Em Genebra | Foi apresentado com pompa e circunstância, apontado como novo ícone da relojoaria contemporânea e descrito como protagonista de uma nova etapa na vida da Audemars Piguet. Pela própria marca. Já grande parte da crítica e sobretudo a esmagadora maioria dos aficionados crucificaram o novo Code 11.59. Aqui fica uma opinião sobre a mais recente vedeta da manufatura de Le Brassus e uma análise à polémica que a envolve.
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Li ‘ O Retrato de Dorian Gray’ quando era muito jovem. Tão jovem que, passadas mais de três décadas, tenho atualmente apenas uma vaga ideia do enredo. Mas lembrei-me do romance de Oscar Wilde ao ser confrontado com a controversa nova coleção da Audemars Piguet apresentada no recente Salon International de la Haute Horlogerie – a tal que é originalmente denominada Code 11.59 e que podemos considerar adequadamente batizada, tendo em conta que foi simbolicamente apresentada às 11.59 (ou seja, na véspera do arranque do SIHH) e que ao bater da meia-noite já se havia transformado numa abóbora.
Não vou voltar a ler o livro. Nem sequer dar uma vista de olhos à sinopse para não alterar em nada o rumo deste artigo de opinião, que já estava traçado na minha mente desde o meu primeiro contacto com o Code 11.59. Segundo o que retive do aclamado romance, Dorian Gray fica impressionado por uma brilhante atriz que viu atuar e depois apaixonam-se perdidamente os dois; querendo apresentá-la aos seus amigos, regressa ao teatro para que todos vissem o seu enorme talento. Mas aconteceu algo inesperado: querendo impressionar o novo namorado, a atriz exagera na sua atuação – porque, conhecendo finalmente o verdadeiro amor, deixou de conseguir representá-lo em palco tão bem como antes. Perante tanto exagero e teatralidade, Dorian Gray desapaixona-se e deixa-a. A atriz suicida-se e os irmãos tentam vingá-la. E qual a ligação da trama ao Code 11.59? Não a beleza eterna de Dorian Gray, mas o exagero fatal da atriz. Querendo obrigatoriamente criar um novo ícone da relojoaria que pudesse estar à altura da família Royal Oak e do longo historial da companhia relojoeira fundada por Jules Louis Audemars e Edward Auguste Piguet na Vallée de Joux em 1875, a Audemars Piguet exagerou… e saiu-se com um produto que acabou fustigado pela crítica e sobretudo ridicularizado na internet.
Algum pretensiosismo também não ajudou em nada a missão da manufatura de Le Brassus, que apresentou o Code 11.59 como um ícone absoluto da relojoaria. De grandes e pomposas tiradas de marketing está o público farto – e a imprensa especializada ainda mais. Depois da tremenda reação negativa que se seguiu à apresentação online e do festim promovido por contas como o Shameonwrist e Wristbusters no Instagram, era imperativo um contacto direto com o produto para aferir o seu real valor e verificar se as imagens colocadas a circular não seriam enganadoras. Por isso, mesmo tendo eu imediatamente atribuído o jocoso cognome de Code Cinderelo (a tal transformação em abóbora…) à ‘obra-prima’, decidi ir para a apresentação despojado de qualquer preconceito e com a mente mais do que aberta para poder dar ao dito cujo uma avaliação justa. Saí da apresentação convencido da sua qualidade global, mas com mais um aspeto negativo a juntar aos outros que entretanto já haviam sido divulgados: fraca legibilidade do mostrador em condições de luz reduzidas…
Atenção: que fique bem claro que o Code 11.59 é um produto de grande qualidade, desde os modelos mais simples até aos mais complicados – e foram apresentadas 13 referências no total, do tradicional três ponteiros/data até ao Supersonnerie. E se as variantes mais complexas aguentam razoavelmente bem o escrutínio e até são elogiadas, na minha opinião não se poderá dizer o mesmo dos modelos de base. Falta ali qualquer coisa no horas/minutos/segundos e no cronógrafo, um je ne sais quoi para que o Code 11.59 assumisse mesmo o convincente papel de relógio revolucionário que a Audemars Piguet queria que todos achassem que tivesse. A começar pelo facto de ser redondo, o que torna logo à partida maiores as dificuldades de impor um visual disruptivo… mas também a Audemars Piguet quis que fosse redondo, não só para que o Code 11.59 substituísse a linha clássica redonda Jules Audemars mas também porque no plano geométrico já a marca está muito bem servida com a icónica – ela sim – linha Royal Oak e a sua variante Royal Oak Offshore. Sem esquecer o Millennary, de formato oval. Há muito que a linha retangular Edward Piguet saiu da coleção…
A Audemars precisava mesmo de um novo relógio redondo, porque as vendas da linha Jules Audemars vinham caindo abruptamente e, para além disso, também queria escapar à ideia generalizada de que pouco mais faz do que descansar à sombra do inevitável Royal Oak. E arriscou muito, talvez não se apercebendo completamente de que estava numa posição difícil – que cheguei a descrever como uma no-win situation: se a nova coleção fosse demasiado clássica, a marca corria o risco de ser acusada de não sair da sua zona de conforto e de fazer o que já havia feito no passado; se fosse excessivamente ousada, poderia perder-se em aventuras conceptuais. Resultado? O discurso de muita gente passou do exagerado “só sabem fazer Royal Oaks” para um cruel “deviam restringir-se aos Royal Oaks”.
