Ir de Brescia a Roma pelo lado oriental da península itálica e regressar pela costa ocidental, num histórico percurso de mil milhas percorridas por extraordinárias viaturas diante de estonteantes cenários faz da Mille Miglia uma épica manifestação automobilística. A propósito da edição de 2025 da mais bela corrida do mundo, que decorreu entre os passados dias 17 e 21 de junho, relembramos uma reportagem publicada na Espiral do Tempo a propósito da nossa experiência neste épico cenário a convite da Chopard. Estávamos em 2023.
Por: Miguel Seabra, em Itália
Reportagem publicada originalmente no número 83 da Espiral do Tempo (edição verão 2023).
A Itália é um dos berços da civilização ocidental, e da Península Itálica saíram conquistadores romanos que moldaram a face da Europa graças à sua superioridade urbanística. Foi também de lá que o Renascimento retirou o Velho Continente das trevas e lhe deu um futuro artístico mais luminoso. Sem esquecer várias das mais famosas escuderias que contribuíram para o progresso do desporto motorizado. A cultura milenar, uma gastronomia peculiar e a diversidade geográfica fazem com que a Mille Miglia seja a mais bela manifestação automobilística do mundo — estando atualmente formatada como um rali de clássicos que é simultaneamente uma homenagem ao bom gosto apadrinhada pela Chopard.

Enzo Ferrari tinha razão: a Mille Miglia é mesmo la più bella corsa del mondo para quem teve oportunidade de a vivenciar enquanto afortunado concorrente ou entusiasta espetador. A autoproclamação é justa — trata-se de uma corrida retrospetiva, protagonizada pelas melhores máquinas automóveis produzidas pelo homem na primeira parte do século XX e realizada ao longo de maravilhosos cenários naturais carregados de referências incontornáveis. Daí se tratar de uma daquelas competições onde o importante é participar, porque vencer torna-se um mero privilégio suplementar. Ao cabo de mil milhas: cerca de 1600 quilómetros, de Brescia a Roma e de regresso a Brescia em viaturas construídas entre 1927 e 1957.
Foi nessa baliza temporal de três décadas que decorreu a Mille Miglia original, a famosa corrida que exalava um fascínio tal que seduziu os melhores pilotos do planeta e juntou centenas de milhares de tifosi nas bermas das estradas para testemunharem as proezas das mais rápidas viaturas daqueles tempos. Por vezes, perto demais e com nefastas consequências…

Pioneirismo e tragédia
Acompanhando a crescente popularidade das máquinas de quatro rodas, um grupo de intrépidos aristocratas de Brescia — Franco Manzotti, Aymo Maggi, Renzo Castagneto e Giovanni Canestrini — gizou uma competição que não só pudesse alimentar a sua paixão pela velocidade como também mostrar ao mundo as virtudes da indústria automóvel italiana. Uma corrida de longo curso permitiria também aos fabricantes retirar preciosas informações sobre a fiabilidade dos seus carros desportivos de fabrico em série. A adesão foi maciça e os excessos inevitáveis.

A ousadia mecânica e a paixão exacerbada originaram múltiplas ocorrências épicas e situações rocambolescas que ajudaram a transportar a Mille Miglia para a lenda. As condições de segurança não acompanhavam a desenfreada aposta na potência, gerando episódios transmitidos verbalmente por quem os assistiu e que depois passaram de boca em boca e de geração em geração — aumentando a carga mítica da corrida. Como em 1954, quando Hans Herrmann estava ao volante do seu Porsche 550 Spyder e prestava indicação às cábulas do ‘pendura’ Herbert Linge quando se lhes deparou uma passagem de nível com a cancela a descer e a luz vermelha a piscar; era tarde demais para travar e, resolutamente, encolheram os seus capacetes e aceleraram por baixo da barreira enquanto o comboio se aproximava. Ou a galhardia do lendário Tazio Nuvolari em 1948, quando comandou a última corrida da sua vida ao volante de um Ferrari Tipo 166 praticamente destruído e a cuspir sangue… até não conseguir continuar devido à perigosa falta de travões!

O charme especial de a Mille Miglia se realizar em estradas públicas que não eram fechadas ao entusiasmo dos tifosi acabaria por proporcionar múltiplas tragédias, e foram as consequências nefastas do acidente protagonizado pelo marquês Alfonso de Portago a determinar a suspensão da corrida: o seu copiloto e dez espetadores morreram quando o rebentamento de um pneu lançou o Ferrari para um canal… depois de atravessar o público. A acumulação de fatalidades obrigou as instâncias oficiais a extinguirem a prova. Que ressuscitou duas décadas depois, embora com outras caraterísticas.
A Mille Miglia foi reabilitada em 1977, mas passou de corrida de pura velocidade a uma prova de regularidade dedicada aos carros clássicos de outrora. A feroz competição deu lugar a um não menos fascinante evento para colecionadores e que se tornou gradualmente num acontecimento cultural. A capacidade cúbica e a prestação dos bólides não constituem requisitos para a participação: a única imposição prende-se com o ano de origem do veículo, que tem obrigatoriamente de se situar entre 1927 e 1957. O que significa que participam algumas máquinas deliciosamente lentas, sobretudo as que caminham para o século de vida!

