Independentes: movimento alternativo

EdT56 — As marcas e os criadores independentes têm vindo a afirmar-se entre as vedetas dos grandes certames relojoeiros ao longo da última década — desde Baselworld ao SalonQP. A partir deste ano, o Salon International de la Haute Horlogerie também lhes abriu as portas. Por que razão são eles tidos em alta estima pela crítica e pelos colecionadores? Como conseguem sobreviver numa conjuntura de recessão dos mercados relojoeiros? Aqui fica o ponto da situação.

Originalmente publicado na edição de outono de 2016 da Espiral do Tempo (número 56).

Independentes: Vianney Halter
Vianney Halter Deep Space Tourbillon © Vianney Halter
| imagem de abertura: MB&F Arachnophobia © MB&F

Dentro da sua especificidade, o universo da relojoaria mecânica acaba por revelar um certo ecletismo decorrente de séculos com progressos mais ou menos constantes e mesmo algumas fases de estagnação — que, numa perspetiva histórica recente, foram estruturais (as quase duas décadas de crise na sequência da revolução do quartzo nos anos 70) e conjunturais (associadas à flutuação económica). Geralmente, em quase todos os setores de atividade, mas sobretudo nas manifestações artísticas ou culturais, as fases unanimistas e os períodos de adversidade têm o condão de aguçar a arte e o engenho em busca de novas soluções que são prontamente apelidadas de anticonformistas, concetuais ou mesmo radicais.

Independentes: Konstantin Chaykin
Konstantin Chaykin Lunokhod Prime © Konstantin Chaykin

Não há muitos exemplos de mudança revolucionária melhores do que o fosbury flop. Nos Jogos Olímpicos de 1968, Dick Fosbury ganhou a medalha de ouro no salto em altura ao transpor a fasquia de costas, e, desde então, essa solução passou a ser a norma, contrastando com os anteriores saltos de tesoura ou de rotação do ventre — mas também o fosbury flop só se tornou possível porque, entretanto, as caixas de areia tinham sido substituídas por um colchão destinado a aparar melhor a queda do saltador. Na relojoaria tradicional, os princípios mecânicos não se alteraram muito desde os progressos estabelecidos por Abraham-Louis Breguet e o experimentalismo nos domínios das altas frequências ou dos campos magnéticos permaneceu restrito. Entretanto, a tendência para a formação de conglomerados de luxo caraterizados pela compra de marcas relojoeiras destinadas a beneficiar de sinergias dentro de um mesmo grupo e demasiado presas às leis do mercado também gerou uma reação semelhante à do cinema independente ou do rock alternativo.

Independentes: Urwerk
Urwerk UR105 TRex © Urwerk

Em França, o movimento Nouvelle Vague deu um novo olhar ao modo de filmar no final da década de 50. Na relojoaria suíça, a conjuntura favorável que se seguiu ao renascimento da indústria na década de 90 conduziu ao surgimento de marcas independentes com propostas alternativas, a partir da viragem do milénio, num fluxo variável afetado negativamente pela crise de 2008 e positivamente pela eclosão do mercado asiático entre 2008 e 2014. O momento económico atual, na sequência da desvalorização do rublo e das restrições chinesas, também ajudou a colocar a relojoaria independente numa encruzilhada.

A força da Academia

Independentes: Svend Andersen
Andersen Genève Perpetuel Secular Calender © Andersen Genève

Sempre houve relojoeiros independentes. Mestres que, por feitio ou qualquer outra razão, não quiseram ficar presos a marcas ou grupos e optaram por trabalhar por conta própria — algo de perfeitamente natural no mundo empresarial. Como também é normal a associação entre mestres do mesmo ofício: em 1985, Svend Andersen (que se tornou famosa pelas complicações eróticas) e Vincent Calabrese (muito conhecido pelo conceito Bridge, da Corum) fundaram a Académie Horlogère des Créateurs Indépendants (AHCI), que fomentou o salto para a ribalta de alguns dos maiores génios da indústria. François-Paul Journe será aquele que atualmente terá a marca própria mais estabelecida, e quase todos comercializam obras-primas com o seu nome no mostrador — do russo Konstantin Chaykin ao japonês Hajime Asaoka, do finlandês Kari Voutilainen ao inglês Peter Speake-Marin, do irlandês John McGonigle ao espanhol Aniceto Pita. Philippe Dufour e Vianney Halter são encarados como monstros sagrados. Felix Baumgartner fundou a Urwerk com Martin Frei, e quase todos os membros concebem especialidades para marcas mainstream mais ou menos importantes.