Não foi por falta de esforço. Primeiro que tudo, é forçoso assinalar que a nova coleção alberga novos calibres de elevado rendimento – incluindo o tão longamente aguardado novo calibre cronográfico automático integrado com roda de colunas e embraiagem vertical de que a Audemars Piguet precisava há demasiado tempo, embora não se trata de um movimento revolucionário ou inovador. Depois, o nível de acabamento é soberbo e digno da alta-relojoaria; também todos os detalhes e pormenores da arquitetura das caixas exclusivamente em ouro (rosa ou branco) foram explorados até ao extremo. Por exemplo, a secção média da caixa assume um interessante formato hexagonal que é um piscar de olho (ou um descuido Freudiano?) ao Royal Oak; a alternância entre o tratamento de superfície polido ou escovado com arestas destacadas é impressionante; as asas esqueletizadas são de difícil execução; o vidro assume um perfil nunca antes visto. O próprio CEO, o truculento François-Henry Bennahmias, foi peremptório: “clássico por natureza, não convencional através do design, o Code 11.59 tem tudo”. Acrescentando que a nova coleção exigiu o fabrico de novas ferramentas e novas técnicas para atingir o elevado grau de complexidade técnica e estética.
Para já, o octógono da secção média da caixa passa praticamente despercebido à vista – a não ser que se olhe para lá de perto. O complexo vidro de curvatura dupla acaba por parecer estranho visto de um certo ângulo, não proporcionando a “experiência visual ótica” da maneira tão positiva que a marca desejaria: o efeito até faz recordar o dos vidros dos relógios falsos. O logotipo, de uma tipografia anunciada como sendo única, é feito de finas camadas de ouro e acoplado ao mostrador através de um processo químico especial. E mesmo os mostradores mais simples – do relógio de três ponteiros e do cronógrafo – revelam muito cuidado para lá do aparente minimalismo, com a luneta extra-fina a dar protagonismo a uma parte levantada no perímetro com a indicação dos minutos e aos algarismos e bastões em ouro para as horas aplicados no plano inferior. Em ouro, obviamente. Mas que, em condições mais exigentes de luz, não oferecem grande legibilidade em sete de oito casos – ou seja, em três versões de três ponteiros com mostrador preto ou azul e em quatro versões de cronógrafo com mostrador preto ou azul. A exceção é o único modelo dotado de mostrador branco. Os restantes sete modelos distribuem-se entre dois turbilhões volantes automáticos, um turbilhão esqueletizado de maneira contemporânea (‘openworked’), um calendário perpétuo com mostrador em vidro aventurine com efeito de constelação e um repetidor de minutos supersonnerie.
