Vidro de safira: o elemento aerófano

Edição impressa | A presença de um vidro de safira é hoje um dado adquirido na esmagadora maioria dos relógios suíços. Mas nem sempre foi assim. Saber quando, como e porquê irá certamente contribuir para que passemos a olhar
para este importante componente de uma outra forma.

Artigo originalmente publicado no número 59 da Espiral do Tempo (verão 2017).

O elemento aerófano
MB&F HM6 Alien Nation (à esquerda) Hublot Big Bang Unico Sapphire (à direita).

vidro de um relógio tornou-se uma presença tão óbvia que, provavelmente, muitos terão já esquecido a sua verdadeira função: isolar o precioso mecanismo da ação negativa dos elementos e permitir, em simultâneo, uma leitura desobstruída de todas as indicações sobre o mostrador.

Se viajarmos para trás na história da relojoaria, aperceber-nos-emos de que, durante décadas, este elemento nem sempre esteve presente. Quando o relógio se tornou portátil, era apenas o mostrador que separava o movimento mecânico da agressividade dos elementos exteriores, como as poeiras e a humidade. Mais tarde, passou a aplicar-se uma simples cobertura que servia mais para proteger o ponteiro do que propriamente o mecanismo.

É o caso dos relógios do primeiro quartel do século XVII, nos quais existia geralmente uma tampa que tinha de ser levantada para se poder ler as horas. Os vidros começavam já a ser utilizados nesta altura, mas a qualidade destes não era suficiente para permitir ver os ponteiros. Havia, no entanto, exemplares cujo mecanismo fora inserido num bloco de cristal de rocha finamente trabalhado, mas o propósito era mais estético do que eminentemente prático.

Não existe uma certeza sobre quando o vidro começou a ser usado para cobrir o mostrador, porque, no que respeita a muitas peças históricas, é hoje difícil afirmar se o elemento pertence à data em que a peça foi construída. Quando a sua aplicação se generalizou na relojoaria, no final do século XVII e princípio do século XVIII, o vidro era obtido pelo método de soprar esferas ocas,  das quais se cortavam círculos, razão pela qual os primeiros vidros eram bastante bulbosos, quase esféricos. Não é fora do comum, em relógios antigos apenas com tampas de metal, encontrar este último elemento recortado de forma a poder receber um vidro, o que poderá ter sido feito numa data bastante posterior à da construção do próprio relógio.

Mineral, acrílico e safira

JAEGER LECOULTRE - MASTER GRANDE TRADITION GRANDE COMPLICATION: Pormenor da base de apoio do gongo catedral de secção quadrada que fica em contacto com o vidro de safira.
Jaeger-LeCoultre Master Grande Tradition Grande Complication: pormenor da base de apoio do gongo que fica em contacto com o vidro de safira. | © Espiral do Tempo/ Paulo Pires

Ao longo do século XVIII e do século XIX, predominou o relógio de bolso com vidro mineral, um género que acompanhou a transição para o relógio de pulso, mas cuja fragilidade representava um problema de difícil solução.

As exigências da Primeira Grande Guerra ditaram a aplicação de coberturas à base de acetato de celulose e mesmo trinitrocelulose, cuja amarelecimento e aparência craquelé é hoje facilmente reconhecível nos relógios dessa época.
No caso da trinitrocelulose, a substância ardia facilmente, pelo que, já em 1917, a americana Whaltam anunciava os seus modelos Khaki como tendo vidros não inflamáveis e não explosivos.

Os mais resistentes vidros acrílicos, ou Plexiglas, apa­­re­cem no final da década de 30 após a descoberta do polímero pelos químicos britânicos Rowland Hill e John Crawford. Usados profusamente nos relógios de pulso durante a Segunda Guerra Mundial devido às exigências governamentais que requeriam a aplicação de vidros mais resistentes nos relógios de uso militar, mesmo assim, e até  à década de 50, apenas os relógios resistentes à água usa-
vam exclusivamente este género de vidros.

O último capítulo desta história pertence ao vidro de safira cuja superior resistência aos riscos e ao impacto está diretamente relacionada com a posição deste mineral na escala de Mohs. Neste índice de dureza, ocupa a nona posição, logo abaixo do diamante.

Tal como hoje o conhecemos, o vidro de safira começa a ganhar popularidade na década de 60 e torna-se um componente de qualidade indiscutível em diversas marcas a partir da década de 70, com destaque para a Rolex. No entanto, era já usado pontualmente na década de 30 e o Reverso da Jaeger-LeCoultre foi um dos primeiros modelos a fazer uso deste material.

A lenta adoção da safira nos vidros da indústria de relojoaria prendeu-se com a complexidade inicial na sua produção e, consequentemente, com o preço que lhe estava associado. Hoje, um relógio digno desse nome raramente dispensa um vidro de safira.

Safira — História e caraterísticas

O elemento aerófano
Franck Muller Vanguard Sapphire (à esquerda); Richard Mille RM 56-01 Tourbillon Sapphire (à direita).

Cabe ao francês Auguste V. L. Verneuil, um professor de química aplicada no museu de história natural de Paris durante o final do século XIX, a responsabilidade do desenvolvimento do processo que levou à criação da safira sintética. O método consiste em depositar lentamente o pó de alumínio sobre uma chama de oxi-hidrogénio (HHO), um gás produzido a partir da eletrólise da água.

