Em Fleurier — Karl-Friedrich Scheufele sempre foi fascinado pelos cronómetros de marinha de Ferdinand Berthoud. E decidiu recuperar o lendário relojoeiro do século XVIII ao lançar uma marca de alta-relojoaria sob o seu nome. A Espiral do Tempo esteve na inauguração oficial do atelier em Fleurier e teve a oportunidade de analisar de perto o FB1, o superlativo modelo inaugural.
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A recuperação de nomes históricos da relojoaria clássica para o estabelecimento de marcas contemporâneas de relógios de pulso não é de agora — tem sido um exercício frequente não só antes como sobretudo após a crise do quartzo que afetou a indústria relojoeira suíça entre a década de 70 e a de 80. Os grandes mestres sempre fascinaram os aficionados e a ideia de não só recuperar pormenores estéticos de alguns como aproveitar detalhes técnicos de outros acaba por ser um exercício fascinante. Na segunda metade da década de 90 verificou-se a tendência de relançar nomes relevantes da cronometria britânica do século XVIII, sendo que apenas a Graham e a Arnold & Son mantêm uma posição de maior destaque no contexto atual; mais recentemente deu-se o relançamento de um nome incontornável da relojoaria continental europeia e logo através de um relógio excecional. Ferdinand Berthoud ressuscitou em 2015 através do FB1.
A ressurreição tornou-se um projeto pessoal de Karl-Friedrich Scheufele, copresidente da Chopard e grande mentor da manufatura L.U.C que a marca genebrina tem em Fleurier. Após uma primeira divulgação da Ferdinand Berthoud em Paris, cidade onde o histórico relojoeiro suíço se radicou, Karl-Friedrich Scheufele inaugurou o atelier da sua nova manufatura de alta-relojoaria com pompa e circunstância precisamente em Fleurier, na região de Val-de-Travers de onde Ferdinand Berthoud era oriundo (nasceu em 1727 na vizinha localidade de Plancemont-sur-Couvet). O atelier fica no terceiro andar da manufatura L.U.C da Chopard, do lado oposto ao museu LUCeum (nome que resulta da contração das iniciais de Louis-Ulysse Chopard e do termo latino lyceum, local de aprendizagem) que conta no seu acervo com alguns relógios de Ferdinand Berthoud e descendentes, como o seu sobrinho Pierre-Louis e ainda Charles-Auguste — incluindo o Relógio de Marinha M.M. nº6, datado de 1777.
A Espiral do Tempo foi convidada para marcar presença na inauguração oficial do novo atelier da Ferdinand Berthoud, efetuada por Karl-Friedrich Scheufele na presença dos pais e da mulher Christine, juntamente com o Conselheiro de Estado para a economia, Jean Nathanael Karakash. E tivemos a oportunidade de entrevistar o patrão da marca e ouvir as suas opiniões tanto sobre o relançamento do nome Ferdinand Berthoud como sobre o primeiro modelo (em duas declinações) com tão prestigiada designação no mostrador.
Para poder usufruir do nome e colocá-lo no mostrador do novo FB1, Karl-Friedrich Scheufele teve de o comprar: o nome já estava registado e os proprietários também tinham os seus planos para reavivar a marca, mas com ideias bem distintas das que Karl-Friedrich Scheufele tinha em mente. Em 2006 as duas partes chegaram a um acordo — e após conseguir o nome, o plano seguinte era utilizá-lo no âmbito de uma marca exclusiva de alta-relojoaria que fizesse os relógios que Ferdinand Berthoud faria se estivesse hoje vivo. O movimento idealizado para o primeiro modelo requereu três anos com o esforço partilhado de quatro pessoas, duas na pesquisa e desenvolvimento e mais dois relojoeiros.
Depois da inauguração do atelier Ferdinand Berthoud e da entrevista a Karl-Friedrich Scheufele fomos até ao Forum Chopard no nº 1 da Rue du Temple bem no centro de Fleurier, onde a Chopard promoveu pela sétima vez a iniciativa ‘Les Rencontres du L.U.Ceum’ — desta vez sendo o encontro compreensivelmente dedicado a Ferdinand Berthoud e ao seu legado: ‘Ferdinand Berthoud, Precisão para Exploradores’. Na altura, a supremacia marítima assentava muito na capacidade de calcular a longitude através de relógios de precisão e os ingleses foram os primeiros a avançar nesse domínio graças a John Harrison e não só; Ferdinand Berthoud foi a resposta da corte francesa de Luis XV, sendo nomeado ‘Relojoeiro-Mecânico do Rei e da Marinha’ em 1770.
