EdT48 — A apresentação do Apple Watch causou grande impacto mundial e deixou os aficionados da relojoaria mecânica a debater a sua utilidade. A minha opinião: não é um produto inovador e é um objeto redundante. Ou seja, mais um gadget de sucesso comercial, que passará completamente ao lado de quem deseja um relógio com alma.
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Crónica publicada no número 48 da Espiral do Tempo.
Olho para a capa da Time e vejo um pulso cibernético. A revista norte-americana, sob o título ‘Never Offline’, diz-nos que o Apple Watch é apenas o início e que, queiramos ou não, a tecnologia portátil irá mudar as nossas vidas. Será? Lembro-me das séries de ficção científica da minha infância, e de desejar ter um daqueles aparelhos intercomunicadores de pulso, como se via em Espaço 1999 – mas agora já não quero. Muitos amigos têm-me perguntado se o advento do popularmente batizado iWatch irá ter repercussões negativas na indústria relojoeira tradicional e a questão tem sido recorrentemente abordada nos meandros do setor, sobretudo após Jonathan Ive (designer da Apple) ter suscitado a ira generalizada com as suas previsões apocalípticas.
Confesso que estava tão curioso relativamente à apresentação do iPhone que vi a transmissão em direto. Achei o produto interessante e com qualidade de acabamento muito inspirada na relojoaria de qualidade, sem, no entanto, considerar o design inovador; a certa altura tornou-se difícil assimilar todas as variantes e, sobretudo, aquele desfilar de funções que não me parecem muito diferentes das de outros smartwatches que já estão no mercado ou pré-anunciados. E, instintivamente, achei que não precisaria de ter um: já tenho praticamente tudo aquilo no iPhone que anda sempre comigo, sem esquecer o iPad. Que têm ambos um ecrã significativamente maior e já me deixam com a vista a arder após um período de utilização mais demorado. Vou ter curiosidade em experimentar o iPhone e, quem sabe, acabar por adquirir um em vez de um daqueles relógios de fitness que estava a pensar comprar para medir o esforço físico e o gasto de calorias; a certeza que tenho é a de que o iWatch não irá substituir nenhum dos meus relógios mecânicos – por um lado, não tem alma para isso; por outro, mesmo antes da saída para o mercado já está completamente banalizado.
E isso faz toda a diferença. O iPhone é um excelente objeto de trabalho mas só será um objeto de culto para os geeks da tecnologia e para os fanáticos da Apple. O mesmo acontecerá com o iWatch, cujo design me faz recordar antigos relógios Ikepod com a assinatura do mesmo Marc Newson com quem a Apple anunciou recentemente uma parceria. O preço das várias versões, maioritariamente abaixo dos 500 euros, também o coloca num nível de mercado completamente distinto do da relojoaria de prestígio.
Gastronomia e fast food
A comparação com a crise do quartzo que, nas décadas de 1970 e 1980, extinguiu centenas de marcas suíças, e colocou no desemprego dezenas de milhares de funcionários, era inevitável. Mas os tempos são bem diferentes: na altura havia como que uma concorrência direta e a precisão era fundamental num instrumento que pautava a vida das pessoas; hoje, o tempo está omnipresente e o relógio é o objeto de culto por excelência. Olho para os meus relógios e sinto que os mesmos que uso há 15 anos usarei daqui a 15 anos, nessa altura com a etiqueta de clássicos reforçada; obviamente, ninguém imaginará usar um smartwatch de 2014 em 2029 – e essa é a grande questão: não se pode comparar gastronomia com fast food. Não é uma empresa que faz bons computadores e telemóveis que fará tremer uma indústria de quatrocentos anos, até porque o iWatch não é um relógio; é mais um produto híbrido dotado de ecrã… pequeno, por sinal. A Apple é especialista em criar necessidades que não existiam e espicaçar o consumismo das novas gerações, mas não irá afetar o mercado de luxo. Foi isso que Jonathan Ive não compreendeu: que o mercado dos relógios de prestígio representa menos de um por cento de todos os relógios produzidos anualmente, embora praticamente metade do valor global de vendas. E, se compreendeu, as suas declarações foram uma estratégia de marketing sem efeito prático.
Claro que o plano pode dar resultado a médio e longo prazo. As novas gerações, sempre ligadas, dispensam o relógio de pulso e centram as vidas nos smartphones que lhes dão as horas e a sensação de estarem inseridos no mundo. Mas mesmo esses jovens, ao amadurecerem, também amadurecerão os gostos e acabarão por desejar ter no pulso um bom relógio que os diferencie e que lhes permita ver as horas de imediato.
Há dez anos, perguntei a Franck Muller como é que via o relógio do futuro; ele respondeu-me que via uma associação entre o relógio mecânico e um complemento eletrónico que, curiosamente, constituiu o conceito de lançamento da Linde Werdelin, jovem marca dinamarquesa assente em relógios mecânicos, de design apurado, construídos na Suíça, que podem receber um módulo eletrónico. O conceito é genial, mas o facto de apenas cinco por cento dos clientes dos relógios Linde Werdelin adquirirem o interessante módulo fala por si. E a melhor resposta ao anúncio do iWatch foi dada pelo excelente humorista britânico Ricky Gervais: publicou uma fotografia de um iPhone preso ao pulso com um elástico e o seguinte comentário: «acabei de poupar 350 ‘mocas’».
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