É um dos documentários que mais me fascinaram quando era bastante mais novo, e que tornaram inesquecível aquela cena em que Sir David Attenborough, escondido atrás de um arbusto, descrevia em sussurros a vida animal que decorria a poucos metros, ignorando a presença do celebrado naturalista. Algumas cenas dos 13 episódios de a Vida na Terra, rodada em 1979, vieram-me à memória durante o fim de semana passado quando tive o privilégio de, mais uma vez, estar na sala, em Genebra, durante os três leilões de primavera das mais importantes casas da atualidade.
Ao longo de três dias, a Phillips (em parceria com a Bacs & Russo), no Hotel la Reserve, a Christie’s, no Four Seasons Hotel des Bergues, e a Sotheby´s, no Mandarin Oriental, degladiaram-se pela atenção dos mais importantes colecionadores e intermediários, propondo alguns dos mais relevantes exemplares de relojoaria vintage dos últimos anos. Um verdadeiro espetáculo a que assisti, assumindo o clássico papel de um Sir David Attenborough, oculto por entre a vegetação em silenciosa e respeitosa observação da fauna local.
Longe vão os anos em que, nos salões dos principais leiloeiros de relojoaria em Londres, Nova Iorque e Genebra, os colecionadores estavam claramente em maioria e o processo de licitar esta ou aquela peça era uma tarefa de distintos cavalheiros, cujo gosto pela relojoaria era, muitas vezes, uma tradição e herança de família. Consequentemente, a avaliação das peças ambicionadas privilegiava em boa parte a sua essência mecânica, sendo a estética avaliada apenas como uma consequência natural da arte do relojoeiro.
Hoje, e usando uma expressão redundante com alguma piada, o cenário é diametralmente oposto! O intermediário está hoje em maioria assinalável na sala e fala predominantemente italiano, independentemente de estar sediado em Milão, Lugano, Miami, Nova Iorque ou Los Angeles, e veste-se num estilo smart casual de acordo com a melhor e mais recente moda de Milão. Lá fora deixa um parque automóvel de fazer inveja a qualquer um, onde abundam os logotipos da Ferrari, Aston Martin, Lamborghini ou Maserati, destacando-se alguns exemplares históricos de gosto indiscutível que fariam mesmo as delícias de alguns museus.
Os momentos que antecedem o início de cada leilão são o cenário de uma coreografia notável. Estes intermediários, ou ‘dealers’, muitas vezes acompanhados por autênticas equipas de apoio, distribuem-se estrategicamente ao longo da sala marcando lugares não sem antes deixar de observar qual a posição que este ou aquele adversário irá assumir para a batalha de lances que se avizinha. A noção de concorreria é palpável, e, no entanto, todos se conhecem demonstrando grande afeto pelos seus colegas com beijos na face e abraços efusivos num ambiente verdadeiramente familiar.
Iniciado o leilão, os lances sucedem-se a bom ritmo, alternando peças que acabam por ser arrematadas por dezenas e mesmo centenas de milhares de francos suíços. Uma mão cheia de lotes ultrapassa os seis dígitos. Mas engane-se quem pensar que cada um destes atores se mantém fiel ao lugar pelo qual optou no início. Após licitarem esta ou aquela peça, previamente identificada no catálogo e estudada com grande detalhe dias e mesmo semanas antes do leilão, levantam-se discretamente e trocam de lugar como se se preparassem para um novo ato numa qualquer ópera de Verdi. A arte da camuflagem no seu melhor género é potenciada pela legião de auxiliares que, estrategicamente posicionados, se viram discretamente para observar as movimentações dos restantes clãs atrás deles. Durante o leilão, a comunicação é intensa, seja pelo método de segregar ao ouvido ou pelo uso de telemóveis que, muitas vezes, extravasa o simples SMS para assumir a forma de autênticas conferências telefónicas, sempre sussurradas e dificilmente percetíveis quanto ao seu conteúdo.
Mais notável, ainda, parece ser o acordo tácito existente entre alguns dos mais importantes destes protagonistas para as peças mais relevantes. Se um licita um determinado modelo de grande importância, o outro abstém-se alternando-se mais tarde este processo para a peça de eleição que se segue. É indiscutível que este aparente pacto estratégico poupa aos visados dezenas, senão centenas de milhares de francos suíços, que teriam de despender a mais se licitassem uns contra os outros. Aqui, é a sobrevivência da espécie que se faz notar.
E, apesar deste mercantilismo quase profano para o purista, este grupo de dealers profissionais, por cujas mãos passaram, no passado recente, a maioria das mais importantes referências vintage da Patek Philippe, Rolex ou Vacheron Constantin, é possuidor de uma paixão e de um conhecimento assinalável. Capazes de identificar em segundos um modelo obscuro ou um componente não original e corrigir o perito mais tarimbado da Phillips, Christie’s ou Sotheby’s, são eles próprios uma montra do setor ao usar no pulso os mais raros exemplares dos melhores nomes da relojoaria suíça. Newman, Killy, Ref. 1518 ou Ref. 2499 são apenas exemplos de alcunhas de linhas e referências importantes que parecem ter saltado diretamente dos catálogos dos leiloeiros para os seus pulsos.
O mercado tem vindo a apoiar esta ascensão fulgurante dos vintage com recordes sucessivos a serem batidos, e os leilões do passado fim de semana vieram mais uma vez confirmar esta avaliação. Mas o êxito destes dealers, que são eles próprios uma fonte de dinamização do mercado, não poderia subsistir sem que do outro lado houvesse um consumidor e colecionador cada vez mais ávido de peças relevantes e com história, cujo número e interesse parece crescer de forma proporcional à queda de um certo segmento de relojoaria contemporânea, vítima de abusos sucessivos praticados ao longo dos últimos 10 anos.
E, com tudo isto, falta saber quais foram as deceções e as estrelas desta última sessão de leilões de Genebra, onde se bateram diversos recordes do mundo, alguns a raiar mesmo o absurdo. Nada mais fácil – se, por um lado, pode saber mais aqui no site nos artigos recomendados desta semana, por outro lado, há que estar atento à próxima edição da Espiral do Tempo onde poderá ler o meu relatório sobre essas e outras maravilhas deste fascinante mundo da alta-relojoaria.
É que, como diria Sir Attenborough, “nada no mundo natural faz sentido – exceto se visto à luz da evolução”.
—