Declínio de uma espécie?

Quando se passa a vida a lidar com relógios, é natural que o próprio tempo passe a ter uma influência sobre a forma como os olhamos e valorizamos. Este conjunto de peças que interage entre si, e cujo propósito mais básico é, afinal, apenas o de nos dar um ponto de referência ao longo da nossa existência diária, tem normalmente muito mais para revelar do que aparenta, tanto no sentido positivo como negativo.

Seja o leitor um exigente colecionador ou um descomprometido apreciador de relógios, o primeiro impacto dá-se indiscutivelmente ao nível do design. A aparência, forma e dimensões da caixa competem em atenção com a mancha de cor do mostrador formando uma dualidade que, nos casos de maior sucesso, permitem, quase de imediato, a identificação do nome que está por trás da sua concepção. Jaeger-LeCoultre, Officine Panerai, Rolex ou Franck Muller são exemplos dos nomes associados a designs capazes de se deixarem identificar à distância e que, com o tempo, passaram a merecer a designação de verdadeiros clássicos.

Franck Muller Vanguard, Jaeger-LeCoultre Duometre Spherotourbillon
Franck Muller Vanguard e o Jaeger-LeCoultre Duomètre Sphérotourbillon. Exemplos de uma estética personalizada. © Espiral do Tempo

Mas este é somente o primeiro escalão de um longo processo iniciático destinado a responder à questão, cada vez mais premente, sobre qual a relevância de um determinado relógio, tanto em termos artísticos como relojoeiros – dois âmbitos distintos, indiscutivelmente, mas que acabam por percorrer uma trajetória paralela que se cruza quando se pretende definir o valor de um relógio. Este aspeto essencial, que não tem necessariamente de estar apenas associado à sua vertente monetária, começa a revelar-se mal abrimos os olhos para ver o que realmente temos diante de nós. Um exercício para o qual se torna indispensável o recurso a uma boa lupa.

E é a aproximação dos sentidos que dá início à verdadeira viagem de descoberta da arte e ciência que tem acompanhado a relojoaria desde, pelo menos, os primeiros anos do século XIV. Na verdade, se o tacto nos permite apreciar a diversidade de formas da caixa com os seus ângulos polidos ou acetinados, assim como a ergonomia da coroa, entre o polegar e o indicador, apenas o olhar será capaz de penetrar a transparência do vidro de safira, o tal elemento aerófano destinado a proteger o mostrador que, frequentemente, compete em complexidade com o movimento mecânico que se esconde por baixo.

Dois pormenores, duas coroas. O Chopard L.U.C Time Traveler One World Time e o Tudor Black Bay.
Dois pormenores, duas coroas: o Chopard L.U.C Time Traveler One World Time e o Tudor Black Bay. © Espiral do Tempo
A portentosa caixa e o incrível detalhe de acabamento do Jaeger-LeCoultre Master Grande Tradition Grande Complication
A portentosa caixa e o incrível detalhe de acabamento do Jaeger-LeCoultre Master Grande Tradition Grande Complication. © Espiral do Tempo

Métiers d´Art

Nos últimos anos, a expressão artística mais palpável de muitas marcas tem-se apoiado precisamente no mostrador, criando um género de relógios que hoje se associa ao termo “Métiers d´Art”.

Artes fascinantes como o guilloché, a pintura em miniatura, o esmalte cloisonné ou champlevé, plique-à-jour, marqueterie ou gravação manual são algumas das centenas de artes manuais distintas passíveis de serem associadas à criação de um mostrador. Mas mesmo os exemplares mais convencionais podem apresentar níveis de perfeição surpreendentes quando observados à lupa, tendo em conta elementos como a numeração romana ou árabe ou os indexes aplicados à mão, um a um, e polidos até à perfeição que competem por atenção com grafismos de escala mínimos e exemplarmente decalcados para a superfície do mostrador.

Além disso, os mostradores em esmalte podem apresentar graus de qualidade distintos, como é o caso da técnica do Grand Feu, que, por sua vez, pode ser aprimorada com a difícil arte da aplicação de fondant, um cobertura translúcida que eleva o mostrador de esmalte para um outro patamar, principalmente se for conjugado com níveis distintos, como são o caso dos rebaixamentos destinados a indicações suplementares, nomeadamente, a reserva de marcha ou os totalizadores de um cronógrafo.

