Madrepérola em relojoaria: nácar dos deuses

De entre os inúmeros tesouros naturais que a vida aquática nos oferece, a madrepérola, ou o nácar, tem qualquer coisa de fascinante — talvez pela sua textura irregular, pelos tons românticos iridescentes ou talvez até pelo lado misterioso que está na sua origem… Nos relógios, esta substância que nasce como reação de defesa de algumas espécies de moluscos é utilizada, sobretudo, enquanto elemento decorativo nos mostradores. Num mar de infinitas possibilidades…

Imagens cedidas pelas marcas

Artigo originalmente publicada no número 63 da Espiral do Tempo (edição de verão 2018)

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Há uns tempos, tivemos a oportunidade de visitar a Cadrans Fluckiger, a fábrica de mostradores, com chancela Patek Philippe, localizada em Saint-Imier, perto de La Chaux-de-Fonds, na Suíça. É verdade que, na altura, o atelier de guilhoché, liderado por um madeirense bem simpático, foi um dos espaços que mais nos impressionou, tanto pela beleza associada ao resultado do ofício em si, como pelas ferramentas e máquinas antigas que ali são mantidas. No entanto, a especificidade da conceção de mostradores em madrepérola também não nos deixou indiferente…

Cadrans Fluckiger
Um mostrador em madrepérola da Patek Philippe. © Patek Philippe

Todos nós ouvimos falar, com frequência, em joias feitas ou adornadas de madrepérola. Quem diz joias, diz botões, objetos decorativos ou utilitários, instrumentos musicais, móveis e até azulejos para revestimentos de paredes em edifícios. E provavelmente poucos terão noção do meticuloso trabalho que está por trás da criação de peças assim. No caso da relojoaria, a utilização da madrepérola acaba por ser fascinante por diversos motivos, principalmente pelas diversas formas como é aplicada nos mostradores. As marcas revelam-se mais ou menos apuradas nesta utilização. Algumas apostam em requintados trabalhos embutidos, outras optam pela utilização de discos que cobrem na totalidade a base de metal do mostrador. Em ambos os casos, trata-se de trabalhos de extrema delicadeza e que obrigam ao máximo cuidado.

A. Lange & Söhne Saxonia | Ref. 219.047 | Corda manual | Ouro branco | Ø 35 mm | € 29.400
A. Lange & Söhne Saxonia | Ref. 219.047 | Corda manual | Ouro branco | Ø 35 mm | € 29.400 © A.Lange & Söhne

Madrepérola/Nácar

Do encanto e da beleza da madrepérola como nós a vemos ser utilizada enquanto adorno até ao processo natural que está na sua origem, há uma espécie de contraste. Tal como acontece com a formação da pérola, a madrepérola, também conhecida por nácar (do espanhol nácar derivado do árabe hispânico náqra, que significa «pequeno tambor»), resulta de uma reação de defesa de algumas espécies de moluscos bivalves provocada pela presença de corpos estranhos nas suas conchas. Basicamente, o nácar é segregado revestindo a parte interior dessa mesma concha e é composto na sua maioria por parte carbonato de cálcio e proteína – a mesma composição da pérola. Mas enquanto o nácar é cristalizado em camadas planas, a pérola nasce da cristalização em camadas esféricas e concêntricas que vão envolvendo o intruso durante anos e anos.

As caraterísticas desta misteriosa substância fazem dela um elemento perfeito para ser utilizada como adorno. Além disso, o facto de ainda não ter sido possível a sua efetiva e completa mimetização em contexto de laboratório — apesar de já estarem registadas experiências consideradas bem-sucedidas — torna-a ainda mais especial e única. Duas palavras que casam tão bem com o mundo da alta-relojoaria.

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Neste peixe feito de madrepérola, que irá ornar um Chopard Happy Fish, nota-se bem o minucioso trabalho de gravação em alto relevo que dá mais vida ao resultado  nal.
Neste peixe feito de madrepérola, que irá ornar um Chopard Happy Fish, nota-se bem o minucioso trabalho de gravação em alto relevo que dá mais vida ao resultado final. © Chopard
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Chopard Happy Fish | Ref. 275366-0001| Corda automática | Ouro amarelo | Ø 36 mm | Preço sob consulta © Chopard

A origem

Não basta ir ali até Sesimbra e reunir uma série de conchas à toa para delas remover o nácar que eventualmente escondem. Se estamos a falar da utilização da madrepérola para resultados de exceção, temos mesmo de pensar em patamares bem elevados na hora de selecionar a madrepérola que vai ser utilizada. A Van Cleef & Arpels, por exemplo, refere que a madrepérola que utiliza nas suas criações é originária do Taiti, do Bali ou da Nova Zelândia, escolhendo-a em função dos tons, das cores, dos efeitos iridescentes e das texturas que vão ao encontro do resultado que se pretende. Já a Pearl Watch Dials, manufatura especializada em mostradores, refere que a madrepérola que utiliza é retirada de conchas de elevada qualidade originárias do Vietname, da Tailândia, da Indonésia e das Filipinas. Na mesma linha, a Chopard viajou também pelo Taiti para dar mais brilho aos seus relógios da linha Imperiale. A verdade é que, dependendo da sua origem, a madrepérola difere nas suas caraterísticas. Por um lado, temos as cores e os tons que podem ir do branco ao preto, passando pelo rosa, pelo amarelado ou pelo cinzento. Depois, a intensidade do tom, a própria estrutura e a textura podem ser diferentes, mediante a parte interior da concha da qual a madrepérola é retirada.

