Konstantin Chaykin pôs os colecionadores a sorrir com o lançamento do seu Joker, posteriormente declinado em múltiplas e surpreendentes variações. Mas as criações do mestre russo vão muito para além de obras de arte antropomórficas que despertam emoções – já viajaram até ao passado cinematográfico e também dão as horas em Marte.
Artigo originalmente publicado no número 75 da Espiral do Tempo (verão 2021)
A Rússia imperial teve uma forte tradição relojoeira no seu tempo e a Rússia contemporânea é um importante mercado para a relojoaria de luxo – enquanto que, pelo meio, a União Soviética produziu milhões de exemplares acessíveis para o povo. Mas nunca um relojoeiro daquelas paragens brilhou tanto como Konstantin Chaykin, destacado membro da AHCI (Academie Horlogère des Créateurs Indépendants) que ganhou tanta fama pelas suas criações completamente fora da caixa que se tornou presidente da reputada instituição entre 2016 e 2019. O Joker tornou-se incrivelmente popular e cobiçado pelos mais exigentes colecionadores, sendo talvez o ex-libris do mestre de 46 anos oriundo de São Petersburgo. Mas está longe de ser o mais complexo relógio num currículo que inclui obras-primas de originalidade e engenhosidade, várias delas com características antropomórficas verdadeiramente únicas.
“Não houve quaisquer indícios de que a minha educação ou objetivos da adolescência me encaminhassem para a relojoaria. Mas a capacidade de criar algo por mim mesmo e trabalhar com mecanismos já existia antes de entrar para a Escola Técnica de Telecomunicações. A ligação entre equipamentos rádio e os relógios é evidente.“
Konstantin Chaykin
O primeiro instrumento do tempo que concebeu foi um relógio de mesa dotado de turbilhão (o primeiro turbilhão russo desde 1917), mas o primeiro que saltou para a lista dos melhores modelos de Baselworld aquando da sua apresentação em 2013 foi o Cinema, um relógio de pulso que reproduz mecanicamente as imagens e o som da primeira película jamais filmada. Seguiu-se-lhe o Carpe Diem e a alegoria da ampulheta. O Russian Time com as suas múltiplas zonas horárias. O Lunokhod com a sua grande lua tridimensional central. O Levitas de horas misteriosas. O Genius Temporis, de ponteiro único. O Quartime e as quatro fases do dia. O Diana e a alegoria da lua feminina. O Decalogue e o tempo judaico. O Hijra com calendário islâmico. E, mais recentemente, o Mars Conqueror com o tempo da Terra e de Marte. Entretanto, o Joker já se vende em segunda mão ao dobro do preço de custo e tem tido vários sucedâneos assentes no mesmo conceito de discos das horas e dos minutos enquanto globos oculares e as fases da Lua na língua, desde o Drácula com dentes retractáveis até à peça única Joker Selfie – que conseguiu um resultado sensacional no leilão Only Watch, enquanto o Clown valeu a Konstantin Chaykin o Prémio Audácia no Grand Prix d’Horlogerie de Genève. Aqui ficam as impressões do mais conceituado mestre russo, um especialista em criar peças que entram em contacto direto com os seus donos e provocam uma forte resposta emocional.
O princípio e a história
«Não houve quaisquer indícios de que a minha educação ou objetivos da adolescência me encaminhassem para a relojoaria. Mas a capacidade de criar algo por mim mesmo e trabalhar com mecanismos já existia antes de entrar para a Escola Técnica de Telecomunicações, onde me interessei pela engenharia de telefonias. A ligação entre o equipamento rádio e os relógios é evidente. Em ambos os casos, há um grande número de pequenos e complexos componentes. E há transmissão de energia. Perceber como a engenharia de rádio funciona levou-me a interessar-me não só pela relojoaria como pela sua história; em 2012 publiquei mesmo um livro denominado ‘Relojoaria na Rússia: Mestres e Guardiões’. Até à Revolução no início do século XX, havia sobretudo fábricas de relógios de bolso que assemblavam componentes suíços – sobretudo as empresas de Pavel Bure e Henry Moser. Nos tempos da União Soviética, as fábricas de relógios de pulso começaram a surgir nos anos 30 e cerca de 19 fábricas fabricavam dezenas de milhões de exemplares para o povo. Com a Perestroika, as fronteiras abriram e o mercado foi inundado por relógios baratos de quartzo, o poder de compra caiu e quase todos os fabricantes russos faliram. Hoje em dia, há apenas a fábrica de Chistopol com os seus modelos Vostok e a Raketa também tem movimentos próprios. A Molniya voltou a fazer relógios de bolso. Há também a Poljot. E nós, que fazemos relógios com movimentos próprios mas num segmento de preço mais elevado».
O Joker e a nova dimensão
«A feira de Baselworld em 2017 representou o início de uma longa viagem. Todos os relógios Joker foram vendidos, foi o meu primeiro relógio com um sucesso tão global. E tivemos de aprender a fazê-lo em maiores quantidades, refazer a linha de produção, contratar gente para a montagem em série dos movimentos na manufatura que temos em Moscovo. O mais difícil foi formar gente especializada, porque na Rússia não há escolas profissionais de relojoaria. Quase todos tiveram de aprender desde a estaca zero as diversas etapas de fabrico. Entre 2015 e 2016, fazíamos 15 a 20 peças por ano; o volume passou para os 150 a 200 exemplares anuais entre 2018 e 2019. O Joker facultou a descoberta de uma nova direção na relojoaria e fez com que os colecionadores se interessassem. É muito requisitado; qualquer variante do Joker se esgota antes mesmo de ser publicamente apresentada, mas não quero fazer mais para garantir a qualidade desejada no processo de manufatura».
A projeção do Cinema
«O Cinema é uma verdadeira obra de arte. Pode ter uma complicação pouco útil, mas é muito rara: um projetor de filme incorporado, que conta a linda história da invenção de Edweard Muybridge e provoca emoção nas pessoas. A exibição da pequena metragem no relógio delicia quem quer que a veja. Tem um calibre complicado e com muitos componentes, mas também só faço relógios com complicações e por vezes elas requerem soluções colossais que não só são inabituais no campo da mecânica, mas também da física e da matemática. Cada novo relógio é um desafio que me leva a procurar resolver problemas. Colocar um movimento complicado num belo design é um desafio e tento estimular a minha inspiração, como se de uma obra de arte se tratasse. Sempre quis ser artista, adoro pintar e isso também me ajuda a ter ideias diferentes para combinar a estética e a mecânica».
Turbilhão de ideias
«O turbilhão foi a primeira complicação tradicional que fiz, mas para um relógio de mesa; este ano irei revelar o meu primeiro relógio de pulso com turbilhão. Não sou um grande fã da tradição e o turbilhão é uma complicação tradicional que até nem faz muito sentido num relógio de pulso, embora seja bonito de se ver e mostre muita alma. Podemos ficar muito tempo a ver a lareira crepitar, as ondas do mar a bater, o turbilhão a funcionar, o cavalo a correr no Cinema e o Joker a sorrir. Já tenho 89 patentes e motiva-me criar algo que ainda não exista na história e na evolução da relojoaria – procurando nichos técnicos que ainda não foram preenchidos. Tento sempre direcionar o meu pensamento para áreas inexploradas».