos: devagar se vai ao longe!
O modelo de base escolhido foi o Reverso Date em ouro branco, com a indicação da data através de um ponteiro e do dia da semana numa janela descentrada a acompanhar as funções habituais das horas, minutos e segundos. O leilão do exemplar número um do Reverso Data/Júlio Pomar foi efetuado na Casa do Artista, entidade para a qual reverteu a verba alcançada. E a hasta pública foi muito concorrida: o relógio começou por ser licitado a 3.500 contos e acabou por render 5.150 contos (cerca de 25 mil euros).
«Pinto o que vejo e nunca vi o tempo: não tenho imaginação nenhuma e não fazia ideia do que iria criar. Então lembrei-me da velha história dos dois tempos completamente diferentes, da lenda da tartaruga e da lebre, que nos faz recordar que cada um de nós tem um ritmo diferente de viver o tempo. O curioso é que, na imagem, parece que a lebre está a bater o compasso e a tartaruga lhe pergunta porque é que está a fazer barulho…».
2001: Manuel Cargaleiro e a geometria
O conhecido pintor, gravador e ceramista luso Manuel Cargaleiro fez jus ao estilo que o tornou conhecido em todo o mundo – optando por um exclusivo conjunto pictórico de forte componente geométrica que foi gravado em esmalte no verso do modelo que serviu de base à edição limitada: o Reverso Or Déco, com a sua caixa em ouro branco e números florais no mostrador. É o próprio Manuel Cargaleiro que define a sua arte como ‘abstracionismo lírico’ e a sua interpretação abstracta do tempo transferida para o verso do seu Reverso foi considerada extremamente feliz pela crítica, tão forte nas linhas como nas cores.
A hasta de beneficência teve lugar na casa leiloeira Cabral Moncada e o exemplar número um foi adquirido por 20.500 euros rematado pelo mesmo coleccionador que já havia ganho o equilibrado despique pelo modelo de Júlio Pomar; a receita reverteu a favor do Centro para o Estudo das Artes de Belgais, da pianista Maria João Pires. O preço do relógio e serigrafia: 18.750 euros.
«O que quis para o Reverso foi uma composição toda simbolista do princípio ao fim. A parte de cima da composição tem lá o cosmos, representado pelas três manchas vermelhas; e tem a espiral, que para mim sempre foi a imagem do tempo, do eterno retorno, algo sem princípio nem fim. A primeira coisa que me veio à cabeça foi mesmo utilizar a espiral; fui fazendo estudos e acrescentei três esferas vermelhas: o cosmos e a cor que simboliza a alegria e a felicidade. Na parte de baixo surge a azulejaria, que foi onde a arte portuguesa se manisfestou com mais força desde o princípio; o azulejo é a expressão mais importante da arte portuguesa. As cores são as da bandeira de Genebra, considerada capital mundial da relojoaria. E o azul representa o mar português. Um sobrinho perguntou-me se os losangos eram ampulhetas… mas não foi essa a minha ideia inicial. Só se foi o meu subconsciente!».
2002: Tempo de mulher com Paula Rego
Paula Rego, que completou 85 anos no passado dia 26 de janeiro, é eventualmente a artista plástica portuguesa mais cotada internacionalmente. Radicada em Londres, continua a produzir obras onde a omnipresença feminina se faz sentir de maneira poderosa e perturbante em complexas composições cheias de sexualidade reprimida, com protagonistas que sofrem em silêncio, se prestam a jogos de poder e a laços emocionais ambíguos.
E é precisamente a posição ambígua da mulher em relações traumáticas que surgiu como tema central da gravura da artista para a edição limitada do Reverso com a sua assinatura: está lá todo o seu simbolismo, toda a carga erótica, toda a hierarquização. Afinal de contas, um retrato da condição feminina através dos tempos. O modelo de base escolhido foi o Reverso Grande Taille em ouro rosa, devidamente personalizado com a assinatura no mostrador exclusivo e as gravações da série limitada. O preço do relógio e correspondente serigrafia na altura foi de 21.900 euros.
«Optei por escolher uma imagem que tenho usado ao longo dos anos, com variações. É uma imagem um bocado sexual, um pouco como se fosse a Leda e o Cisne. Ela está a dar um beijo ao pássaro, neste caso o pelicano – um pássaro que é suposto dar de comer aos filhos através dos seus próprios intestinos. A imagem traduz uma violência sexual, mas é uma espécie de tentativa em que há alguma cumplicidade por parte da mulher, senão teria fugido. Mas ela senta o bicho ao colo e levanta a cabeça… só que ele é um bocado palerma e, de certo modo, até é ela que manda nele. Escolhi essa imagem para representar o tempo porque se trata de algo que se passa eternamente, desde sempre, como se fosse um ritual: um que domina o outro, é o tempo eterno. A ideia principal que transmito através dos personagens femininos varia, mas há sempre aquela ideia de quem é que manda em quem, quem é mandado e quem é que manda, uns que servem os outros, outros que são servidos, quem é que quer ganhar o poder, o sofrimento e a posição secundária das mulheres ao longo dos séculos».