Perante cerca de centena e meia de convidados reunidos na magnífica sala de teto madeirado no primeiro andar do Forum Chopard, o historiador Arnaud Tellier — antigo diretor do Museu Patek Philippe e historiador — falou do trajeto do mestre relojoeiro desde o recôndito Val de Travers até às mais cintilantes cortes europeias, incluindo as suas peças de maior relevo.
Guy Bove, diretor de design e desenvolvimento de produto da Chopard, também discursou sobre os cronómetros de marinha de Ferdinand Berthoud que serviram de inspiração ao modelo inaugural FB1. E apresentou o Calibre FB-T.FC, composto por um universo de mais de 1120 peças num espaço de 35,5 mm de diâmetro por 8 mm de espessura.
Tivemos a oportunidade de manusear, estudar e experimentar as duas versões do modelo inaugural da nova marca que perpetua o nome de um dos maiores mestres de sempre da mecânica de precisão — e o que podemos dizer é que o relógio está à altura do prestigiado nome que ostenta. A complexa caixa de estrutura octogonal com escotilhas laterais poderá não ser unânime e alguns colegas não se mostraram demasiado entusiasmados; eu acho o formato extraordinário e original no sentido em que não há nada parecido atualmente no segmento da gama média/alta, para além de apresentar um bom tamanho contemporâneo e de assentar muito bem no pulso.
O FB1 foi lançado em duas versões de preço idêntico — uma em ouro rosa com inserção de cerâmica preta nas entre-asas e mostrador preto, outra em ouro branco e titânio com mostrador cinza. A caixa, de estrutura octogonal e de consideráveis dimensões com os seus 44 mm, veste muito bem no pulso por não ter as habituais asas protuberantes convencionais; a construção evoca os cronómetros de marinha e, apesar de um formato octogonal exterior com quatro escotilhas em vidro de safira que permitem uma vista lateral para o movimento, tem uma luneta e um mostrador redondos. «Um octógono mascarado de círculo», retratou Karl-Friedrich Scheufele.
Os vidros das escotilhas laterais são em safira, tal como o vidro superior convexo e o vidro no fundo que permite apreciar o movimento. A abertura no mostrador não desvela o turbilhão, mas as rodas dos segundos diretos; o turbilhão surge em todo o seu esplendor no fundo, apresentando-se em grandes dimensões. É a cereja no topo do bolo que é o Calibre FB-T.FC, certificado pelo COSC com uma frequência de 21.600 alternâncias/hora e inclui também um mecanismo regulador de força constante graças ao sistema de fuso e corrente — muito utilizado em cronómetros de marinha, incluído os concebidos por Ferdinand Berthoud.
Através do fundo em vidro de safira é possível ver o sistema fusée à chaîne do lado esquerdo e o tambor de corda do lado direito. Sobre o tambor de corda está um dispositivo que bloqueia o sistema quando a corda atinge a reserva máxima para impedir o arrancar da corrente; do lado da fusée está o mecanismo de manutenção da potência que funciona mesmo quando está a ser dada corda ao relógio.
O mecanismo de reserva de corda também é tecnicamente interessante, já que assenta num cone móvel — e inspira-se num sistema idealizado pelo mestre britânico (contemporâneo) George Daniels. No seu tempo, Ferdinand Berthoud teve os seus laços com a Grã-Bretanha, já que foi nomeado membro estrangeiro da Royal Society.
O turbilhão de segundos diretos só pode ser visto a partir do fundo e é bem visível — é um turbilhão sobredimensionado, com uma gaiola de titânio com 16,55 mm suportada por um único braço e uma roda do balanço igualmente grande com 12 mm de diâmetro. A espiral apresenta uma curva terminal Phillips modelada à mão. Ao contrário do que é habitual num turbilhão, o ponteiro dos segundos está associado à gaiola do turbilhão, que — na maioria dos casos — efetua a sua rotação num minuto. No FB1, uma roda montada de modo coaxial relativamente à gaiola do turbilhão permite o ponteiro dos segundos ao centro e essa construção encontra-se sob patente pendente.
Claro que, para um exemplar de alta-relojoaria a roçar os 200.000 euros, o nível de acabamentos tem obrigatoriamente de ser excelente. Não há grandes motivos decorativos, como sucedia tipicamente em qualquer cronómetro de marinha; o nível superlativo prende-se sobretudo com o tratamento dado a cada peça e os respetivos polimentos, incluindo a anglage efetuada em todas as pontes.
Karl-Friedrich Scheufele confessou-nos que a produção anual do FB1 andará à volta dos 24 exemplares (12 de cada versão), sendo que está em vista o lançamento de um segundo modelo menos complexo e mais essencial — e, consequentemente, mais barato. Mas, para já, a auréola da marca fica indelevelmente associada ao superlativo e original modelo inaugural, do qual ainda não decidi qual a versão preferida… se a de ouro rosa com mostrador preto, se a de ouro branco com mostrador cinza.
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