Pétalas de madrepérola do Taiti são delicadamente aplicadas no mostrador do Il Giardino Notturno da Bvlgari
Pétalas de madrepérola delicadamente aplicadas no mostrador do Il Giardino Notturno da Bvlgari. © Bvlgari

Há pouco falámos em contraste. E não há contraste mais romântico do que aquele que existe entre o exterior e o interior de uma concha repleta de madrepérola. Por fora, uma caixa rudemente texturada pelo calcário que também a compõe e os sedimentos que nela se acumulam; no interior, um revestimento delicado, hipnotizante, quase divino, pronto para ser removido e ornar as mais belas criações. Por algum motivo, Hesíodo conta que Afrodite (Vénus, na mitologia romana) teria nascido no interior de uma concha, num mito que deu azo à imaginação de artistas e contadores de histórias que, ao longo dos tempos e das épocas, representaram a deusa do amor e da beleza de diversas formas, com algumas representações a embelezarem a mais conhecida versão do nascimento da deusa com uma concha revestida a madrepérola (quem conta um conto acrescenta um ponto e, nisto dos mitos, os pontos acrescentados ao longos dos milénios tendem a ser confusamente muitos…).

Rolex Oyster Perpetual 31 | Ref. 278289RBR | Corda automática | Ouro branco | Ø 31 mm | € 37.100
Rolex Oyster Perpetual 31 | Ref. 278289RBR | Corda automática | Ouro branco | Ø 31 mm | € 37.100 © Rolex

Mas há mais do que o romantismo na beleza natural do nácar. É que, às vezes, essa beleza natural não salta de imediato à vista, pelo que é preciso trabalhá-la de modo a torná-la mais óbvia. Como o faz a Rolex que, ao contrário de algumas casas que optam por colori-la artificialmente, trata a madrepérola de modo a salientar as suas caraterísticas naturais. Neste sentido, cada mostrador em madrepérola que podemos encontrar nos relógios da marca da coroa acaba por ser único. E a marca faz questão de salientar esse aspeto, nomeadamente nos modelos Lady-Datejust Pearlmaster.

A conceção dos mostradores

O nácar é um material sólido e resistente, e removê-lo do interior da concha não é um processo simples . A Pearl Watch Dials refere que utiliza máquinas de CNC para cortar lâminas de madrepérola com espessuras de 0,2 mm e 0,15 mm, das quais são depois recortados discos de superior qualidade – de graus A, AA ou AAA, que serão utilizados como mostradores. Mas há técnicas específicas em que a madrepérola é imediatamente removida da concha em discos. A própria Van Cleef & Arpels refere que a madrepérola retirada das conchas é tratada e trabalhada ao mínimo detalhe até que sejam obtidas a espessura e uniformidade desejadas, e sempre tendo em conta que a base inferior deverá tornar-se plana para depois ser fixada na base de metal.

Cadrans Fluckiger
Os mostradores em madrepérola exigem extremo cuidado de conceção. © Patek Philippe

Claro que, a partir do momento em que os blocos de nácar são reduzidos a discos, a reduzida espessura confere-lhes elevada fragilidade, pelo que todo o processo obriga sempre a um máximo cuidado de modo a evitar discos partidos ou lascados. Na Cadrans Fluckiger, por exemplo, disseram-nos que cerca de 50% dos finos discos de madrepérola utilizados acabam por quebrar a meio caminho do processo entre a sua remoção da concha e a sua fixação na base de metal do mostrador. E apesar de não termos acesso aos níveis de rejeição dos discos de madrepérola pela parte da Van Cleef & Arpels neste processo, teremos sempre de ficar de boca aberta perante o trabalho de recorte que exige a marchetaria tão aplicada pela marca francesa. 

Com a exigência acrescida de que cada pedaço é muitas vezes esculpido em relevo ou gravado para se enquadrar na arte final. Todo este trabalho é feito manualmente. Felizmente, ainda há ofícios em relação aos quais as máquinas não chegam aos calcanhares. E a gravação é certamente um deles. Porque nada é uniformizado, tendo em conta que cada pedaço é tratado e polido individualmente de modo a, em grande parte das vezes, fazer sobressair as caraterísticas naturais da madrepérola. O Piaget Altiplano Rose, apresentado em 2016, é também um exemplo das possibilidades de combinação de materiais, com um mostrador em madeira escavado de modo a permitir embutir diferentes materiais, nomeadamente, pedaços recortados de madrepérola branca.

Piaget Altiplano Rose Watch | Ref. GoA41208 Corda manual | Ouro branco | Ø 38 mm | € 74.500
Piaget Altiplano Rose Watch | Ref. GoA41208 | Corda manual | Ouro branco | Ø 38 mm | € 74.500

O resultado é uma bonita rosa no centro do mostrador. Segundo a Piaget, foram precisas 25 horas e 96 pedaços de madeira e de madrepérola para conceber o mostrador de cada um dos 18 relógios que compõem esta edição limitada. Por outro lado, há outras opções, nomeadamente a utilização de laca em camadas que permite alterar o tom dos finos discos, especialmente quando estes apresentam uma espessura de tal forma reduzida que os torna quase transparentes. Depois, são aplicados elementos, como diamantes ou indexes e numerais em ouro ou noutro metal, com a possibilidade de serem impressos também, com técnicas devidamente adequadas e com o máximo cuidado.

Perante estas opções, dá para perceber que os níveis de decoração com madrepérola são de diversa ordem e que, neste domínio, a imaginação dos criativos não tem limites. Entre discos de diferentes texturas, tons e brilhos naturais que mudam de aspeto consoante a incidência da luz, passando por autênticos puzzles que combinam diferentes materiais e diferentes técnicas e pela gravação de motivos inspirados, tal como acontece em diferentes áreas, as marcas de relojoaria descobriram na madrepérola um verdadeiro tesouro destinado, sobretudo, a modelos femininos. Em última análise, o maior desafio na aplicação deste material em relojoaria passa sempre pelo espaço reduzido que cada mostrador representa.

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