Um dos magníficos relojoeiros independentes, que agora me vem à memória, dá pelo nome de Konstantin Chaykin. Um virtuoso da micromecânica nascido em Leningrado com atelier em Moscovo. As conversas que temos todos os anos em Basileia, no stand da AHCI (a famosa Academia de Relojoeiros Criadores Independentes), são verdadeiramente hilariantes. Ele não fala nada além de Russo, e eu de Russo não entendo coisa nenhuma… Mesmo assim, entendemo-nos na perfeição. Afinal, a linguagem das rodas dentadas é uma espécie de Esperanto da relojoaria.
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Somos diariamente assoberbados com nomes de marcas célebres, umas centenárias, outras um pouco mais jovens. Nomes como Patek, Omega, Jaeger, Rolex, Audemars, Lange ou Breitling fazem hoje parte integrante do nosso léxico relojoeiro contemporâneo, como se compusessem uma qualquer cartilha do Bê-a-bá da relojoaria.
Mas, de certa forma, estes nomes, que representam casas de peso da cena relojoeira internacional, dificilmente conseguem fazer materializar no nosso subconsciente a imagem de um relojoeiro vivo – alguém que realmente criou pelo menos um das centenas de relógios que saem todos os meses das suas linhas de produção.
Bem sei que, no caso de nomes como F.P. Journe ou Franck Muller, a imagem dos fundadores, ainda bem vivos, contraria esta ideia. Mas apenas até certo ponto. Nas suas manufaturas, são, hoje, maioritariamente outros os que assumem a montagem dos relógios, apesar de, no caso de Journe, estar ele próprio envolvido na construção e no desenvolvimento da maioria dos protótipos.
Talvez seja por esta razão que aprecio tanto alguns relojoeiros independentes, com os quais tenho tido o privilégio de manter contacto durante pelo menos os últimos 25 anos. É que, quando nos é permitido apreciar um relógio e confrontá-lo com o seu verdadeiro criador, raramente ficamos dececionados. Antes pelo contrário, passamos a apreciar a criação que temos em mão, ou no pulso, de uma forma muito mais intensa e objetiva. É quase como que, por detrás de uma lente fotográfica, passássemos por um processo de focagem, onde todos os pormenores e detalhes se acabam por revelar.
E um destes magníficos relojoeiros independentes, que agora me vem à memória, dá pelo nome de Konstantin Chaykin. Um virtuoso da micromecânica nascido em Leningrado e atualmente com atelier em Moscovo. As conversas que temos todos os anos em Basileia, no stand da AHCI (a famosa Academia de Relojoeiros Criadores Independentes), são verdadeiramente hilariantes. Ele não fala nada além de Russo, e eu de Russo não entendo coisa nenhuma… (pior, só mesmo as conversas com o extraordinário Hajime Asaoka, onde o Japonês parece ser uma barreira ainda mais desafiante) Mesmo assim, entendemo-nos na perfeição. Afinal, a linguagem das rodas dentadas é uma espécie de Esperanto da relojoaria.
Na feira de Baselworld deste ano, ensaiámos novamente uma destas nossas peculiares conversas onde as mãos falam mais do que a boca. Apresentava-me a sua última criação, o Joker. Um relógio extremamente criativo, cujo preço na casa dos 7.000 euros, antes de impostos, lhe ia permitir sustentar a atividade ao longo do difícil ano que se avizinhava. Adorei o conceito, muito mais acessível do que tudo o que Chaykin tinha feito até então, mas ao mesmo tempo recordei-me de uma outra peça que me tinha marcado e que vira pela primeira vez em 2013.
O Cinema é um relógio incrível limitado a apenas 12 exemplares, e, tendo ele um em exposição na vitrina, não hesitei em pedir-lhe para o retirar de maneira a poder novamente estimular os meus sentidos às custas daquela criação. Ponho o relógio no pulso, respiro fundo, e lembro-me de perguntar quantas peças já tinha vendido. A resposta deixou-me atónito. Apenas duas…
Bem sei que os 58.000 euros não são coisa pouca, mas, ao mesmo tempo, assola-me a memória as dezenas de peças verdadeiramente irrelevantes que me passaram pelas mãos nessa mesma edição da feira de Basileia, e cujos preços excediam em muito o pedido por Konstantin Chaykin pelo Cinema. Senti-me como se estivesse perante um Van Gogh, ainda no período de vida do artista, quando passava fome e ninguém apreciava a sua arte.
O Cinema, de Konstantin Chaykin, é uma peça extraordinária que homenageia a vida e a obra de Edward Muybridge, o génio britânico que está por detrás de uma parte importante da história da fotografia e da sua transição para o cinema. O seu trabalho mais famoso foi produzido na primavera de 1872, quando tinha 42 anos e tira uma série de fotografias em sequência de um cavalo a galope chamado Occident. A origem deste trabalho estava no desafio de perceber se um equídeo em pleno galope tem ou não, em alguma altura, todas as quatro patas sem estar em contacto com o solo. A dúvida ficou inequivocamente esclarecida.
Nesta altura, Muybridge estudava a locomoção na sua mais pequena escala através da espantosa improbabilidade de um olho mecânico percepcionar o que o olho humano não podia. Nascia o zoopraxiscópio, e, com ele, o cinema (duas décadas antes dos irmãos Lumiére), que a par com a invenção, nessa mesma década, do telefone e do fonógrafo, empurravam a humanidade para um mundo novo e moderno, o mundo em que vivemos hoje. Muybridge ajudou-nos a entrar nessa nova era.
A homenagem de Chaykin a este génio do século XIX, funde um movimento de alta-relojoaria integralmente manufaturado com o princípio do zoopraxiscópio de Muybridge. Com o pressionar de um botão, 12 imagens em sequência do galopante Occident passam a cada 0,7 segundos sobre um óculo às 6 horas, produzindo a ilusão do movimento. A integração deste mecanismo no calibre de Chaykin, deu origem a um relógio com 37mm x 47mm, onde a espessura não ultrapassa os 12,2mm.
O KCM-01-0, o nome de código deste calibre de forma, é de uma beleza marcante, e o relógio onde se insere, de um equilíbrio estético notável. Razão mais do que suficiente para ter ficado chocado por, passados quatro anos, Chaykin ter vendido apenas duas peças.
Como é possível, pergunto-me, que hoje se olhe tanto para o acessório em detrimento do essencial, diminuindo em boa medida o que torna um relógio mecânico notável, singular e, acima de tudo, relevante.
Fico com a ideia de que é hoje necessário um sucessor de Muybridge capaz de inventar um novo tipo de zoopraxiscópio. Um que permita aos apreciadores da alta-relojoaria mecânica a capacidade, não de perscrutar as minudências do galope de um cavalo, mas antes revelar o que os seus olhos parecem não alcançar: a arte de um relojoeiro independente extraordinário e autodidata, que insiste em continuar a fazer relógios verdadeiramente notáveis.
Mesmo que muito poucos o percebam.
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