Separadamente, todos os pormenores são impressionantes; em conjunto, na minha opinião, o resultado não é memorável. Com os modelos de base (três ponteiros, cronógrafo) na mão, a primeira ideia que surge é a de que houve uma equipa de instintos mais barrocos a idealizar a caixa e uma outra equipa de filosofia minimalista para o mostrador genérico. Ou seja, uma certa incongruência. Mas sobretudo subsiste a sensação de que o visual do mostrador, apesar de toda a complexidade por trás da sua execução, parece algo já visto em muitas marcas de preço barato. Sem esquecer que a abertura entre as quatro e as cinco horas para colocação da janela da data é particularmente infeliz – porque não fica nada bem. Sendo que a tipografia do disco da data também colide com o grafismo dos algarismos (que imediatamente fizeram recordar os da linha Polaris da Jaeger-LeCoultre, embora inspirados num modelo vintage da Audemars Piguet) dos modelos da versão base. Acho que a insistência veemente do staff da marca no SIHH em pedir aos jornalistas para não fotografarem o Code 11.59 de frente de modo a fazer sobressair lateralmente a sofisticada construção da caixa diz bem a que ponto as críticas, tanto as pertinentes como as alarves implementadas pelo efeito bola de neve tão caraterístico da internet, afetaram a Audemars Piguet…
Volto a frisar: apesar de tudo, apesar de um nome que até custa a dizer (imaginem-se a chegar a uma loja e a perguntar: “gostava de ver um Code Onze Cinquenta e Nove”), trata-se de um produto de grande qualidade. Não me importava nada de ter um, mas 25 mil euros pelo modelo simples é muito e se tivesse 40 mil euros para um cronógrafo iria seguramente procurar noutro lado. E atenção: nem estou de acordo com as críticas sobre a supostamente exagerada volumetria assente num diâmetro de 41 milímetros por 12,6 de espessura, que considero perfeitamente adequada e até versátil para um produto que se quer moderno e unissexo. Mas o Code 11.59 não tem o suficiente para assumir o protagonismo no catálogo da marca e sobretudo não será o desejado ícone capaz de conquistar o universo relojoeiro. Não o fez aquando da apresentação com pompa e circunstância, não o fará mais tarde… mesmo que eu preveja muitos ajustes e afinações num futuro próximo. Porque se é verdade que o Royal Oak original de 1972 foi ridicularizado pela crítica e um fracasso de vendas inicial ou que o primeiro Royal Oak Offshore de 1993 foi encarado como um monstro de reduzido sucesso comercial, em ambos os casos a forte personalidade geométrica e a ligação a Gerald Genta (com reinterpretação de Emmanuel Gueit na sua sequela radical…) foram determinantes para o seu êxito posterior. O Code 11.59 é ‘mais’ um relógio redondo… e hoje em dia é extremamente difícil transformar relógios redondos em designs de culto porque o panteão já está demasiado ocupado com tantos ícones clássicos circulares. Também é curioso constatar que o ícone que hoje em dia se confunde com a própria manufatura de Le Brassus, o Royal Oak, foi desenhado numa noite por um tarefeiro que nem sequer pertencia aos quadros da Audemars Piguet (Gerald Genta trabalhava para várias marcas e recebeu uma ninharia pelo trabalho) e não mostra qualquer ligação estilística ao passado da marca antes de 1972 nem a quaisquer outras coleções posteriores não integradas na rubrica Royal Oak/Royal Oak Offshore… até à secção média octogonal presente na caixa dos modelos da linha Code 11.59, uma coleção que teve um exército de técnicos e designers a trabalhar nela durante anos.
Finalmente, e para além do Retrato de Dorian Gray, outra alusão que me veio imediatamente à cabeça aquando do meu primeiro contacto com o Code 11.59 – aka Code Minuto Para A Meia Noite… – foi a do Quai de l’Île, um relógio pretensamente disruptivo lançado pela Vacheron Constantin há uma década. E só utilizo o termo ‘pretensamente’ porque o Quai de l’Île não ‘pegou’ na altura e continua a não ‘pegar’ mesmo após alterações no seu conceito, mas foi um produto de grande qualidade que muito admirei aquando da sua estreia – com uma caixa ligeiramente tonneau de concepção modular e espírito modernista. Um modelo rebelde e corajoso que não foi encarado com bons olhos pelos puristas da Vacheron Constantin e que hoje em dia surge domesticado e discreto no catálogo da manufatura genebrina, sem aquela aura urbana e escura que tinha antes aquando do seu lançamento. Uma pena.
O exemplo do Quai de l’Île vem juntar-se ao do Code 11.59 para provar até à saciedade que é mesmo muito difícil corresponder às expectativas que o lançamento de uma nova coleção por parte de uma histórica manufatura relojoeira tradicional sempre gera. Que é muito raro tirar da cartola um novo ícone para a própria marca, quanto mais para a relojoaria. E que no caso da Audemars Piguet se torna ainda mais difícil do que para a Vacheron Constantin, ou para a Patek Philippe. Precisamente devido à preponderância canibalizadora da linha Royal Oak. Basta dizer que os meus modelos preferidos entre as novidades da Audemars Piguet são Royal Oak. Nomeadamente aquele modelo em ouro branco com mostrador salmão que diziam ser exclusivo a 75 exemplares mas que parece ter deixado de ser limitado. Para compensar as parcas vendas do Code 11.59, diz-se… embora se trate de uma coleção de venda exclusiva nas boutiques da marca. A produção pretende-se seletiva, de cerca de 2000 exemplares por ano.
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