O profundo azul do Ulysse Nardin Marine Tourbillon.
O profundo azul do Ulysse Nardin Marine Tourbillon. © Espiral do Tempo

E, ainda neste plano, é impossível deixar de reparar nos ponteiros sem os quais nenhum mostrador cumpriria a sua função. Estampados, trabalhados a partir de uma só peça, pintados, polidos, facetados ou aquecidos em conjunto até uma temperatura de 290 graus para revelarem um azul profundo e homogéneo, a sua diversidade de formas e acabamentos é tão variada como a multiplicidade de modelos atualmente à disposição do público.

A partir de aqui, entra-se num outro domínio  – um campo de ação cuja génese remonta à própria origem da medição do tempo por meios mecânicos, num período da história em que os relógios não tinham mostrador e a sua principal função era a de assinalar de forma sonora a passagem das horas. Hoje, é frequente valorizar-se um movimento mecânico quase exclusivamente pelo nível de acabamentos que apresenta. Anglage, Côtes de Genève, Perlage ou Spéculaire (também conhecido como Black Polish) são, assim, termos que traduzem técnicas exigentes, aplicáveis tanto a platinas como a pontes ou componentes móveis de um movimento, e que, indiscutivelmente, contribuem, muitas vezes, para uma estética capaz de ofuscar a verdadeira essência de um movimento mecânico. Afinal, fará sentido que, em alguns casos, 70 por cento do custo e tempo de execução de um relógio caia apenas sobre o trabalho de decoração do movimento? É um facto que os suíços são exímios neste campo, mas o que diriam hoje mestres britânicos da cronometria como Arnold, Graham, Harrison, Mudge ou Vulliamy do status quo vigente?

Girard-Perregaux 1966 com o seu mostrador de acabamento sfumato.
Girard-Perregaux 1966 com o seu mostrador de acabamento sfumato. © Espiral do Tempo

A essência

É aqui que reside o verdadeiro desafio para o colecionador e apreciador. Arrisco a afirmar que, desde o desaparecimento de George Daniels, que a compreensão de um determinado mecanismo foi relegada para um lugar de retaguarda na forma como se aprecia a essência de um relógio. São cada vez menos os que hoje possuem uma visão clara do funcionamento e razão de ser de um escape coaxial. Quem será capaz de justificar a irrelevância técnica de um turbilhão num relógio de pulso, ou identificar num calibre com calendário perpétuo quais os componentes responsáveis pelo cumprimento das vicissitudes do calendário gregoriano? Quantos se terão dedicado a perceber que elementos distinguem um cronógrafo clássico de um cronógrafo rattrapante? Sabendo que a energia acumulada num tambor de corda alimenta um órgão regulador que impulsiona um trem de engrenagens, quem se terá dado ao trabalho de perceber como derivar deste último indicações adicionais como a equação do tempo, fases e idade da Lua ou a indicação do nascer e pôr-do-sol?

O coração do A. Lange & Söhne Triple Split (cronógrafo rattrapante) e do Jaeger-LeCoultre Grande Tradition Grande Complication (turbilhão com repetição de minutos).
O coração do A. Lange & Söhne Triple Split (cronógrafo rattrapante) e do Jaeger-LeCoultre Grande Tradition Grande Complication (turbilhão com repetição de minutos). © Espiral do Tempo

É este conhecimento, ou a vontade de o adquirir, que define aquilo que os ingleses apelidam de “Horologist”, ou seja, um género de apreciador irredutível na paixão que nutre pela arte e técnica da medição do tempo, a sua história e os seus protagonistas; um entusiasta capaz de olhar para um relógio e ver para além das aparências, distinguindo o que é verdadeiramente genuíno e, em última instância, merecedor da etiqueta de preço com que se faz acompanhar.

Talvez se esta ‘espécie’ não tivesse entrado em declínio, muitas marcas não teriam tido a oportunidade de cometer os erros e excessos que nos foi possível observar nos últimos anos…

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