De Bethune e MB&F: retrofuturismo

Em Genebra e Basileia |  Os primeiros anos do novo milénio assistiram ao nascimento de pequenas empresas relojoeiras que rapidamente se tornaram tanto em símbolos da alta-relojoaria independente, como em pontas de lança do inconformismo técnico e estético. De todas elas, há duas que se distinguem pela ponte entre o passado e o futuro que estabeleceu um original estilo retrofuturista: a De Bethune e a MB&F. Retrato de duas marcas de culto na sequência de visitas a Genebra e Basileia.

Imagem acima: Medusa: uma das criações de MB&F. © Paulo Pires/Espiral do Tempo

As marcas e os criadores independentes têm vindo a afirmar-se entre as principais vedetas dos grandes certames relojoeiros, ao longo da última década e meia — desde Baselworld ao SalonQP, passando pelo Salon International de la Haute Horlogerie e a Dubai Watch Week, com o devido reconhecimento traduzido por múltiplos galardões conquistados por esse mundo fora e validado através de troféus no Grand Prix d’Horlogerie de Genève.

Sempre houve relojoeiros e pequenas marcas independentes. A criação, em 1985, da Académie Horlogère des Créateurs Indépendants teve o condão de dar sentido corporativo a um ofício individualista por natureza, e de lá emergiram muitos nomes que atualmente figuram nos mais prestigiados mostradores. A conjuntura favorável que se seguiu ao reflorescimento da indústria relojoeira na década de 90 conduziu à aparição de marcas independentes com propostas alternativas a partir da viragem do milénio. Entre as de visual mais técnico/desportivo (da Richard Mille à Cvstos) e as de índole eminentemente vanguardista (da Urwerk à HYT), destacaram-se duas que reinterpretaram os elementos de estilo e reinventaram as soluções técnicas da relojoaria tradicional de uma maneira nunca antes vista: a De Bethune e a MB&F.

A De Bethune surgiu em 2002 pela mão de Denis Flageollet para dar precisamente uma nova interpretação moderna ao estilo tradicional. Entretanto, Max Büsser havia desenvolvido o conceito Opus na Harry Winston — assente numa exorbitante talking piece anual feita em associação com um reputado mestre relojoeiro independente; querendo assumir o seu próprio destino, despediu-se para fundar a MB&F (‘F’ de ‘Friends’), assente precisamente na experiência corporativista que tinha fomentado anteriormente, com a participação de criadores amigos. Cada qual à sua maneira, surpreenderam o universo relojoeiro e beneficiaram da explosão da Internet para ganhar fama global; a filosofia e a visão prendiam-se com o desejo de quebrar regras e viabilizar novos códigos — porque a nova relojoaria do século XXI exigia liberdade artística. Tanto a De Bethune como a MB&F tornaram-se não só marcas de culto com uma legião de indefetíveis seguidores, mas também se tornaram nas principais veiculadoras do que poderíamos apelidar de… retrofuturismo.

De Bethune

Denis Flageollet e David Zanetta estabeleceram a manufatura De Bethune na pequena localidade de La Chaux l’Auberson a partir de 2004 — assente num atelier de 30 artesãos, mas com um gabinete na parte antiga de Genebra que muitas vezes funciona como centro operacional. Desde cedo, procuraram impor um design de ponta com o recurso a materiais vanguardistas, tornando-se pioneiros no desenvolvimento de espirais de silício, em busca de maior precisão, e também experimentando inovadores sistemas de proteção de choques. O facto de a maior parte das marcas estar dependente de escapes disponibilizados pela Nivarox fez com que a dupla se lançasse no sonho de unir as visões técnica e estética que tinham para a marca — aguçando a arte e o engenho em busca de novas soluções normalmente apelidadas de anticonformistas, concetuais ou mesmo radicais.