Mas… chi va piano, va sano; chi va sano, va lontano — o aforismo popular transalpino equivalente ao nosso ‘devagar se vai ao longe’. E é mesmo devagar que melhor se degusta o percurso entre Brescia e Roma que desce a Península Itálica pelo lado do mar Adriático (costa leste) e que, no regresso, sobe pelo lado do mar Tirreno (costa oeste), embora também haja muitos bólides que, não obstante a sua ‘veterania’, são capazes de atingir elevadas velocidades. Mais depressa ou mais devagar, o certo é que as rodas e os volantes giram durante mil milhas que também constituem uma autêntica viagem no tempo — atravessando centros históricos e reservas naturais, cenários medievais, renascentistas, neoclássicos e modernos, a cidade e o campo, os lagos e as vinhas, os vales e as montanhas, a civilização laica e os monumentos religiosos.

Entre os veículos protagonistas, muitos são fornecidos pelos museus das grandes marcas — da Ferrari à Aston Martin, passando pela Bugatti. Os modelos raros ou míticos são às dúzias, mas alguns destacam-se mais. Como o Mercedes 300 SLR com que Stirling Moss venceu a edição de 1995 com o recorde absoluto de seis horas, 39 minutos e 43 segundos… exatamente 40 anos depois de o lendário piloto britânico ter ganhado no mesmo percurso com a média de 157,650 quilómetros por hora! Ao todo, houve 405 viaturas participantes, entre as quase mil que solicitaram inscrição em 2023, sendo dada prioridade aos carros das categorias Sport, Gran Turismo e Turismo (carros populares e protótipos de corrida) que participaram pelo menos numa das 24 edições realizadas entre 1927 e 1957. Também os tripulantes são muitas vezes notáveis, como voltou a ser o caso este ano: antigas lendas do volante; capitães da indústria e grandes financeiros; celebridades do mundo do espetáculo; aristocratas, políticos e militares. Até mestres relojoeiros, como o britânico Roger Smith! Sem esquecer um punhado de jornalistas…
Ao volante e de pendura

E esta é a parte do texto em que a narrativa passa para a primeira pessoa, porque só nessa condição se pode transmitir com propriedade as mil emoções associadas à participação efetiva na Mille Miglia.
Foi a primeira vez ao volante, mas já antes tinha cumprido o sonho de acompanhar in loco o ‘fascínio viajante’ da prova. Sendo formado em História da Arte e um admirador tanto da relojoaria mecânica como dos automóveis clássicos, estar dentro da Flecha Vermelha era um desejo antigo que ficou concretizado em 2006. Ficaram-me na memória a beleza natural das termas de Sirmione, localidade medieval que serviu de quartel-general à comitiva da Chopard; a adesão incondicional de toda a população de Brescia ao evento, com o desfilar das viaturas através das praças históricas da cidade até às verificações na Piazza della Loggia; o almoço com a top model Eva Herzigova; a conversa com o meu ídolo de infância Jacky Ickx, que então me questionou sobre os incêndios em Portugal; o bom gosto estético e gastronómico; e a partida noturna perante a loucura dos tifosi.

Desta vez, foi tudo muito mais intenso. A Chopard meteu-me num potente Ermini Sport 1100 de 1954 juntamente com um jornalista holandês especializado em automóveis, mas que faz regularmente incursões no domínio dos relógios. Atendendo à diferença de personalidades e tendo em conta a geografia da Península Itálica, até se poderia dizer que não batia a bota com a perdigota — mas lá nos demos bem e partilhámos uma experiência que fica para o resto das nossas vidas. Até porque gozámos ao máximo a corrida. Ou seja, dolce vita em detrimento da pontualidade: em vez de ficarmos subjugados à tirania dos controlos de tempo e das médias de velocidade, desfrutámos ao máximo das paisagens, da interação com os tifosi e do carro.

Devo confessar que nunca tinha ouvido falar do nome Ermini. Mas foi amor à primeira vista e uma paixão para sempre. Revelou ser robusto e potente, cheio de idiossincrasias: era possivelmente o mais ruidoso de todos e muitas vezes puxei pelo ronco do motor para deixar os tifosi em delírio; não tinha velocímetro, algo de bizarro; não tinha buzina, o que complicou alguma gestão de trânsito; não tinha travão de mão, que teria sido muito útil nalgumas paragens em subidas; não tinha indicador da gasolina, mas o enorme tanque de 90 litros afastou algumas das nossas preocupações. Não tinha cintos de segurança, mas nunca nos sentimos em perigo; não tinha capota, mas trazíamos um guarda-sol/chuva para qualquer eventualidade meteorológica; a parte da carrosseria atrás dos bancos era aberta, o que fez com que o meu belo blusão Mille Miglia comprado em 2006 desaparecesse para sempre. Foi uma extraordinária máquina de bronzear e sobretudo um fiel companheiro de estrada que nunca nos falhou, enquanto carros de marcas muito mais conhecidas foram parando ou necessitando de assistência.

