Rebecca Struthers é a primeira pessoa na história da relojoaria a doutorar-se na área que escolheu — uma opção feita bem cedo, aos 17 anos, e que manteve até se tornar numa das maiores especialistas em relojoaria do mundo. Com o seu marido, gere a Struthers Watchmakers, um pequeno atelier em Birmingham que parece uma viagem no tempo: concebe peças únicas de raiz e recupera obras-primas complicadas. Como se fazia antigamente.
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[Perfil originalmente publicado no número 68 da Espiral do Tempo (outono 2019)]
Não é apenas Rebecca Struthers. É Doutora Rebecca Struthers e a lista de habilitações e galardões que consta do seu currículo é simplesmente estelar, provavelmente a mais rica do universo relojoeiro. Iniciou o seu percurso académico quando tinha somente 17 anos e estava mais focada na vertente joalheira com a criação de peças articuladas. A combinação da sua paixão pelo artesanato com o fascínio pela ciência fê-la seguir mestrados em História da Arte e em Design aplicados à relojoaria antiga.
Tendo em conta as suas elevadas qualificações e a predominância masculina no mundo relojoeiro, quase se pode dizer que Rebecca Struthers é uma espécie de Marie Curie dos relógios. E, tal como a cientista que foi pioneira na investigação em torno da radioatividade, também ela trabalha de muito perto com o marido: fundou a Struthers Watchmakers com Craig em 2017 e, desde então, a sua intervenção no setor tem sido cada vez mais relevante, tendo sido ainda membro do júri do Grand Prix d’Horlogerie de Genève. É também assídua nos mais altos círculos relojoeiros e, entre a Dubai Watch Week e o Horology Forum de Londres, concedeu-nos entrevistas que serviram de base a este perfil.
Educação e sexismo
Enquanto a minha mãe trabalhava fora, eu era educada por um pai doméstico — algo revolucionário nos anos 80. Ter sido educada por um homem ajudou a preparar-me para uma indústria dominada por homens. A pior coisa que tenho de fazer é lutar frequentemente contra o sexismo, que esteve presente em todos os empregos que tive. As pessoas não esperam ver uma mulher relojoeira. Gosto de homens, fui educada por um e devo a muitos as oportunidades que tive na vida, sem esquecer o meu marido e colega relojoeiro Craig, que é a minha âncora. Mas dizerem-me que um atelier não é lugar para mulheres só me deu mais motivação para provar que essas pessoas estavam erradas. Li um relatório com a estimativa de que há apenas 5% de mulheres entre os relojoeiros de todo o mundo; sempre houve mulheres na indústria, embora, habitualmente, confinadas às áreas menos especializadas da produção. Mas as coisas começam a mudar.
Conjugação da arte e ciência
Há a noção de que as artes e as ciências são coisas tão distintas que nunca se podem misturar. Sempre nutri um amor idêntico por ambas as áreas. Nunca tinha ouvido falar de relojoaria até que a descobri, aos 17 anos, quando estava na universidade a estudar para ser joalheira. E foi aí que começou o interesse, espicaçado pelos estudantes de relojoaria. Senti que era o que eu queria. Percebi que havia uma carreira onde eu poderia ser artista, engenheira e designer ao mesmo tempo. O meu projeto final foi um planetário em que os planetas eram joias que podiam ser retiradas e usadas como peças individuais de joalharia, podendo depois voltar a ser colocadas no planetário.
Perda da hegemonia
No século XVII, era Inglaterra, e Londres em particular, o sítio onde se encontravam os mais famosos relojoeiros e os relógios feitos nesta capital tinham um valor acrescentado. A meio desse século começaram a surgir peças de qualidade claramente inferior, num estilo completamente diferente do que o que se fazia em Londres e assinadas com nomes ingleses dos quais não há registo de que pertencessem a relojoeiros que tenham existido. Estudei, de modo forense, um grupo de 30 desses relógios pertencentes ao British Museum e fui atrás das suas origens. A minha pesquisa antecipou em cerca de 100 anos a data habitualmente atribuída ao nascimento da produção relojoeira em massa. Aparentemente, esses relógios apresentados como sendo ingleses tiveram origem em manufaturas de localidades situadas ao longo da fronteira franco-helvética onde, atualmente, estão algumas das mais famosas marcas da relojoaria. A minha tese aborda a produção, o comércio e a disseminação de relógios de mercado paralelo na Europa, entre 1750 e 1820. A Inglaterra perdeu a hegemonia devido às muitas guerras em que esteve envolvida, à falta de investimento e por não apostar na produção em massa, enquanto a indústria relojoeira suíça foi, de várias maneiras, fundada e financiada para produzir imitações de relógios ingleses. Ironicamente, um dos maiores desafios que a indústria relojoeira suíça enfrenta atualmente é o das imitações oriundas do continente asiático, uma ameaça que afeta o mercado dos relógios de luxo em biliões de euros.
Era de ouro
O Craig e eu praticámos o restauro de peças antigas antes de começarmos a fazer os nossos próprios relógios. Ao trabalharmos em relógios representativos de vários séculos de relojoaria, consideramos que a relojoaria inglesa entre 1850 e 1950 representa o que de melhor existiu no que diz respeito a materiais, qualidade e design. Os relógios eram feitos para ser reparados e projetados para durarem muito.
Ferramentas amigas
Virtualmente, todo o nosso equipamento foi concebido antes de 1950, e muitos dos utensílios são de meados do século XIX. Demorámos muito tempo a encontrar o nosso equipamento e estabelecer o nosso atelier. Muito desse material vem de leilões e de vendas de relojoeiros reformados, mas também de garagens onde os utensílios permaneceram guardados durante muito tempo. Restauramos os utensílios e as ferramentas, tal como o fazemos com os relógios. Vemos os utensílios como parte da equipa e até lhes damos nomes.
Emancipação feminina
Hoje em dia, as mulheres têm cargos profissionais mais relevantes e controlam melhor do que nunca as suas finanças. Historicamente, muitos relógios de senhora foram mal idealizados devido ao facto de o foco residir na sua estética e não num possível bom investimento. Agora, as mulheres já compram os seus próprios relógios. E têm em conta o design e o valor para o futuro, tanto como qualquer homem. O que, por sua vez, tem fomentado mais inovação do que nunca na relojoaria feminina. Já não era sem tempo, uma vez que, quando foram inventados, os relógios de pulso eram vistos como um acessório de moda feminina. Os homens só os começaram a usar no pulso cerca de 100 anos depois de terem sido inventados.
Do passado ao futuro
Achamos que os melhores designs já apareceram. Por isso, inspiramo-nos no passado para o apresentar no nosso trabalho contemporâneo. Sendo relojoeiros, não temos propriamente uma estratégia de marketing — por isso, o que fazemos é fruto do que sabemos fazer e do que gostamos. Temos sorte em ter clientes que partilham os nossos valores. Cada relógio nosso pode levar de seis meses a dois anos a ser feito, por isso desenvolvemos um relacionamento próximo com os clientes e eles têm a oportunidade de participar no processo e acrescentar detalhes pessoais ao relógio. No final, quando entregamos o relógio, é como um filho que sai de casa: é um momento de orgulho, mas sabemos que vamos ter saudades. As pessoas que compram relojoaria fina financiam não só a continuidade de uma arte ancestral, mas também o trabalho de artesãos gravadores, joalheiros e muitos ofícios a eles associados. Financiam aprendizes, escolas e educação. E acabam por ter um papel relevante na preservação de uma arte artesanal.
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