Sentido de estilo, técnica apurada: com o Monsieur, a Chanel ascendeu a um novo patamar — não só porque foi um dos mais elogiados relógios desvelados no ano em que foi lançado, mas também porque personificou uma nova estratégia da maison parisiense no mercado relojoeiro.
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A lendária Gabrielle ‘Coco’ Chanel nunca receou estar à frente do seu tempo. Construiu um império no mundo da moda que se mantém extremamente influente — e que, a partir do reflorescer da relojoaria mecânica na passagem do milénio, também passou a deixar a sua marca de maneira significativa no universo relojoeiro. O investimento mais sério no setor já tinha começado em 1987, com o Première, um modelo minimalista feminino que tem ganhado sólidas ramificações. Mas foi sobretudo com o emblemático J12 em cerâmica branca que a Chanel logrou fazer a diferença a partir de 2003.
Desde então, basta acompanhar atentamente as criações que a Chanel apresenta anualmente em Baselworld para constatar a extrema qualidade de cada um dos seus produtos, da alta-joalharia à alta-relojoaria, passando pelos exemplares de métiers d’art (as peças Mademoiselle Privé são autênticas obras-primas) e até pelos modelos regulares da coleção. Mas o Monsieur de Chanel surgiu de modo inesperado em 2016 e impressionou de maneira global — não propriamente porque apresentou algo completamente novo, mas pela sua qualidade intrínseca e palpável, pela arquitetura estabelecida, pelas soluções de acabamentos, pela técnica apurada, pela masculinidade.
A Chanel apresentou o Monsieur de Chanel como o seu primeiro relógio exclusivamente para homem, embora, no seu catálogo, seja fácil encontrar relógios que são claramente adaptados a pulsos masculinos. Como o J12 Marine Diver ou o J12 Chromatic, mesmo podendo ser considerados variantes do J12 — o tal que revolucionou o mercado e que se impôs como um relógio verdadeiramente unissexo, quer na versão preta quer na branca. No âmbito da alta-relojoaria, convém também não esquecer (e houve muitos analistas a esquecerem-se) essa obra-prima complexa e onerosa que foi o J12 Rétrograde Mystérieuse Tourbillon, uma edição ultralimitada de 2010 que foi idealizada pelo mestre Giulio Papi para pulsos masculinos.
O Monsieur de Chanel não foi lançado numa edição tão limitada, mas é suficientemente exclusivo, com uma tiragem de apenas 300 peças (150 em ouro branco e 150 no chamado ouro bege, caraterístico da marca) e um preço à volta dos 35 mil euros. É verdade que não teve por base qualquer modelo unissexo e até pode ser usado num bom pulso feminino, devido aos seus 40 mm de diâmetro por 10 mm de espessura, mas é claramente um relógio masculino — sobretudo um relógio urbano, sofisticado, de look decididamente parisiense. Sabe-se que a Chanel é dona da G&F Châtelain (empresa produtora de braceletes e caixas para marcas de alta-relojoaria, especialista em cerâmica) e estende os seus tentáculos até duas companhias exclusivamente relojoeiras de excelente reputação — com uma participação no capital da Bell & Ross, também sediada em Paris, e da Romain Gauthier, estabelecida nesse histórico berço da alta-relojoaria suíça que é a Vallée de Joux. Mas o Monsieur é um relógio muito Chanel, completamente concebido ‘em casa’ na manufatura que a marca estabeleceu em La Chaux-de-Fonds; desde todos os pormenores de design (que incluem uma fonte tipográfica específica), até aos planos do calibre, o espírito ‘Chaneliano’ é evidente.
Chanel, sem dúvida
O mostrador, inequivocamente o rosto do tempo, é de um prateado opalino e apresenta três tipos de leitura distintos — um submostrador de pequenos segundos a partir do eixo central, ponteiro retrógrado dos minutos com sistema de segurança num arco superior ao normal e a opção por horas digitais saltantes (para reforçar a importância dos algarismos para a marca, como o 5 do célebre perfume criado em 1921), numa janela em formato octogonal (um piscar de olho à tampa do perfume Nº 5 e à própria Place Vendôme) na parte inferior. A particularidade retrógrada é diferente da de outros modelos do género, no sentido em que o ponteiro salta para trás mais do que 180 graus (no caso, um arco de 240 graus destinado a não afetar os segundos) e também pode ser ajustado para trás, dois aspetos que mostram bem o cuidado colocado no desenvolvimento técnico de um calibre que demorou cinco anos a operacionalizar.