DB28 GS Grand Bleau da De Bethune. | © Paulo Pires/Espiral do tempo
DB28 GS Grand Bleau da De Bethune. | © Paulo Pires/Espiral do Tempo

A De Bethune apresentou, desde cedo, tudo isso sob a batuta do génio científico do mestre Denis Flageollet, introduzindo uma inovadora roda de balanço em titânio com pesos ajustáveis e fazendo evoluir o seu design, combinando-o com uma espiral de curva terminal original de espessura variável em matéria sigilosa. No plano estético, a De Bethune estreou as caixas em titânio de grau 5 com polimento espelhado e também com acabamento azulado, através de um processo térmico — importa referir que o objetivo inicial era o da funcionalidade; só depois se tornou numa imagem de marca, juntamente com as asas móveis, em determinados modelos, e a lua esférica.

DB25 Starry Varius da De Bethune. | © De Bethune
DB25 Starry Varius da De Bethune. | © De Bethune

A coleção atual divide-se, sobretudo, entre a linha mais clássica DB25 e a mais contemporânea DB28, complementadas pela DB21, DB 27 e DB 29 — dando todas, umas mais do que outras, a tal ideia de retrofuturismo inerente a soluções estéticas que são completamente originais, mas que, de algum modo, recordam um passado que se calhar nem existiu e um futuro que talvez nem venha a existir. E depois há uma coleção concetual paralela com o nome Dream Watch, formada por extraordinárias esculturas para o pulso e de inspiração espacial.

DB28 Digital da De Bethune. | © De Bethune
DB28 Digital da De Bethune. | © De Bethune

Na coleção regular, a linha DB28 engloba a maior parte das inovações técnicas estabelecidas pela marca, como o balanço em silício, a espiral própria com curva terminal patenteada, o sistema triplo de antichoque, as asas flutuantes e a emblemática indicação 3D de fases da Lua a partir de uma esfera de paládio e aço temperado/revenido a azul. «A Lua tornou-se num exemplo de beleza em si mesmo», refere Denis Flageollet; «mesmo que tudo na De Bethune tenha de ser funcional, apesar de o primeiro objetivo ser o de criar emoção». Como sucede com os já famosos mostradores estrelados ou o uso de meteorito.

Dream Watch 5 da De Bethune. | © De Bethune
Dream Watch 5 da De Bethune. | © De Bethune

Também os turbilhões ultraleves de 30 segundos da De Bethune apresentam as suas idiossincrasias, sendo mais imunes ao choque e tendo uma frequência de 5Hz. A oferta cronográfica tinha igualmente de ser excecional: o Maxichrono apresenta um ‘sistema total de embraiagem’ patenteado pela de Bethune em 2015 e autónomo do resto do movimento. «Desde o início, queríamos fazer algo que estivesse a faltar na relojoaria e que ajudasse a prolongar a bela história da arte relojoeira. Nada do que fazemos se afasta do objetivo da performance, mas o que fazemos expressa-se sempre de uma maneira que é poética e estética. Para mim, isso é o que faz das nossas criações simultaneamente relógios de precisão e objetos de arte», sublinha Denis Flageollet.

Desde a sua fundação, a De Bethune desenvolveu 27 calibres originais, apresentou mais de 30 estreias mundiais e registou um elevado número de patentes — além de ter concebido 150 exemplares únicos destinados a satisfazer pedidos especiais dos mais exigentes colecionadores. Encontra-se, agora, numa nova fase da sua ainda curta existência — tendo saído David Zanetta, entrado um novo investidor e regressado Pierre Jacques para assumir a condução operacional da marca enquanto CEO. O lema permanece o mesmo: «Não fazer mais, mas fazer melhor». O impressionante número de prémios que a marca tem acumulado prova a justeza do mote.

A manufatura da De Bethune em L’Auberson, na Suíça. | © De Bethune
A manufatura da De Bethune em L’Auberson, na Suíça. | © De Bethune

MB&F

Também por trás da criação da MB&F esteve a vontade de criar algo de raiz. Engenheiro de formação com passagem pela Jaeger-LeCoultre, Maximilian Büsser foi responsável pelo salto da Harry Winston Timepieces para o cume da alta-relojoaria, graças ao lançamento anual de um instrumento do tempo revolucionário, feito em parceria com um grande mestre. Resolveu, depois, assumir esse conceito com ainda mais liberdade para conceber esculturas relojoeiras de caráter radical, a partir de 2005 — acompanhado por um coletivo de amigos cuja criatividade não tinha limites. A sigla MB&F significa «Max Büsser & Friends», e representa um coletivo de talentosos independentes (criadores, artesãos, mestres relojoeiros) desejosos de transformar a sua paixão numa obra-prima radicalmente nova. Max & Amigos tornaram-se nos novos mosqueteiros da indústria.