A etapa mais difícil foi a terceira, entre Roma e Parma: saímos do hotel às 6h40 e chegamos ao destino às 23h; pelo meio, uma paragem para almoço em Siena com estacionamento na espetacular Piazza del Campo — e falhámos um posto de controlo por um pequeno desvio de 2 km. A canícula da manhã da quarta etapa não foi fácil de gerir, mas a chegada ao Duomo de Milão eclipsou qualquer desconforto. Entre as várias populações, vilas e cidades atravessadas, a que mais me impressionou foi Bergamo, lá nas alturas, durante a quinta e última etapa. Puxámos muito pelo Ermini Sport 1100 e cometemos todo o tipo possível de infrações ao código da estrada, muitas vezes com o apoio dos cerca de 1000 polícias de mota que acompanharam o evento. Ainda bem que só soubemos que valia cerca de 800.000 euros lá mais para o fim da corrida… só foram feitos três pelo construtor florentino e a raridade paga-se bem!

Além do novo posicionamento no calendário (passou de maio para junho), a edição deste ano da Mille Miglia teve a estreia de Milão no trajeto — resultando isso na passagem de quatro para cinco jornadas e da ultrapassagem das mil milhas propriamente ditas até aos mais de 2.000 quilómetros. Único arrependimento: não termos contado todos os campanários que vimos ao longo do trajeto. Foram muito mais de 100, a maior parte deles com relógios.
Também nós tivemos relógios que nos acompanharam na inesquecível aventura rodoviária. Tinha visto os quatro novos Mille Miglia Racing Chronograph na Watches and Wonders e afirmei então que considerava o modelo de mostrador avermelhado ‘Rosso Amarena’ como o melhor cronógrafo Mille Miglia de sempre… e foi esse que me foi atribuído, tendo alternado com o ‘Nero Corsa’ do meu copiloto e com o modelo comemorativo de 1997 (70.º aniversário) emprestado por um amigo.

Claro que aproveitei para tirar wristshots e fazer vídeos, enquanto conduzia sem receio de qualquer multa; também andamos em contramão e passámos sinais vermelhos ou linhas contínuas impunemente: fomos os reis da estrada. E aí está a grande diferença. Toda a gente recebeu a comitiva da Mille Miglia de braços abertos e com enorme entusiasmo.
Não houve protestos contra as emissões poluentes de motores fumarentos ou má vontade para com brinquedos motorizados que valem fortunas. Tantas vezes saudei espetadores que até em sofás viam os carros passar à noite ou me aproximei da beira da estrada para trocar high-fives com os tifosi. Os italianos têm o culto da velocidade e encaram as belas máquinas como obras-primas que fazem parte da história. E a Mille Miglia é um autêntico museu ambulante.
O fator Chopard

A Mille Miglia tem tido tem tido uma parceria tão feliz com a Chopard como a secular relação intrínseca entre os automóveis e os relógios — os brinquedos e as joias culturalmente aceites para serem exibidas pelo homem. Desde 1988, a Chopard, graças à paixão da família Scheufele por viaturas clássicas, é a principal patrocinadora da corrida, e, desde esse ano, estabeleceu-se uma coleção sob a designação Mille Miglia e com o logótipo da célebre Freccia Rossa. Cada edição da prova é comemorada com um novo modelo — o que faz dos relógios Chopard Mille Miglia peças muito procuradas por colecionadores.

Em 1998, foi adotada pela primeira vez a emblemática bracelete de borracha reminiscente dos pneus Dunlop Racing dos anos 60, e, desde 1997, os calibres dos relógios são exclusivamente mecânicos. A tradicional arte relojoeira refletida nesses movimentos automáticos e a bracelete de borracha simbolizam, de maneira ideal, os progressos da indústria automóvel e da técnica de medir o tempo; a estilização tornou-se tão feliz que o conceito Mille Miglia estendeu-se a uma alargada linha de acessórios que inclui canetas, botões de punho e marroquinaria. «Um carro antigo dá-nos a melhor das experiências de condução; um carro moderno bloqueia todas as sensações que costumávamos ter porque não sentimos a estrada e a qualidade de condução deixa de ser importante», salienta Karl-Friedrich Scheufele. «É por isso que a Chopard foi pioneira em atividades relacionadas com viaturas clássicas».

A glamorosa associação da Chopard à corrida da Flecha Vermelha não se faz através do mero patrocínio ou da série especial de relógios. O patriarca Karl Scheufele competiu várias vezes; o atual CEO Karl-Friedrich Scheufele participou pela 34.ª vez em 35 anos, novamente com o campeão Jacky Ickx que esteve a seu lado logo na primeira vez, e num Mercedes-Benz 300 SL ‘Gullwing’ pertencente ao largo acervo automobilístico da família. A vitória foi arrebatada pela dupla italiana Andrea Vesco/Fabio Salvinelli num Alfa Romeo 6C 1750 SS Zagato de 1929, o que acaba por ser adequado: a Mille Miglia é mesmo uma ode a Itália.

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