Quando viramos o relógio, podemos apreciar convenientemente esse Calibre 1 de corda manual com uma frequência de 28.800 alternâncias/hora e formado por 170 componentes: é uma autêntica maravilha do modernismo, assente em motivos circulares e elaborado nos inevitáveis tons negros e antracite (a partir do mesmo tratamento ADLC, mas diferenciados pelos padrões de acabamento) que bem caraterizam a célebre griffe parisiense. A ponte circular central é uma solução completamente original e o balanço (ajustável) assume uma forma estrelada. Dois tambores gémeos de corda asseguram autonomia de funcionamento até três dias e a cabeça de leão identificativa da marca surge como selo de garantia que será sempre utilizado em futuras criações. Como o leão fetiche, vários detalhes foram inspirados em objetos marcantes do apartamento de Coco Chanel em Paris.
Sabendo-se que, a partir de 2011, a Chanel investiu parcialmente no atelier de Romain Gauthier — um protegido de Philippe Dufour que até já foi galardoado com o Grand Prix d’Horlogerie de Genève pelo seu Logical One —, poder-se-ia pensar que o Calibre 1 tinha sido concebido na Vallée de Joux, mas não; apenas algumas partes do movimento (rodagens) são feitas lá seguindo especificações da Chanel. O departamento criativo desenhou especificamente as rodas com dentes especiais, os parafusos e até os rubis em colaboração com a equipa de oito especialistas em construção e montagem de movimentos contratada pela Chanel.
Duas faces da moeda
«É como um relógio com duas faces», disse-nos Nicolas Beau, diretor do departamento relojoeiro da marca e na Chanel desde 1987. «De um lado, temos um design simples, limpo, em tons claros; do outro, temos um belo motor escurecido, o calibre com que sonhávamos». Duas faces distintas da mesma moeda que asseguram uma notável coerência ao produto final. «Mas o relógio nasceu a partir do movimento. Em 2011, resolvemos preparar-nos tecnicamente para poder controlar o nosso futuro na relojoaria, e houve uma conjugação de fatores favorável. Conheci Romain Gauthier e adquirimos uma parte minoritária na sua empresa, sem lhe propor quaisquer restrições. Estabelecemos uma base sólida de alta-relojoaria e lançámo-nos numa aventura de cinco anos.
E conseguimos combinar tradição e moda — é essa a magia da Chanel».
Sendo o Calibre 1 um movimento totalmente integrado, em princípio não poderá servir de base para outras variantes adicionais, mas a base estilística para uma coleção masculina alargada está definitivamente estabelecida e será implementada pela divisão Chanel Haute Horlogerie. «Não fazemos estudos de mercado, não fazemos marketing; os produtos vão surgir com naturalidade e dependem da criatividade dos nossos especialistas», assegura Nicolas Beau. A versão seguinte do Monsieur de Chanel com caixa em platina, disponível com mostrador branco ou mostrador negro, não se fez esperar e surgiu em 2017.
E em 2018, a marca aposta num mostrador em esmalte Grand Feu enfeitado com um Leão em ouro esculpido, um animal especialmente apreciado pela fundadora da marca Gabrielle Chanel enquanto símbolo de força, e que passou a ser adotado como emblema da casa.
Ao longo das duas últimas décadas, a melhor maneira de uma marca validar o seu estatuto relojoeiro foi atingindo o cobiçado estatuto de manufatura ou, pelo menos, com a apresentação de um movimento próprio (havendo algumas marcas que até compram ‘fora’ esses calibres que depois dizem ser de manufatura). E depois também há aquela perceção errada de que uma marca de moda não tem a mesma validação de outras que são puramente relojoeiras.
A Chanel já está muito para além disso, e o Monsieur de Chanel prova toda a sua competência, apesar de ser um relógio que merece ser julgado exclusivamente pelos seus méritos próprios — que são muitos.
Visite o site oficial da Chanel para mais informações.
Atualização do texto originalmente publicado na edição outono de 2016 da Espiral do Tempo, número 56.
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