Os fins e os meios

O fim de uma colecção é provavelmente um dos maiores pesadelos de qualquer coleccionador. Existem vários fins possíveis, sendo a venda dos relógios talvez o pior e a sua transmissão aos descendentes talvez o melhor. Pode ainda terminar quando se atinhe o seu objectivo: a aquisição da última peça. O que todos sabemos é que, por mais inquietante que isto seja, o fim de uma coleção é inevitável.


Artigo originalmente publicado no número 79 da Espiral do Tempo (verão 2022) 


O autor escreve seguindo o antigo acordo ortográfico.

Imagem de abertura: F.P. Journe Invenit et Fecit, Tourbillon Vertical | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Uma colecção completa

Pensemos, por exemplo, num coleccionador da linha Compax da Universal Genève. Sabe que tem um caminho difícil pela frente, tal como também sabe que existe um fim inevitável para esse caminho. A sua colecção termina quando atinge o seu objectivo. É sempre possível substituir relógios em pior estado por relógios em melhor estado, mas ao atingir o seu objectivo, pode dizer-se com segurança que a colecção está encerrada. Nesta situação, atinge-se um fim por realização de objectivos. Uma colecção finalizada, como esta, pode ser mantida na família, ou mesmo num museu, sobrevivendo dessa forma ao seu coleccionador. No dia da compra do seu primeiro Compax, o coleccionador pode ter pensado nos possíveis desfechos para o final da sua futura colecção. Esses seus pensamentos podem mesmo ter ajudado na decisão de iniciar a colecção. Pode até ter considerado a hipótese de deixar um bom legado aos seus filhos, ou de deixar uma forma de ser recordado, associada ao seu maior prazer. Ou então, pode simplesmente ter pensado que o seu grande objectivo seria a busca de novos relógios, mesmo que repetidos, e que apenas esse seria o fim da sua colecção. Como se se tratasse de um caminho em direcção ao horizonte inalcançável.

Harry Wiston and F.P. Journe Opus 1 Chronomètre à Résonance (cerca de 2001).
Harry Wiston and F.P. Journe Opus 1 Chronomètre à Résonance (cerca de 2001) | © Paulo Pires/Espiral do Tempo

Uma colecção eterna

A capacidade de regenerar continuamente a própria colecção pode atribuir-lhe um toque de eternidade. Vender os relógios em pior estado e substituí-los por outros em melhor estado pode ser uma tarefa aparentemente eterna. Imaginemos um coleccionador que apenas reúne as versões mais recentes da linha Professional da Rolex. Sempre que sai uma nova versão retira a anterior da sua colecção. Caso existisse, esta seria uma colecção bastante viva. A estagnação deste hábito de substituição de versões antigas por versões recentes criaria uma potencial colecção de relógios vintage relativos a um período muito específico. Neste caso, o fim de uma colecção de relógios recentes transforma-se numa outra de relógios vintage. Estamos perante uma regeneração de colecções. Por vezes as colecções são como organismos vivos que se transformam e recriam.

Quatro modelos associados ao patrocínio da equipa Luna Rossa na America's Cup de 2022.
Quatro modelos associados ao patrocínio da equipa Luna Rossa na America’s Cup de 2022. Cedidos por Torres Joalheiros | © Paulo Pires/Espiral do Tempo

Uma colecção sem coleccionador

Muitas colecções sobrevivem ao seu proprietário e tornam-se narradoras da sua história. É possível ver colecções de relógios em vários museus dedicados exclusivamente à relojoaria, como o Museu do Relógio, em Serpa e Évora, ou tendo a relojoaria como parte do espólio, como a Casa-Museu Medeiros e Almeida. Nestes casos, é possível perceber a linha condutora da colecção, ou o estilo e o estado dos relógios. Estes, entre outros aspectos, permitem-nos compreender a história de quem os reuniu. As colecções podem, desta forma, sobreviver aos seus proprietários e contar a sua história. Continuam a estar vivas, embora congeladas no tempo, sem capacidade de renovação ou de crescimento. Verifica-se, no entanto, por vezes, o ressuscitar de colecções cedidas a museus, basta que os conservadores se dediquem a acrescentar novas peças, tornando-se eles próprios nos novos coleccionadores. É claro que essa será sempre uma tarefa delicada que implica um conhecimento profundo do coleccionador original. O fim de uma colecção não terá portanto de ser permanente. Numa menor escala, os filhos dos coleccionadores podem eles próprios continuar a alimentar a colecção. Também é possível comprar uma que nos é alheia e continuá-la por nós próprios. Uma vez criadas, as colecções são organismos com vitalidade suficiente para se adaptarem a novos membros.

Uma colecção à venda

Talvez o desfecho menos desejado para uma colecção por parte de quem a criou seja a sua venda. Nesta situação, resta-nos pensar que tudo se fez pelo prazer da caminhada e não pelo alcance da meta. Existem várias formas de alienar uma colecção através da venda dos relógios individualmente. Uma das mais escolhidas é o leilão de todas as peças. Por mais infeliz que possa parecer este desfecho, trata-se por vezes da única solução para outros coleccionadores adquirirem relógios difíceis de encontrar de outra forma. Os leilões são um mundo cada vez mais procurado. Funcionam quase como um desporto: existe um árbitro que usa um martelo em vez de um apito, cada jogador tem um número, ou se ganha ou se perde e até têm direito a épocas e tudo. Para alguns tipos de colecções se manterem em boa forma, é recomendável que os coleccionadores pratiquem este desporto. Claro que existem muitas outras formas de vender relógios, mas todas menos desportivas. O fim de uma colecção pode cumprir vários propósitos. Fazer face a dificuldades económicas é um deles. É também possível vender toda uma colecção para construir uma outra completamente diferente. Afinal de contas, os coleccionadores, esses sim, são organismos vivos em constante crescimento. É portanto expectável que nem sempre a colecção e o coleccionador partilhem o mesmo ritmo e a mesma direcção de crescimento.

H. Moser & Cie. Pioneer Cylindrical Tourbillon Skeleton no pulso (2022)
H. Moser & Cie. Pioneer Cylindrical Tourbillon Skeleton (2022) | © Paulo Pires/Espiral do Tempo

A lei de Lavoisier

Qualquer coleccionador sabe que os relógios têm uma tendência natural para circularem entre donos, e que uma colecção acontece apenas quando conseguimos deter um conjunto de relógios. Uma colecção é a interrupção temporária do movimento natural dos relógios entre donos. O seu fim é sempre inevitável, contudo, também sabemos que em relojoaria nada se perde, tudo se transforma. 

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