Legacy Machine 2 Titanium da MB&F. | © Samuel Zeller
Legacy Machine 2 Titanium da MB&F. | © Samuel Zeller

Um pouco como D’Artagnan e os Três Mosqueteiros, utilizam as sinergias para conseguir algo mais do que a soma das partes. Um por todos e todos por um: o primeiro projeto dos amigos surpreendeu pela ousadia, evocando a ficção científica numa Horological Machine No. 1 desenhada por Eric Giroud e transformada numa obra de arte da micromecânica pelo criador de mecanismos Laurent Besse e pelo mestre relojoeiro Peter Speake Marin — surgindo o Horological Machine No. 1. O HM1 surgiu como uma espécie de fusão entre as 20 Mil Milhas Submarinas e a 2001, Odisseia no Espaço — sendo, então, apelidada de ‘Star Trek’ da relojoaria.

Horological Machine No 2 - The Final Editions da MB&F. | © MB&F
Horological Machine No 2 – The Final Editions da MB&F. | © MB&F

A ideia utópica de criar uma marca vocacionada para desenvolver conceitos relojoeiros radicalmente novos com um coletivo de compinchas (criadores e artesãos) prosseguiu com as seguintes Horological Machines saídas do imaginário juvenil de Max Büsser — até um momento determinante para a MB&F: o lançamento de uma nova linha e o estabelecimento da Mechanical Art Devices Gallery. A M.A.D. Gallery proporcionou o espaço e o contexto ideal para a apresentação dos modelos da marca, juntamente com obras de arte de design futurista ou retrofuturista que incluem esculturas mecânicas. O espaço de exibição localizado na parte velha de Genebra serve também de sede à marca, existindo igualmente outras galerias no Dubai (onde Max Büsser reside com a família), em Hong Kong e Taipé. Já o lançamento da nova linha Legacy Machine permitiu abraçar um público mais conservador sem perder nada da originalidade visual, técnica e emocional que carateriza a marca.

Horological Machine No 4 da MB&F. | © MB&F
Horological Machine No 4 da MB&F. | © MB&F

«Vejo mais beleza em algo de ousado e com um caráter forte do que em algo que é bonito e politicamente correto», confessava Max Büsser nos primórdios da MB&F: «O luxo, que sempre foi simbolizado pela elegância, discrição e pelo classicismo, está a tomar um novo rumo — graças à Richard Mille, à Urwerk e algumas outras marcas, a alta-relojoaria está a seguir numa nova direção». Curiosamente, admite que, quando tem reuniões de negócios na conservadora Genebra, tem de usar no pulso um modelo Legacy Machine em detrimento de uma qualquer folia extravagante da série Horological Machine. Precisamente porque o design das Legacy Machines é retrofuturista, assente em caixas redondas, mostradores analógicos com ponteiros convencionais e técnicas de acabamento tradicionais — embora com elementos de estilo surpreendentes, como vidros marcadamente convexos e o aparelho oscilador (balanço/espiral) sobre o mostrador. Ou seja, a resposta ao que a própria MB&F faria se existisse há 100 ou 200 anos…

M.A.D.Gallery. | © MB&F
M.A.D.Gallery. | © MB&F

Entretanto, a MB&F estendeu o seu conceito de parcerias a outro tipo de esculturas mecânicas: os relógios de mesa — primeiramente, com a histórica companhia de caixas de música Reuge; depois, com a especialista L’Epée. O universo alternativo de Maximilian Büsser está cada vez mais universal, sempre fiel ao delicioso mote «Um adulto criativo é uma criança que sobreviveu».

Artigo originalmente publicado no número 68 da Espiral do Tempo.

Outras leituras