Acredita-se que, já em 1885, um comerciante de Genebra tenha começado a vender rubis sintéticos através deste método de fusão por chama. Tanto a Sorbonne, em Paris, como a Tiffany & Co, em Nova Iorque, apressaram-se a confirmar a existência de bolhas de gás microscópicas nestes rubis, reveladoras de um processo sintético de alta temperatura. O episódio estimulou Verneuil a desenvolver um novo método de fusão por chama capaz de produzir uma qualidade de rubis superior. Por volta de 1900, apesar de Verneuil apenas ter anunciado a descoberta em 1902 e publicado os detalhes do processo em 1904, a procura de rubis produzidos pelo químico francês era já intensa.

A partir da década de 70 do século XX, passa a ser possível criar safira sintética transparente com diversas formas através da implementação de um novo método por permuta de calor, desenvolvido pelo norte-americano Fred Schmid. A sua empresa, a Crystal System, é hoje capaz de produzir rotineiramente enormes blocos de safira sintética com 240 kg de peso e uma secção de 69 x 69 cm.

Caixas, congos em safira e o Cyclops da Rolex

ROLEX - A FAMOSA CYCLOPS: A lente Cyclops tornou-se numa verdadeira imagem de marca da Rolex
A lente Cyclops tornou-se numa verdadeira imagem de marca da Rolex | © Espiral do Tempo/ Paulo Pires

Nos últimos anos, a aplicação da safira sintética ul­tra­passou de forma espetacular a simples utilização como forma de cobrir o mostrador e proteger o mecanismo. Marcas como a MB&F, Franck Muller, Richard Mille, Hublot, H. Moser, Greubel & Forsey, Bell & Ross, Rebellion e ainda a 4N lançaram modelos e este tipo de material foi utilizado na totalidade da caixa. Caixas que, em alguns casos, requerem mais de 40 dias e quase 800 horas de trabalho em tornos CNC (computer numerical control) devidamente adaptados para conseguirem lidar com a extrema dureza e a total inflexibilidade deste material, que pode partir a qualquer momento durante o processo de usinagem.

Recentemente, a aplicação da safira extravasou a sua habitual utilização para passar a fazer também parte da lista de componentes utilizada num movimento mecânico, neste caso, um repetição minutos da Chopard que estreou a marca suíça neste género de complicação. O L.U.C Full Strike Minute Repeater, apresentado em 2016, produz um som extremamente claro e bem definido, alegadamente devido à aplicação, também pela primeira vez, da safira para a construção dos gongos a partir de um só bloco. A capacidade de reverberação deste material, que era até agora totalmente insuspeita, acabou mesmo por merecer por parte da Chopard o registo de uma patente.

O L.U.C FULL STRIKE MINUTE REPEATER, apresentado em 2016, produz um som extremamente claro e bem definido, alegadamente devido à aplicação também pela primeira vez, da safira para a construção dos gongos a partir de um só bloco.
O L.U.C Full Strike Minute Repeater da Chopard, apresentado em 2016, produz um som extremamente claro e bem definido, alegadamente devido à aplicação também pela primeira vez, da safira para a construção dos gongos a partir de um só bloco. | © Chopard

Numa abordagem inversa, a  decidiu fixar os gongos catedral de secção quadrada (mais com­­pridos do que os convencionais e, consequentemente, com reverberação mais prolongada) diretamente no vidro de safira do Master Grande Tradition Grande Complication, apresentado em 2014. Com esta solução inovadora, a Grande Maison conseguiu produzir um repetição de mi­nu­tos resistente à água, já que o efeito de amortecimento do som provocado pelas juntas de vedação é contrariada pelo efeito de amplificação do vidro de safira que atua como uma autêntica coluna de som.

Mas, por mais exigente que a construção destas caixas e destes componentes possa ser, é na simplicidade que muitas vezes encontramos o verdadeiro encanto de uma determinada tecnologia. Veja-se o chamado Cyclops da Rolex, uma protuberância palpável sobre a superfície de um disco de safira, cujo efeito de lente permite ampliar os dígitos que passam na janela da data, logo abaixo. A utilidade desta solução é óbvia, tal como o fundador da Rolex, Hans Wilsdorf, previu quando escreveu, em fevereiro de 1953, por ocasião do lançamento de um novo modelo do Datejust: «Estou convencido de que a nova caixa tropical com o novo vidro e magnificação ótica irá dar-nos algo
de novo.»

Bell & Ross BR-X2 Tourbillon Micro-Rotor (à esquerda); Rebellion Magnum 540 (à direita)
Bell & Ross BR-X2 Tourbillon Micro-Rotor (à esquerda); Rebellion Magnum 540 (à direita).

Nesta altura, os vidros a que Wilsdorf se referia eram ainda em Plexiglas e construídos num só elemento. Mas, a partir da década de 70 do século XX, a Rolex rende-se à safira, e, ao longo desta evolução, a lente Cyclops passa a ser um elemento separado aplicado diretamente sobre o vidro. Ao Datejust seguiu-se o GMT-Master e o Day-Date, estendendo-se a aplicação a todos os modelos da marca genebrina com janela para indicação de data. Com o recente lançamento da edição comemorativa dos 50 anos do Sea-Dweller, o único modelo a não contar com o Cyclops passa a ser o Rolex Deepsea. A marca argumenta utilizando razões técnicas para não aplicar este elemento. E ao fim de quase um século de história da presença do vidro de safira na relojoaria, continuam a ser estes de-
talhes, pequenos mas importantes, a fazer a diferença quan­­do julgamos a qualidade de um relógio.

Já agora, e caso tenha estranhado o título, «aerófano» significa nada mais nada menos do que transparente… 

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