Independentes: Greubel Forsey
Greubel Forsey Double Balancier © Greubel Forsey

O espaço da Academia em Baselworld é sempre muito concorrido por colecionadores ou por aqueles que buscam algo de verdadeiramente especial. E, além dos membros, há todas as marcas e manufaturas independentes que estão filosoficamente associadas à AHCI, desde a Greubel Forsey à Grönefeld dos irmãos Bart e Tim. Para a história do contexto atual da relojoaria, tornou-se muito importante a iniciativa da Goldpfeil (uma marca de marroquinaria de luxo) que consistiu na apresentação de sete exemplares de sete criadores da AHCI, então designada por ‘Seven Masters’ (Vianney Halter, Felix Baumgartner & Martin Frei, Frank Jutzi, Vincent Calabrese, Svend Andersen, Antoine Preziuso, Bernard Lederer). A alta-relojoaria nunca mais foi a mesma.

Tempos de mudança

Independentes: MB&F
MB&F LM1 Silberstein © MB&F

A década de 90 assistiu a um fenómeno interessante: se antes era considerado um sacrilégio dar o próprio apelido a uma marca de alta-relojoaria, a prática passou a ser relutantemente aceite para depois se tornar perfeitamente natural. Gerald Genta aproveitou a sua fama de designer de modelos emblemáticos para grandes marcas, Alain Silberstein materializou em relógios o seu universo estético, Franck Muller associou-se a um investidor que transformou a marca no grupo relojoeiro que é hoje. E Michel Parmigiani seguiu um caminho parecido, mas Cédric Johner foi à falência. Entretanto, em 1998, Vianney Halter lançou o Antiqua Perpetual sob a influência do imaginário de Júlio Verne e H.G. Wells — para abrir uma nova via de folia criativa. Com a passagem do milénio, o novo veículo de comunicação que era a Internet ajudou a abrir novos horizontes e dar a conhecer outras marcas aos aficionados; surgia então uma tendência que batizei ‘alta-tecnorelojoaria’, neologismo inventado para caraterizar a nova moda dos mostradores esqueletizados e das formas modernas que passou a ser moda.

Independentes: Harry Winston
Harry Winston Opus XIV ©

Paralelamente, Max Büsser, na Harry Winston, desenvolveu o conceito Opus — com uma exorbitante ‘Talking Piece’ anual feita em associação com um reputado mestre relojoeiro. Felix Baumgartner e Martin Frei fundaram a Urwerk para dar à relojoaria mecânica uma dimensão futurística. A De Bethune surgiu em 2002 pela mão de Denis Flageollet para dar uma nova interpretação moderna ao estilo tradicional. A Richard Mille revolucionou o segmento de topo com as suas criações associadas ao universo automobilístico, surgindo depois a Cvstos com uma conotação engenheira igualmente modernista. A Linde Werdelin nasceu baseada num conceito original de relógio mecânico combinado com um módulo eletrónico. A Hautlence também procurou desbravar novos caminhos mecânicos. E Max Busser despediu-se para fundar a MB&F («F» de «Friends»), assente na experiência corporativista que tinha fomentado anteriormente com a participação de criadores amigos.

Independentes: Hautlence
Hautlence Vortex 02 © Hautlence

Paralelamente, começaram também a florescer ateliers capazes de criar grandes complicações e especialidades mecânicas para grandes companhias ou clientes específicos, como a Renaud & Papi, a BNB de Matthias Bouttet ou a Christophe Claret (entretanto transformada em marca própria).

Independentes: Christophe Claret
Christophe Claret Mecca © Christophe Claret

A ideia de surpreender o universo relojoeiro era comum a quase todos; a filosofia e a visão prendiam-se claramente com o desejo de quebrar as regras e chamar a si a criação de novos códigos — a nova relojoaria do século XXI exigia liberdade artística. Mesmo casas seculares como a Audemars Piguet (com o Royal Oak Concept) e a TAG Heuer (com o projeto V4 e com tudo o resto que se lhe seguiu no atelier de experimentação dirigido por Guy Sémon) se lançaram em vias alternativas. Mas as marcas tradicionais com uma base comercial segura podem sempre acertar agulhas quando o mercado muda; mesmo os independentes mais avessos aos condicionalismos comerciais só conseguem florescer verdadeiramente em ambiente económico favorável, ou então ficam condenados a manufaturar muito poucas peças para muito poucas pessoas.