2003: A Arte democrática de José de Guimarães
José Maria Fernandes Marques, nascido em Guimarães, gosta de afirmar que procura realizar uma arte contemporânea em que esteja presente no mundo e que seja o reflexo daquilo que o envolve. De facto, a sua arte não tem limites: vai da tela aos grandes espaços urbanos, das formas aparentemente ingénuas ao simbolismo ambíguo, das duas dimensões à tridimensionalidade, das origens ao contemporâneo, do arcaico ao pop, de Portugal para o mundo numa verdadeira explosão de cor e abstraccionismo.
E passou também a ser arte portátil através do Reverso – num modelo com algumas novidades em relação aos anteriores da série Reverso/Arte Portuguesa: foi o primeiro a adotar o aço, o primeiro a ser apresentado na versão Reverso Gran’Sport, o primeiro a ser equipado com uma correia exclusivamente pensada para ele e o primeiro com a rubrica do autor gravada na caixa. Concebido num metal reputadamente democrático como o aço, o Reverso de José de Guimarães foi também um meio democrático de fazer a arte chegar a 40 pessoas; o preço do relógio e serigrafia era mais baixo do que os anteriores: 9.750 euros.
«Foi um desafio: tinha de conceber um desenho que tivesse a ver com o tempo. Cada artista tem a sua linguagem de elementos que se confrontam com a temática do tempo; eu sempre usei a serpente sabendo que tem significados variáveis consoante as culturas. Há determinadas culturas africanas em que a serpente é símbolo da eternidade e foi fácil associá-la ao tempo – embora também associe a serpente à felicidade e à tragédia. As cores não são inofensivas, porque em tudo o que faço procuro dar sentido. Na minha simbologia, tenho usado muito a serpente, sobretudo a serpente verde e a serpente azul. Tenho uma escultura em que o peito de D. Sebastião tem uma serpente verde da tragédia enrolada, mas na cabeça de D. Sebastião há uma serpente azul de felicidade e esperança. No relógio, usei precisamente o azul do bom augúrio – e a serpente tem a particularidade de ter um olho verde e outro vermelho, as cores nacionais. O fundo branco mesclado reproduz o fundo do desenho original feito com massa em relevo».
2012: Iconografia feminina com Julião Sarmento
O Reverso/Arte Portuguesa Julião Sarmento declinou-se em duas sensuais edições limitadas com mecanismo de corda manual que tiveram por base o Grande Reverso 976: a de ouro rosa numa tiragem de 20 exemplares com mostrador preto e pequenos segundos circulares (com um preço de 17.900 euros na altura); a de aço em 30 exemplares dotados de submostrador rectangular para os pequenos segundos (9.900 euros).
Tal como nas anteriores edições Reverso/Arte Portuguesa, cada relógio fez-se acompanhar de uma serigrafia assinada pelo autor – com a peculiaridade de a serigrafia que acompanhou o modelo em ouro ser de cor amarela forte, enquanto a serigrafia da versão em aço era a preto e branco. Julião Sarmento escolheu a representação de um corpo feminino para a sua interpretação do tempo, tratando-se da maior fonte de inspiração da sua carreira.
«Sou muito identificado com a representação do corpo feminino; todo o meu trabalho gira à volta da iconografia feminina e tenho uma série de obras que são uma espécie de mulher expectante, que está à espera, o que tem a ver com o espaço e com o tempo. Tem a ver com o espaço no qual a mulher existe, que ela preenche, e com o tempo indeterminado em que ela lá está. Não é um tempo fugaz, é um tempo eterno. Foi esse o sentido que me interessou na conexão entre uma imagem de marca, a minha imagem de marca, e a ideia do tempo que não acaba».
Extra: Tempo na três dimensões
Mas, para além do tempo reversível, houve também um tempo circular associado ao conceito relojoeiro que celebrou a artes lusas. ‘Escutar o Tempo’ foi o título da segunda parceria entre Jaeger-LeCoultre e Júlio Pomar, a primeira do projeto Arte Portuguesa sob a forma de escultura – e constituída pela escultura de uma lebre e um relógio da linha redonda Master Control. A tiragem foi limitada a 30 relógios em ouro rosa com a assinatura do mestre gravada na caixa e algarismos florais no mostrador; a escultura da lebre (assente sobre a carapaça de uma tartaruga e o livro ‘Dom Quixote’) também serve de ‘estojo’ ao relógio. Na altura, o preço do relógio e da escultura foi estipulado em 19.750 euros.
«A lebre, com a sua cabeça inclinada para o relógio, parece estar a ouvir o tempo passar». Júlio Pomar.
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