O desafio da recessão

Independentes: De Bethune
De Bethune DB28 GS © De Bethune

Em tempo de recessão, o mercado retrai-se. E mesmo aqueles aficionados que têm dinheiro para se consolar com folias para o pulso ao alcance de muito poucos voltam a direcionar a atenção para nomes seguros como a Patek Philippe, a Vacheron Constantin, a Audemars Piguet, a Jaeger-LeCoultre e a Lange & Söhne — ou, no âmbito dos leilões e a um nível menos complicado, a Rolex na sua forma vintage. A volatilidade forçou colecionadores que antes compravam por puro prazer a pensar no valor de uma eventual revenda, tal como a crescente fama da alta-relojoaria começou a atrair investidores de outras áreas que começaram a comprar para depois vender; os recordes que se batem em leilões estão associados a isso.

Independentes: HYT
HYT Skull Maori © HYT

Atualmente, a relojoaria independente enfrenta essa mudança provocada pelo ‘investimento seguro’ e também pela pressão exercida pelos grandes grupos; sintomático é o facto de Ludovic Ballouard, que criou o Opus 13 para a Harry Winston (entretanto adquirida pelo Swatch Group), ter sido deixado à beira da falência por incumprimentos financeiros para com ele. Além disso, os custos de desenvolvimento de calibres próprios subiram exponencialmente. E o preço de exibição nas grandes feiras também, como acontece em Baselworld (no espaço denominado Palace) ou no SalonQP.

Independentes: Laurent Ferrier
Laurent Ferrier Galet Traveller Globe © Laurent Ferrier

Ironicamente, o Salon International de la Haute Horlogerie criou um Carré des Horlogers que passou a acolher, a partir deste ano e a um preço considerado ‘módico’, a Hautlence, Moser & Cie, De Bethune, HYT, Christophe Claret, MB&F, Urwerk, Laurent Ferrier e Kari Voutilainen — todas elas jovens marcas de nicho ou mesmo micromarcas galardoadas às quais se irão juntar a Gronefeld, a MCT (Montres Contemporaines du Temps), a Ressence, a Speake-Marin e a Romain Jérôme a partir de 2017.

Independentes: Kari Voutilainen
Kari Voutilainen GMT-6 © Kari Voutilainen

Várias companhias independentes estão a atravessar momentos difíceis, seja num patamar superior (valores acima dos 40 mil euros) ou numa fasquia entre os 10 mil e os 20 mil euros (que já pode ser considerada de luxo). Mas há outras que estão bem e recomendam-se. A austríaca Habring², de Maria e Richard Habring, tem ganhado prémios na categoria Petite Aiguille do Grand Prix d’Horlogerie de Genève, com criações à volta dos 5.000 euros; a SevenFriday tem surfado na onda de um novo mercado situado pouco acima dos 1.000 euros. E depois há a capacidade de gestão: o surpreendente conceito hidrorrelojoeiro da HYT atraiu um investimento de cerca de 30 milhões, enquanto Max Busser complementou a MB&F com a MAD Gallery; vários independentes proporcionam mesmo serviços de restauro, design, manufatura e montagem para outras marcas, incluindo as de maior renome — Andreas Strehler até se apresenta como ‘engenheiro para as marcas’ e ‘relojoeiro para poucos’! Kari Voutilainen adquiriu o arsenal necessário — incluindo uma máquina de guillochage — para produzir em casa os seus fabulosamente artísticos mostradores e fornecer ele próprio pequenas marcas (como a ‘feminina’ Fiona Kruger); Romain Gauthier, na Vallée de Joux, também se financiou com a associação a um potentado como a Chanel. A Akrivia, do jovem mestre Rexhep Rexhepi, recupera igualmente práticas artesanais do passado e tem sido uma das revelações dos últimos tempos na alta-relojoaria independente.

Independentes: Romain Gauthier
Romain Gauthier Logical One Secret Kakau höfke © Romain Gauthier

Os habituais prémios de final de ano voltarão (e voltaram mesmo, tendo em conta que este artigo foi publicado na nossa edição impressa no passado mês de outubro e, entretanto, já foram revelados os grandes vencedores das principais distinições relojoeiras)  a consagrar as marcas independentes que assinaram alguns dos melhores relógios desvelados em 2016 — seja no Grand Prix d’Horlogerie ou nas várias eleições de ‘Relógio do Ano’ por esse mundo fora. Mas a conjuntura económica até ao final da presente década e os efeitos provocados pela eclosão dos smartwatches ajudarão a filtrar as melhores e as que melhor se souberem adaptar às circunstâncias. ET_simb

Independentes: Speake-Marin
Speake-Marin Magister Vertical Double Tourbillon © Speake-Marin

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